Fernanda Otoni-Brisset
Psicanalista, membro da EBP/AMP
fernanda.otonibb@gmail.com
Resumo: Na atualidade da experiência analítica nos deparamos com uma plasticidade de casos que, sob transferência, nos exigem um tempo maior para que uma precisão diagnóstica se esclareça, evitando, assim, reduzir a resposta a um simples “sim” ou “não”, presença ou ausência do Nome-do-Pai. Cabe sublinhar que a formulação milleriana designada como “psicose ordinária” não é mais uma categoria clínica, mas, conforme, escreveu Sérgio de Campos: “é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa”, que instala um plano de investigação que caminha junto, com a clínica em movimento. Se, para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó, no vasto mundo das psicoses outros modos de nós e grampos se apresentam como se fossem um Nome-do-Pai. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento; a pergunta se desloca do “o que será que ele é” para “como é que ele funciona”. Não seria aqui que a presença do analista aconteceria na clínica da psicose ordinária?
Palavras-chave: clínica do funcionamento; psicose ordinária; nós; presença do analista.
OPERATING CLINIC:
THE ORDINARY PSYCHOSIS AND THE PRESENCE OF THE ANALYST
Abstract: In the actuality of the analytic experience, we are faced with a plasticity of cases that, under transference, requires a longer time for a diagnostic precision to be clarified, thus avoiding reducing the answer to a simple yes or no, presence or absence of the Name-of-the- Father. It should be noted that the millerian formulation designated as “ordinary psychosis” is no longer a clinical category, but as Sérgio Campos wrote: “it is a diagnosis in suspension, a diagnosis of parenthesis, a pause” that installs an investigation plan that goes hand in hand, with the clinic in motion. If, for neurotics, the Name-of-the-Father makes the knot, in the vast world of psychoses, other modes of knots and staples present themselves as if they were a Name-of-the-Father. The flashlight moves from the quarrel of diagnosis to illuminate the real within the treatment; the question shifts from “what is it”, to “how does it work”. Is it not here that the presence of the analyst takes place in the clinic of ordinary psychosis?
Keywords: operating clinic; ordinary psychosis; knot; presence of the analyst.
Uma alegria estar conversando mais uma vez com os colegas do Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais. Agradeço à Maria de Fatima Ferreira e ao Fernando Casula pelo convite e, mais ainda, ao Sérgio de Campos pela esclarecedora exposição que pode nos oferecer sobre psicose ordinária e a presença do analista, com referências preciosas para pensarmos a clínica contemporânea, o que é o ordinário, o mais comum em nossa experiência, no consultório e fora dele, nas instituições.
Todos nós sabemos da precariedade da clínica binária diante da atualidade da experiência analítica. Verificamos a plasticidade de casos que, sob transferência, nos exigem seguir adiante antes que uma precisão diagnóstica se esclareça. “O que será que ele é? Neurose, psicose…?”. O pêndulo do sino de Gauss segue balançando conforme a intensidade dos pequenos indícios, dos divinos detalhes.
Impossível reduzir a resposta a um simples “sim” ou “não”, presença ou ausência do Nome-do-Pai, face ao real que a clínica contemporânea nos entrega. Contudo, não se trata de acrescentar “a psicose ordinária” ao rol das categorias clínicas. Miller (2012, p. 412-413) dirá que “o perigo do conceito da psicose ordinária – é o que se chama um asilo para a ignorância”. Sérgio de Campos escreve: “A psicose ordinária é um diagnóstico em suspensão, um diagnóstico de parêntese, uma pausa”, que instala um plano de investigação que caminha junto com a clínica em movimento. Supostas neuroses e psicoses se colocam a investigar… Lembro de Miller (2007, p. 23) dizendo: “A neurose, não é mais sempre, a neurose… tem-se aí o diagnostico diferencial, mas tem também um continuum: ‘todas as mulheres são loucas’; ‘o mundo é louco’. Lancem um olhar sobre a neurose, os delírios de que ela é capaz, aqueles de que ela é feita; a neurose é um patchwork.” Ou seja: todo mundo delira (MILLER, 2005, p. 257). Se seguirmos assim, neuroses e psicoses, guardadas as distinções e segundo a lógica da forclusão generalizada, encontram-se igualmente reunidas no interior do conjunto dos seres que Lacan definiu como, “simplesmente, parlêtre” (OTONI-BRISSET, 2018).
Me pergunto se o termo “psicose ordinária” não é um convite para explorarmos as consequências da “declaração de igualdade clínica fundamental entre os falasseres” (MILLER, 2016, p. 31): um estreito continuum a perseguir e, diria com Lacan que, ao abrir uma pausa, o conceito da “psicose ordinária” desinstala o analista da encruzilhada da querela do diagnóstico e instala o analista como um Outro que segue, uma vez que o saber está do lado do falasser.
Fundamentos de igualdade
Algumas das proposições de Lacan nos permitem declarar que cada um fala a sua lalíngua e que para todos “falar é em si uma perturbação da linguagem” (MILLER, 2012, p. 250). Onde houver um ser falante, no encontro da língua com o corpo verifica-se a desordem na junção mais íntima do sentimento de vida, e é a tensão provocada por essa desordem que força a “conexão bem mais estreita do gozo e do significante” (MILLER, 2012, p. 264). Quando isso acontece, temos uma conexão. Se não acontece, estamos diante de um desligamento… ou um neodesencadeamento, ou desencadeamento clássico. Essa relação do gozo com o significante – ou melhor, a não relação – é um fundamento comum a todos, ainda que sejam distintos os modos como tal conexão acontece, ao enodar esse Um da língua ao Outro. Para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó; e, no vasto mundo das psicoses, outros modos de nós e grampos se apresentam como se fossem um Nome-do-Pai.
A passagem da clínica diferencial à borromeana de forma alguma nos permite apagar o modo neurótico ou psicótico de ser, mas exige-nos seguir a finesse dos pequenos sinais, indícios de pinças, amarras ou nós, numa investigação permanente, atentos ao singular do sinthoma, a encarnação do que há de mais singular em cada falasser. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento; a pergunta se desloca do “o que será que ele é”, para “como é que ele funciona”. Uma clínica do funcionamento, das conexões, dos ínfimos detalhes em que o toque de singularidade é a bússola.
Com Miller, podemos dizer que as psicoses ordinárias e as outras, neuroses e psicoses, são, a um só tempo, “saídas diferentes para a mesma dificuldade do ser” (MILLER, 2012, p. 242), para o que não cessa de não se escrever e que pulsa na “junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958/1998, p. 565). Mas o que é que há e acontece nessa junção mais íntima?
“É a pfuit! do sentido e a busca dos pontos de basta” (LAURENT, 2012, p. 273)
É quando a inexistência da relação eclode e o clips se abre para o nada, exalando a pfuit! cujo eco ressoa. Ao propor o sintagma “psicose ordinária”, Miller (2012, p. 401) desejou provocar um “eco no clínico”. Que eco seria esse, senão o que ressoa de um oco real, incrustrado na junção mais íntima do ser? Só há eco se há presença de um corpo material que acuse efeito de retorno. Não seria aqui que a presença do analista acontece na clínica da psicose ordinária – ao se colocar como testemunha desse pfuit! do sentido e fazer par com a urgência do gozo na busca de um ponto de basta?
Nessa clínica, o analista é aquele que segue sondando os indícios da desordem ordinária e verificando os vestígios da experiência para com a desordem, o furo, quando o nó se afrouxa, ora bambeia, ou até se solta, desatando a junção. A presença do analista aí testemunha a desordem do real: o hors-sens do gozo! E, ao mesmo tempo, ao estar ali ao lado, corpo presente, ressoa o que se apresenta como possível sutura, tal como Sérgio de Campos destacou: uma letra, uma invenção subjetiva, uma bricolagem, uma identificação imaginária, uma nomeação, dentre outras. Afinal, Lacan ensina que “todos inventamos um troço para tapar o furo no real. Aí onde não há relação sexual, inventa-se o que se pode” (LACAN, 1973-74, aula de 19/2/1974). Afinal, as estruturas são como defesas, defesas contra o real (MILLER, 2012, p. 422).
Na minha experiência clínica, a presença do analista nesses casos é uma presença que vibra quando a desordem encontra um jeito de se ordenar, quando a desordem do gozo se ajunta a qualquer coisa… uma letra, um pedaço do corpo, uma imagem, uma rotina… Em muitos casos, percebo que essa junção é um acontecimento contingente, que engendra o pfuit! do gozo a um ponto de basta capaz de agarrá-lo de novo a um arranjo para com o real, que é singular para cada um e constitui seu sinthoma. O sinthoma é a expressão da junção mais íntima que acontece do encontro inédito e impossível de lalíngua e o laço social.
Entretanto, esse acontecimento contingente em muitos dos casos não é suficiente. O falasser aguarda por um efeito de retorno, uma presença discreta que consinta, testemunhe, ecoe, ressoe e confirme sua solução. O que me faz pensar e propor para discussão que o sinthoma, ou o que quer que seja que sirva de uma amarração, acontece e se autoriza por si mesmo e de mais alguns outros. E é aí que a presença do analista acontece, como uma placa sensível que ressoa, testemunha do nó como efeito do real. Não há sentido nisso, só causa e consentimento. O analista aí presente acontece como um fiador que, como disse Sérgio de Campos, se apresenta “dócil para com sua língua particular” ao “se imiscuir na lalíngua do falasser (…) na condição de fiador de sua alíngua”. Acho essa ideia de testemunha e fiador interessante para pensar a presença do analista no circuito da autorização sinthomática, se operamos com o princípio “de que o analista opera como se ele fosse o sinthoma”.
Encontrei ressonância dessa ideia também no exemplo citado por Sérgio de Campos de um sujeito que é indicado pelo padre para ser zelador com a função de guardar as chaves da igreja: “ser nomeado para” confere ao sujeito uma “grande responsabilidade”. Uma sobreidentificaçao que faz laço social. Contudo, um analista não demanda, é um “Outro que segue”, mas, ao seguir, diz “sim” a uma nomeação que aparece no tecido da linguagem no curso de uma análise e que ressoa como função de grampo. Marca, assim, a função da nomeação para o gozo que corre solto, aposta num funcionamento e lhe confirma um lugar na ordem simbólica. Liga o S1 a um S2. “Não há relação sexual”… mas há o laço social. Uma aposta!
Sérgio de Campos escreve: “na psicose ordinária, há um progressivo desenganchamento do Outro, devido a um empobrecimento dos laços afetivos e sociais que denotam uma marginalização oculta por tempos, em virtude de rupturas repetidas e progressivas que se instalam de modo diacrônico, pouco a pouco, numa crescente intensidade social. Ante à irrupção do gozo, o tecido simbólico parece esgarçar-se gradativamente. Há impossibilidade crescente de o sujeito simbolizar e subjetivar o gozo, de modo que ele experimenta um buraco do real que se manifesta através de um desaparecimento do aparelho significante. Ademais, há uma perda paulatina da fantasia que possibilita uma mediação com o gozo. Nesses casos, no final, toda a significação fálica parece estar extinta”.
De fato, acompanhamos, há muito tempo, casos que chegam aparentemente amarrados, um ponto ou outro estranho, pequenos índices… Há um romance, esboço de fantasia, que parece algo como significação fálica… Mas isso vai se desfazendo aos poucos, a rede de sentido vai ficando mais pobre e o buraco do real e a desordem do gozo mais evidentes, menos ordenadas na cadeia significante e mais exuberantes como desordem no corpo, no social e na língua. A psicose vai se tornando evidente e o sujeito entrega sua desordem sob transferência, talvez numa aposta de encontrar, junto a mais alguns outros, um saber fazer em condições de costurar o incabível de sua desordem num laço social que tenha cabimento.
Uma clínica desse porte, que se orienta do real ao laço social, vive da inquietude permanente. A igualdade clínica fundamental entre os falasseres, ainda mais esclarecida a partir do efeito de retorno à psicose ordinária, ao desfazer as insígnias do déficit, permite-nos explorar o detalhe das nuances/nuages do laço e do desenlace, nos inúmeros tons que vibram conforme a loucura de cada um.
Referências
LACAN, J. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1973-1974). Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. (Inédito).
LAURENT, E. A pfuit! do sentido. In: A psicose ordinária: a Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.
MILLER, J-A. La Conversation D’Arcachon. Paris: Le Seuil, 2005.
MILLER, J-A. On n’est pas sérieux quando on a dix-sept ans. La Cause Freudienne, n. 67, out. 2007.
MILLER, J-A. A psicose ordinária: a Convenção de Antibes. Belo Horizonte: Editora Scriptum, 2012.
MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: o corpo falante. Rio de Janeiro: EBP, 2016.
OTONI-BRISSET, F. Simplesmente, parletre. Papers 7.7.7, n. 1, Barcelona, 2018. Disponível em: <https://www.amp-nls.org/nls-messager/towards-barcelona-2018-papers-7-7-7-n1/>. Acesso em: 28 nov. 2022.
1. Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise e Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais em 07/10/2022 em comentário ao texto de Sérgio de Campos, “A presença do analista na psicose ordinária”, também apresentado na mesma ocasião.