Philippe Lacadée
Psicanalista, A.M.E. da ECF/AMP
phlacadee@wanadoo.fr
Resumo: A criança é, desde suas primeiras relações com o Outro, traumatizada. Lacan forjou o neologismo troumatisme para indicar que o trauma está ligado a uma experiência relacionada ao sem-sentido, ao encontro com um real, enfim, a um furo na compreensão das coisas ou das palavras que recebe do Outro.
Palavras-chave: criança; troumatisme; trauma.
THE TRAUMATIC PARENTS, THE DATE OF THE TRAUMA AND THE TROUMATISÉ CHILD
Abstract: The child is, from its first relations with the Other, traumatized. Lacan forged the neologism troumatisme to indicate that the trauma is linked to an experience related to meaninglessness, to the encounter with a real, or simply to a hole in the understanding of things or words that it receives from the Other.Keywords: child; troumatisme; trauma.
Comecemos por uma observação de Jacques Lacan. Trata-se de um encontro que ele teve com uma criança pequena, certamente de sua família, e que ele relata em Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, logo após ter mencionado sobre o sobrinho-neto de Freud. Lacan (1964/2008, p. 67) nos diz:
Eu vi, também eu, vi com meus olhos arregalados pela adivinhação maternal, a criança, traumatizada com a minha partida a despeito de seu apelo precocemente esboçado na voz e daí em diante mais renovado por meses e meses – eu a vi, bastante tempo ainda depois disso, quando eu a tomava, essa criança, em meus braços – eu a vi abandonar a cabeça sobre meu ombro para cair no sono, o sono unicamente capaz de lhe dar acesso ao significante vivo que eu era depois da data do trauma.
O encontro traumático do significante vivo
A criança, da qual Lacan nos fala aqui, é uma criança traumatizada que encontra no Outro a paz simbólica e que ali adormece. Observemos primeiro como Lacan nos falou dessa criança traumatizada pelo fato de que o Outro, isto é, ele mesmo, a deixou, apesar de seu apelo; essa criança que, a partir de então, diante da falta de resposta do Outro, não endereça mais um apelo, caindo numa espécie de mutismo, ou de autismo, e que encontra através do sono nos braços de Lacan “acesso ao significante vivo que eu era depois da data do trauma”. O Outro, para a criança, é sobretudo um significante vivo que ilustra como o encontro com o Outro é traumático, e como também pode ser apaziguador. Lacan nos indicou que o significante não é somente simbólico ou apaziguador, mas é vivo, isto é, pode gozar de sua vida de significante sozinho e, como tal, portar um gozo sem-sentido; esse gozo é traumático para a criança porque ele lhe escapa, enquanto outro significante não vem para lhe dar significação. A criança não compreende nada, isso a traumatiza, fica sem recurso – o Outro ao sair a abandona, não responde ao seu apelo, o Outro, portador do significante, vive e goza em outro lugar, para além dela.
O apelo ao Outro e o encontro com os objetos
Observamos que Lacan ressalta os danos da palavra para uma criança quando seu apelo não é atendido. Ele diz que entre o Outro e a criança existe “seu apelo precocemente esboçado na voz”. Remarcamos, finalmente, como ele introduz a importância para a criança, no apelo ao Outro, de um objeto que lhe vem do desejo do Outro: a voz, esse objeto voz, é tomado por todo sujeito em sua relação com o Outro. Esse objeto voz e a pulsão invocante a ele vinculada, assim como o objeto olhar e a pulsão escópica, são dois objetos fundamentais na clínica que Lacan destacou para a criança. Assim, o objeto olhar e a pulsão escópica são essenciais nessa cena: “vi com meus olhos” e o “olhar da mãe”. Ao elaborar o “estádio do espelho”, Lacan primeiro apontou esse momento em que a criança, diante do caos e da fragmentação de seu ser, tenta recuperar uma unidade na imagem especular que ela investe libidinal e imaginariamente para se fazer um eu. Mais adiante, ele enfatizará a importância do olhar do Outro e da pulsão escópica. Da mesma forma, durante essa cena da criança que ele toma nos braços, o Outro, Lacan é testemunha da ruptura do ser que abala essa criança, mas o olhar que ele oferece faz com que ele participe do acontecimento até ocupar a posição causal que faz com que essa cena exista porque é vista. O Outro, por seu olhar, torna-se aquele que acompanha a criança no momento de sua entrada no mundo e acaba sendo o elemento ativo fundamental que, ao criá-lo, transforma esse mundo hostil em mundo apaziguado. O Outro enquadra a experiência da criança com seu olhar.
Os pais traumáticos e a marca de um significante no corpo
A psicanálise, indica Lacan, é “a demarcação do que se compreende de obscurecido, do que se obscurece como compreensão, em virtude de um significante que marcou um ponto no corpo” (LACAN, 1971-72/2012, p. 145). Um psicanalista reproduz uma produção da neurose, indica Lacan, e nisso todos estão de acordo. Essa neurose é atribuída, não sem razão, à ação dos pais, e isso na medida em que “converge para um significante que emerge dela que a neurose vem a se ordenar segundo o discurso cujos efeitos produziram o sujeito” (LACAN, 1971-72/2012, p. 145). Lacan fala então dos pais traumáticos: “Todo pai ou mãe traumático está, em suma, na mesma posição que o psicanalista” (LACAN, 1971-72/2012, p. 146). Lacan precisa que se o psicanalista, de sua posição, reproduz a neurose, “o pai ou mãe traumáticos a produzem inocentemente” (LACAN, 1971-72/2012, p. 146). É o que nos mostra esse exemplo de Lacan, psicanalista e também pai traumático, mas inocente.
Observamos ainda como Lacan, nessa vinheta clínica, ilustra sua posição em relação à mãe. Ele indica que seus olhos são abertos pela adivinhação materna. É o olhar dessa mãe sobre seu filho, sua adivinhação materna, que o faz adivinhar o trauma, que o torna visível a ele. Vemos aqui como o significante “adivinhação” opera um deslizamento, etimologicamente fundado, entre adivinho e divino, deixando aparente esse divino que está ligado à figura da criança, da criança como se ela fosse um Deus, da criança “inocente e alegre”, tal como Victor Hugo retrata em seu poema intitulado “Quando a criança aparece”,3 e tal como Freud a designa em “Introdução ao narcisismo”: His Majesty the baby.
A criança lacaniana não é uma inocente
Observamos também como, para Lacan, a criança freudiana é culpada de se deixar levar pelo gozo masoquista que ela sentiu ou sofreu, ou seja, que dela decorreu. Há na criança uma inclinação que a impele a se tornar o objeto caído do Outro. Ser tratada como um objeto, como um cão (LACAN, 1958-59/2016, p. 141). Há nela uma disposição precoce para a degradação, um masoquismo primordial que a impele de sofrer com sua própria degradação e de tirar dela uma satisfação fundamental, um gozo. Algo insiste no âmago do ser, cuja existência Lacan afirmou como uma necessidade primária, esse algo que põe cada ser à mercê de ser abandonado por aquele que o sustenta simbolicamente em sua experiência de nomeação.
Para Lacan, a criança não é uma inocente, ela é culpada do gozo que extrai usando o significante, mas também deixando-se levar por seu masoquismo primordial. Para Freud, e depois para Lacan, a neurose infantil não vem propriamente do encontro traumático com o Outro, mas do real, do gozo em jogo nesse encontro, gozo sobre o qual a criança não pode colocar nenhuma palavra e do qual pode fazer certo uso. A criança lacaniana não conhece a negligência, pois, por causa da linguagem, não há para ela simbiose possível com o autor de seus dias, mas há sempre a discordância do mal-entendido.
A discórdia da criança nascida mal-entendida: o trauma (le troumatisme)
A criança é separada desse mundo no qual o nascimento a lançou, que já estava lá antes de sua chegada. Ela é uma imigrante no país da fala, no país onde o apelo pode não encontrar resposta. Uma criança nasceu, um rasgo se produziu, uma falha se abriu, uma distância permanece irredutível. Houve um corte, uma separação. A criança jamais desvelará o mistério de sua origem e, diante da pergunta “Quem é esta criança aí?” (LACADÉE, 2010), é preciso ter cuidado para não acreditar que essa problemática da origem se tornaria alcançável. A amnésia infantil testemunha a impossibilidade de qualquer sujeito responder a essa pergunta – a criança não volta à origem, ela é introduzida pela via do mal-entendido à dimensão do real. Algo escapa ao sujeito, algo do qual ele está sempre separado; esse real não simbolizável pode retornar, pode emergir na virada de cada história. À pergunta “Quem é esta criança aí?” poderíamos, então, propor a resposta de que a criança, por ser uma criança, é fundamentalmente traumatizada. “Do trauma, não há outro: o homem nasce mal-entendido” (LACAN, 1981, p. 12). Para devolver vigor e rigor ao termo “trauma”, Lacan forjou o neologismo troumatisme (LACAN, 1973-74, aula de 19/2/1974), como dizer da melhor forma que isso que faz trauma na criança é o encontro com um furo na compreensão das coisas ou das palavras que recebe do Outro. Há para a criança um furo no saber, ela não consegue colocar em palavras o que vive, o que sente, o que encontra. Ela experimenta uma experiência fora do sentido, uma experiência de gozo no sentido de um encontro com um real que ela não pode assimilar. A criança lacaniana é, portanto, uma criança traumatizada (troumatisé) porque exposta a momentos traumáticos.