Francesca Biagi-Chai
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause Freudienne/AMP
bia.chai@free.fr
Resumo: A autora examina a concepção de despatologização, apresentando os argumentos que justificam a oposição já apresentada no título do texto: a lacaniana e a outra. Se a autora afirma que a instituição lacaniana despatologiza, é porque está concebida segundo a topologia moebiana, regida pelo discurso e pela clínica. A despatologização “selvagem” permite equivaler “o sentimento de cada pessoa” à sua realidade e essa deve, portanto, ser reconhecida como tal. Evidencia-se, assim, a evacuação do inconsciente e, igualmente, do sintoma.
Palavras-chave: clínica; despatologização; gozo; totalitarismo; poder jurídico.
THE LACANIAN DEPATHOLOGIZATION AND THE OTHER
Abstract: The author examines the concept of depathologization, presenting the arguments that they justify the opposition already presented in the title of the text: the Lacanian and the other. If the author states that the lacanian institution depathologizes, it is because it is conceived according to the Moebian topology, governed by discourse and clinic. “Savage” depathologization makes it possible to equate “the feeling of each person” with his reality and this must therefore be recognized as such. It is evident the evacuation of the unconscious and, equally, of the symptom.
Keywords: clinic; depathologization; jouissance; totalitarianism; juridic power.
Despatologizar a clínica – expressão ousada – impõe-se em um tempo em que se substitui a referência no significante por aquela que se ancora na busca de um gozo inflacionário. Com efeito, se a opinião pública até o presente identificava a loucura através dos problemas da palavra e da linguagem, ela não consegue detectá-la no gozo em primeiro lugar.Desse ponto de vista, a sociedade desconhece a loucura; ela também desconhece as estruturas clássicas da neurose. Ela opera uma despatologização selvagem. A isso convém opor uma outra concepção da despatologização, que eu qualifico de lacaniana: despatologizar não consiste em aplanar a clínica, mas manter suas bordas. Que o gozo vem esconder, suplantar a estrutura – no uso feito, por exemplo, do semblante na suplência – não apaga as arestas do real como tal. O real, testemunha da estrutura.
Ponto de partida em Lacan
O momento em que o gozo assume seu valor, seu lugar igual ao significante, marca uma passagem no ensino de Lacan, acentuado como tal por Jacques Alain Miller no Seminário Mais, ainda. É a partir daí que se pode fazer com que o gozo responda à foraclusão generalizada. A partir desse momento, Lacan une, ao condensá-los, significantes da clínica até então separados, fazendo aparecer neologismos equivalentes a uma nova forma de matemas. Assim é o termo lalangue, que se constitui a partir de “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” (LACAN, 1953/1998). Será o mesmo com parlêtre, que tem, diz ele, vantagem em substituir o inconsciente (LACAN, 1975/2003). E o sintoma toma o nome de moterialismo (LACAN, 1975/1998). Podemos entrever esse mesmo princípio na passagem do supereu ao gozo em si mesmo, aquele do eu (moi) ao ego, passando pela dimensão megalomaníaca do eu (moi) que, na psicose, vem sempre no lugar da impossível subjetivação. Esse pré-requisito permite nos orientarmos na concepção da despatologização em direção à qual J.-A. Miller avança através do binário irredutível do ser e da ex-sistência. Essas duas versões do parlêtre, lado significante e lado objeto, apresentam-se como não segregativas entre as estruturas, embora a estrutura não tenha sido excluída.
Consequências do lado do analista
Do lado analista, a primeira consequência concerne à interpretação. Às formas conhecidas de interpretação lacaniana (corte, interpretação apofântica, equívoco) agora se juntam modos de dizer ou de fazer, quando signos discretos da psicose aparecem, signos tais como os que vislumbramos nos consultórios dos analistas. Isso dá um alcance maior ao dizer de Lacan. O analista é um retificador que opera apenas pela sugestão; dito de outra forma, ele não impõe algo que teria consistência, ele se sustenta em ex-sistir (LACAN, 1979). O que faz o verdadeiro ou o falso é o peso do analista, que opera por alguma coisa que não constitui a base da contradição (LACAN, 1979). Lacan não designa o analista como semblante do objeto a? Na psicose, fazer apelo à lógica, por exemplo, para que se produza um assentimento por parte do sujeito, é uma das formas possíveis dessa função do analista (rhéteur). O mesmo acontece quando o analista desliza um significante entre dois S1 independentes. Resta ao sujeito apreendê-lo como uma nuance que faça as vezes de S2, atenuando o poder e a rigidez da cadeia significante. Não se poderia dizer que, na psicose, convém não abordar a questão diretamente (“noyer le poisson”) – em outras palavras, prescindir da localização do falo para se servir dele e se virar com o objeto a no bolso? Na neurose, convém pescar o peixe, pois esse incomoda. Ele impede o acesso ao objeto a, aqui, destacável (GONZALES-RENOU; VIGUÉ, 2021).
A instituição lacaniana despatologiza
Enquanto uma psicose não está desencadeada, pode-se falar, verdadeiramente, de psicose? A psiquiatria começa aí onde o laço social se rompe e onde, no desencadeamento, não há nenhum discurso no qual o sujeito possa se alojar. É por isso que a instituição equivale a uma patologização: é a instituição psiquiátrica que assina a patologização clínica. A questão, então, é: como subverter a instituição e levá-la a uma mudança de paradigma que seja isomórfica ao tratamento do gozo? Tive a oportunidade de organizar no Centro Hospitalar Paul Guiraud de Villejuif o que relatei em Traverser les murs (BIAGI-CHAI, 2020): uma instituição concebida segundo a topologia moebiana regida pelo discurso e pela clínica, e não pelo lugar e o tempo. Essa topologia que não tem temporalidade é, desde então, um apoio contra o deixar cair e a ruptura. Ela participa da despatologização no sentido de que o paciente, seguido por seu psiquiatra, faz uso da instituição: ela se torna, então, instrumento. De fato, ele pode solicitá-la para diferentes modalidades de hospitalização ou acompanhamento fracionado, na medida de seus próprios significantes mestres. É evidente, por exemplo, que, em tal contexto, o conceito de recaída perca todo o seu sentido, assim como os preconceitos que desconsideram a clínica, apostando apenas na vontade e não no inconsciente, com o único propósito de evitar a transferência.
Despatologização e variações da responsabilidade penal
Sem dúvida, é no campo da criminalidade que a despatologização lacaniana é mais capaz de fazer ressoar na opinião pública o próprio significado da ética da psicanálise. De fato, as categorizações da clínica psiquiátrica avançadas como saber já não podem explicar o que preside a passagem ao ato, porque desvinculam o sujeito de seu ato. Extrair a lógica de um crime próprio ao sujeito, a saber, o poder da compulsão, a tentativa ou não de resistir a ela, o crédito e as respostas dadas aos sinais de alerta pelo entorno, é o que se poderia chamar de diagnóstico de gozo. A clínica não desaparece, mas ela se torna bússola para interpretar, e não um objetivo a ser alcançado. Unindo o “todo mundo é louco” de Lacan a seu “Por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis” (LACAN, 1966/1998, p. 873), é bem do gozo que se trata na medida em que o gozo cessa apenas na morte física, ele sempre pode ser interrogado. Despatologizar não deve mais ser entendido no sentido comum de uma subtração da patologia, mas pode ser elevado à altura de um conceito lacaniano.
Debate
Anaëlle Lebovits-Quenehen: Muito obrigada, Francesca Biagi-Chai. Uma primeira questão muito simples, mas me parece que isso conta muito em seu texto: você pode voltar na oposição que faz entre uma despatologização “lacaniana” e uma despatologização, poderíamos dizer, “selvagem”?
Francesca Biagi-Chai: A despatologização selvagem está em andamento. Não seria isso que atravessa a questão trans que levantamos, na qual se diz que as palavras são fatos jurídicos e na qual a evacuação do inconsciente, a evacuação do sintoma, é evidente. E, ao mesmo tempo, dizer isso é afirmar que não existe patologia, que o sentimento de cada pessoa vale tanto quanto sua realidade, realidade que deve, desde então, ser reconhecida como tal. É um totalitarismo que faz equivaler a palavra à coisa. Não há possibilidade para o sujeito se colocar a questão de sua própria divisão, de seu próprio mal-estar, de uma interrogação, de uma sutileza. Não há mais coisas de fineza, nada mais é possível, isso é o que o torna totalitário. É uma despatologização na medida em que, por exemplo, as associações dizem que “não, não é necessário se endereçar nem a um psiquiatra nem a um psicanalista, nem a ninguém”, porque no fato de encontrar um psiquiatra, um psicanalista, há o risco de patologizar a pessoa. Então, se se quer mudar de sexo, isso se faz automaticamente; no “automaticamente” há uma redução, um desaparecimento do inconsciente, que é evidentemente muito inquietante, selvagem, desde que o sujeito não possa desenvolver, ele mesmo, os significantes de sua própria mudança, a significação de seu próprio desejo.
Jacques-Alain Miller: Sem dúvida, é suficiente uma declaração perante as autoridades: “Eu sou uma mulher”; e você é uma mulher, mesmo se não tocamos no seu corpo.[2]
Francesca Biagi-Chai: Sim, é isso. Eu sou isso que eu digo.
Jacques-Alain Miller: Sim! Poderíamos dizer que é a partir do momento em que se é cidadão que isso tem peso. Mas, não! Se falamos isso aos três, quatro anos, todo o mundo se mobiliza. É enorme, você tem que se beliscar para acreditar, mas esse é o discurso. O Estado de Direito se tornou louco. Em sua intervenção, você leva isso às últimas consequências e encontra o ponto de reconstrução, no qual “todo mundo é louco”, mas, em particular, o Estado de Direito.
Francesca Biagi-Chai: Isso vai muito longe; por exemplo, até nas acusações. É suficiente que alguém tenha sido acusado para que o que foi dito sobre ele seja verdade. Não somente o inconsciente desaparece, mas a justiça também. Todo o percurso desaparece.
Jacques-Alain Miller: Não se faz qualquer pergunta e entende-se que o simples fato de que os analistas queiram lidar com isso é patologizar. O Estado de Direito não tem nada a fazer com os psicólogos. Com os médicos, é diferente. Não se faz qualquer pergunta e entende-se que o simples fato de os analistas quererem tratar do assunto é patologizar.
Francesca Biagi-Chai: Eles precisam dos médicos.
Jacques-Alain Miller: Eles precisam de médicos, e isso até o fim de seus dias, mas isso não entra em conta diante do poder do direito, o poder jurídico. Como isso é feito em nosso país, dar as chaves de nossa civilização aos juízes? Quando se franqueia os limites do Ocidente, a questão se coloca diferentemente, porque o Estado de Direito não existe: isso protege, de qualquer forma, essas loucuras.
Francesca Biagi-Chai: Sim, porque é totalitarismo contra totalitarismo.
Jacques-Alain Miller: O que você traz é o totalitarismo jurídico. O Estado de Direito tem o poder de prendê-lo ou de lhe impor multa se você não obedece, o que é absolutamente espantoso.
Francesca Biagi-Chai: Foi isso que me impressionou, que todo os saberes desaparecem, o saber mesmo desaparece, o trauma desaparece, não há mais trauma. Não há mais choque de lalangue sobre o corpo, tudo isso desaparece totalmente.
Jacques-Alain Miller: Com a Escola da Causa Freudiana construímos uma pequena barragem com duas emendas.[3] Mas ela é frágil e pode ser submersa por uma onda. Há sempre cantos onde não se atreveram a vir nos buscar, mas a perspectiva é verdadeiramente a clandestinidade, como foi o caso para a psicanálise no Leste – como na Hungria –, onde se continua a psicanalisar de uma forma muito honrosa. Nosso futuro é talvez nas catacumbas.
Francesca Biagi-Chai: Queremos deixar claro que a identidade não é a identificação, já que agora identificamos alguém a uma pequena parte dele próprio, a uma pequena parte corporal. Somos identificados a um trecho de vida, a um troço de pele, a uma cor de pele… Tivemos que trabalhar. Esse termo de identidade participa desse desaparecimento do inconsciente e contribui para o totalitarismo.
C. Dewambrechies-La Sagna: As propostas de F. Biagi-Chai me fizeram pensar em uma garota que recebi essa semana, vinte e três anos, assediada por um garoto há oito anos, vindo à clínica sentindo-se tão desesperada ao ponto em que tentou se suicidar. O jovem foi, portanto, condenado com uma suspensão e proibição de se aproximar dela. Quando a jovem é questionada, escutamos que ela vê esse rapaz em todos os lugares. Ele está em todos os lugares, em cada esquina. E, um dia, ele estava na casa de uma amiga quando ela estava lá. Ela perguntou a essa amiga como se chamava o rapaz que estava no outro canto da sala. A amiga falou o nome do rapaz. Assim, a jovem apresentou uma queixa contra ele. Ele foi, então, condenado, apesar de nunca ter falado com ela. Ele provavelmente nunca a seguiu. “Mas como você sabe que ele está seguindo você?”. “Bem ele tem um Citroën vermelho… ou cinza…”. Eu disse: “Vermelho ou cinza?”. Ela responde: “Ele trocou de carro”. Assim, para entrar no delírio, assistimos a uma remodelação permanente em função do que é do real. Em seguida, três gotas de pirlimpimpim e a jovem logo se sentirá melhor. Tudo isso vai ser completamente esquecido. Não necessariamente para aquele que foi condenado. Nem por ela, cujo status e mundo mudam. Isso apoia o fato que a terapêutica medicamentosa irrealiza.
A. Lebovits-Quenehen: Esse é um ponto muito importante. Na despatologização, o fator da eficácia medicamentosa é maior.
C – Dewambrechies-La Sagna: Isto foi importante. Você disse isso, Jacques-Alain Miller, em seu curso uma vez: nós esvaziamos os hospitais psiquiátricos e isso é uma coisa boa, mas ao mesmo tempo não é suficiente. É necessário um acompanhamento para essas subjetividades que são completamente reviradas pelo fato de passar de um estatuto a outro. O estatuto de ser assediado não é, de forma alguma, o mesmo que o estatuto de estar em plena forma. Seu mundo muda, todos os seus amigos reclamam de você, chamam você, perguntam se você está sendo seguido. Em breve, não vamos lhe perguntar mais nada pois você não terá mais nada a responder a esse respeito. Contudo, há todo um universo a ser reconstruído de forma diferente, com outros suportes. Eu penso nisso como um exemplo muito recente: ouvi a semana passada – talvez como alguns de vocês – um programa sobre hipocondria na rádio France Culture. É fascinante, a hipocondria. É suficiente dizer à pessoa: “Você já teve ideias como essa?”. “Oh, sim, desde os vinte anos”. “Escreva suas ideias em um caderno”. A pessoa escreve: “Eu tive um tumor cerebral aos vinte anos”, e lhe respondemos: “Você pode ver que esse tumor não avança tão rápido”. E é suficiente também dizer aos hipocondríacos para não irem ao Google com a ideia de que, se não forem verificar, talvez fiquem um pouco menos doentes. Todos os estudantes de medicina têm todos os sintomas, estão doentes; isso faz parte das coisas habituais”, proferem esses especialistas que trabalham em grandes serviços, tendo consultas em grandes serviços parisienses. Eles ousaram falar assim sobre o problema da hipocondria; embora os hipocondríacos, quando sofrem de hipocondria, são pessoas que se torturam muito.