ROSIMEIRE SILVA
Bom dia a todos! Eu quero começar, como convidada que sou, agradecendo o convite para estar aqui e a todos pela presença e resposta a esse convite. É muito bom poder estar aqui. Para mim, que venho das barrancas do São Francisco, do Sertão, este lugar, este momento, se constitui como uma vereda, um bom momento, um bom lugar para parar e pensar a vida. No meio do sertão, é sempre difícil, sob o sol escaldante, no meio da terra ressequida, pensar a vida no caminhar dela, daí a importância de ter uma vereda, por isso o grande sertão tem dois pontos, e é vereda também. Então, considero este momento como um momento de refresco, porque, como coordenadora da política de saúde mental da cidade, tenho sido interpelada, todos os dias, várias vezes por dia, a responder algo sobre as drogas, sobre esse novo fenômeno, essa nova dimensão que a toxicomania coloca hoje para a sociedade.
E, infelizmente, nem sempre somos convidados a pensar. E quando ousamos fazê-lo, não nos recusamos a pensar, não é do nosso feitio recuar, pagamos o preço por introduzir, no coro dos aflitos, uma nota dissonante. Então, estar aqui e poder conversar, conversar com pessoas que querem pensar sobre o assunto, e não se anestesiar com o tema, que é o que a droga vem produzindo hoje, uma intoxicação da sociedade que nos impede de pensar o que isso nos diz sobre nós mesmos, é muito bom. Henri já introduziu, um pouco, a história que nos trouxe aqui. E, de fato, é essa a história, à qual fazemos apenas um acréscimo. Ou melhor, dois agradecimentos: primeiro, ao Fred e à Helenice e, depois, à Cristiane Barreto, por termos dialogado em momentos distintos e delimitado quais eram as preocupações de lado a lado. Aos três e ao Henri, nosso obrigado.
Vamos lá. Quero dividir com vocês um pouco da elaboração que temos feito dentro da política de saúde mental de Belo Horizonte, não sem antes destacar que entendemos que uma política de atenção aos usuários de álcool e outras drogas não é uma política que se reduz à intervenção da saúde, tampouco da saúde mental. Mas deve ser fruto de uma ação intersetorial. Quando o Henri me pergunta o que pensa a Prefeitura, eu posso dizer a todos o que tem sustentado, e não sem dificuldades, a saúde mental, e que a Prefeitura reflete o que está posto na sociedade. Tem o nosso pensamento e tem o pensamento moralista, dentro dela, e é na discussão, no debate, no enfrentamento, no diálogo cotidiano, que temos construído as possibilidades para continuar a sustentar a política na qual acreditamos: uma política não segregativa, como já anunciou o Beneti. Vamos ao texto.
No meio de todo caminho, sempre haverá uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas
nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra.
(Carlos Drummond de Andrade, 2009, p.267)
Após se confrontar, inventar respostas para a questão: é possível um novo lugar social para a loucura? — pergunta que a fez surgir como uma política — a Reforma Psiquiátrica é, hoje, convocada a responder a outro e novo desafio. Qual o lugar e como responder aos que encontram nas drogas o modo de se experimentar humano? Encontro, vale dizer, nem sempre saudável ou feliz, mas ainda assim um encontro. Um modo de resposta ou solução adotada por alguns para tratar o mal-estar, sua falta de lugar. Enfim, uma solução, um dos destinos possíveis para a pulsão que pode e deve ser assim escutado e tratado. Um modo de resposta que pede à sociedade para não recuar diante de uma das expressões do dano causado pela civilização, sendo ainda capaz de formular a esse mesmo mal respostas solidárias, cidadãs e, sobretudo, singulares.
Um bom desafio. Ou melhor, um desafio que, para ser verdadeiramente bom e produtivo, deve provocar mais perguntas que respostas, mais dúvidas que certezas, menos expertise e mais vida. A política do mal-estar deve, ao mesmo tempo, ser capaz de ofertar e sustentar uma clínica cidadã, tratando em liberdade e com dignidade os que sofrem e, indo além de si, deve intervir sobre a cultura da exclusão que os ameaça. Uma clínica antimanicomial da toxicomania não pode se furtar a questionar os nomes com os quais a sociedade define a drogadição e os sujeitos que se intoxicam. Drogado, delinquente, criminoso, pecador ou doente são, sem exceção, identidades marginais e, como tais, coladas a um destino previamente traçado: fora da cidadania. Desconstruir tais identidades é condição preliminar para tratar a singularidade de cada experiência de drogadição.
A articulação entre a clínica e a política, pressuposto que há algum tempo nos orienta, novamente mostra sua validade. Campos distintos, porém conexos, que podem ser mais fecundos se e quando perpassados por uma mesma orientação ética. Tratar a drogadição, em sua dimensão singular, convoca o Estado e a sociedade a adotarem e oferecerem estratégias e recursos de proteção que reduzam os danos à vida, criando dispositivos de suporte necessário a cada situação, ampliando, desse modo, as respostas possíveis para o sofrimento, sem, no entanto, ceder à armadilha fácil do ecletismo, do vale-tudo. A complexidade e diversificação necessárias à criação de uma rede de atenção precisam de eixo, carecem, sempre, de orientação.
Se ao Estado e à sociedade cabe a tarefa de recusar o ecletismo produtor de excesso de ofertas sem orientação, repudiando também o atalho reducionista que adequa os sujeitos a um único lugar, do lado dos usuários, também ocorrem mudanças. O convite passa a ser outro: de submisso à norma contra a qual se revolta em sua escolha de satisfação pulsional, este é agora convidado a responder pelo próprio prazer, a encontrar sua medida, seu jeito próprio de minimizar os riscos, aceitando o desafio de “exercer sua liberdade”, como definiu um usuário de crack. Coisa difícil de fazer! Fácil, mesmo, é prescrever, ditar e escutar regras para disciplinar o prazer ou gozo, ainda que saibamos de antemão que são grandes as chances de fracasso.
Muitos são os desafios que espreitam a Reforma Psiquiátrica, nesse encontro com os usuários de álcool e outras drogas. Dentre estes, destaco dois. Primeiro, o desafio e a necessidade de distinguir, no meio da algazarra autoritária e silenciadora, a voz a ser escutada: a do usuário. Discurso ainda ausente no debate sobre a política, a palavra do usuário deve ser sempre a bússola a indicar o caminho. E, segundo, o desafio de manter a firmeza necessária para não ceder a pressões e chantagens políticas e sociais ofertando uma pluralidade de serviços orientados por éticas opostas. Querer conciliar o inconciliável é optar pelo atalho. Um tipo de solução ao mesmo tempo simplista e total, que quase sempre camufla diferenças em nome de interesses, por vezes, incompatíveis com os interesses públicos.
A Pedra No Meio Do Caminho: Epidemia Do Discurso Moral?
A pedra que se impôs ao caminho da Reforma: o crack, curiosamente, não é o principal anestésico adotado para tratar o mal-estar pela maioria dos jovens brasileiros. Ao contrário do que se afirma, os índices de consumo de crack no Brasil não chegam a 1%. De acordo com o último levantamento realizado pelo CEBRID, 0,7% dos jovens fez uso dessa droga uma única vez, ou seja, encontraram no crack, em algum momento de suas vidas, o lenitivo ou a distração que buscavam. E 0,2% estabeleceu com o mesmo uma relação de dependência. O número dos que usaram uma única vez, de acordo com o professor Elisaldo Carlini, um dos autores da pesquisa, permanece estável sete anos depois (0,7%). Ou seja, em 2011, o índice de consumo de crack entre jovens está longe de configurar uma epidemia. E, de acordo com o Prof. Carlini, o último levantamento sobre consumo de drogas revela que foi insignificativo o número dos que usaram crack mais de 20 vezes. Ainda de acordo com o CEBRID, as drogas mais utilizadas pelos jovens são o álcool, seguido pelo tabaco, depois os solventes, maconha, cocaína, crack, anfetamínicos, ansiolíticos, entre outros. Como se vê, são as drogas lícitas os meios mais utilizados para afastar o mal-estar.
Os dados do CEBRID coincidem com os levantados pela Equipe de Saúde da Família dos adolescentes privados de liberdade. Dispositivo de cuidado criado pela Secretaria Municipal de Saúde para atenção aos adolescentes infratores que leva a saúde ao encontro dos adolescentes, no tempo do cumprimento de uma medida. Entre os adolescentes privados de liberdade, o crack é utilizado por menos de 1%, sendo também bastante reduzido o número de ocorrência de crises de abstinência de drogas entre estes. E isso indica um modo de uso da maioria desses adolescentes que não se caracteriza como dependência.
Entre os meninos e meninas em situação de rua, público atendido pelo consultório de rua, dispositivo da rede de saúde mental criado para atender, prioritariamente, crianças e adolescentes nessa situação e que façam uso de álcool e outras drogas, ou seja, vivendo numa dupla situação de vulnerabilidade, a droga utilizada não é o crack. O tóxico que os anestesia é o mesmo de 30 anos atrás: thinner e loló.
Embaraçados e em conflito com a lei, os novos e pequenos sujeitos do perigo social têm recebido um duro tratamento para suas questões. O leque de opções ou de ardis, com os quais nosso tempo tem respondido a esses sujeitos, não os convida a fazer parte da comunidade humana. A resposta que nossa sociedade tem dado ao que escapa à norma, aos atos dos adolescentes que transgridem ou perturbam a norma social, tem condenado e conduzido parte de nossos jovens ao encarceramento precoce. Uma realidade que pede denúncia e reivindica oferta de dispositivos capazes de acolher o estrangeiro que habita esses pequenos corpos. Respostas que deem lugar ao mal e à loucura de cada um, possibilitando a invenção de modos singulares de inscrição da diferença no universal da cidadania.
Cabe, então, indagar aos que sustentam a existência de uma epidemia de crack no país sobre o que estão falando ou do que querem falar e quais são suas reais preocupações. Serão os perturbadores efeitos da drogadição hoje? Ou será o drama real dos que sofrem com a dependência?
Tratar o uso de crack ou de qualquer outra droga como uma epidemia pode, facilmente, nos conduzir à adoção e autorização de medidas de força, à implantação de ações repressivas que, além de precipitar intervenções sanitárias de caráter higienista, trarão pouco ou nenhum alívio à dor dos que, de fato, sofrem com as consequências de uma dependência. O tratamento de uma epidemia requer uma ação imediata e autoriza o Estado a intervir sobre a vida privada, e essas medidas costumam causar mais dor. Caso não se faça o corte, não se entoe a nota dissonante ao coro dos aflitos, a crença na existência de uma epidemia de crack acabará nos conduzindo ao desrespeito à democracia e aos princípios legais, reguladores do viver comum. É preciso cautela na escolha, pois já nos advertiu Guimarães Rosa: “querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode estar sendo se querendo o mal, por principiar” (ROSA, 1984, p.16).
Um outro dado que chama a atenção não tem sido destacado no debate sobre as drogas, ou seja, o número dos jovens que estabelecem com as drogas uma relação de trabalho. A inserção de crianças e adolescentes nas redes de tráfico foi definida pela ONU como uma grave violação de direitos humanos, como a pior forma de trabalho infantil. E o Brasil é um dos países signatários desse tratado, fato que impõe a seus governantes e à sociedade a tarefa de responder a essa realidade com a urgência e a delicadeza necessárias. Crianças e adolescentes fora da escola, trabalhando para o tráfico, retratam uma violência socialmente produzida e sustentada. Trabalhar para o tráfico não é necessariamente uma escolha individual. Mas condição intimamente associada à miséria e à falta de escolhas.
Crack, Lixo, Cracolândia: O Que Essa Associação Indica?
O debate que coloca o crack como seu ponto central produz nomeações, inventa lugares e reedita políticas de segregação e exclusão como resposta para o mal-estar. Entre as nomeações propostas e os lugares inventados, uma faz eco pelo país: a chamada cracolândia. A imprensa insiste em sua existência, conhece o mapa de sua localização e afirma haver na cidade o lugar que é a pátria dos craqueiros. As imagens desse país distante/próximo, desse lugar êxtimo — distante porque ali se conjura e se tenta expiar todo o mal, toda a ameaça, demarcando a fronteira do inimigo a ser combatido, e próximo, porque, ainda que se insista e se repita a localização desse lugar como estrangeiro, apartado de nós, ele, entretanto, está encravado no corpo da cidade e traz os signos do imundo. Esse pedaço da cidade tem em comum com seus habitantes três condições: a sujeira, a ausência de beleza e a violência. É assim em São Paulo, também é assim em Belo Horizonte. Nesse ponto equidistante, porém cravado no corpo da cidade, a sociedade busca conjurar e expiar todo o mal, toda ameaça, demarcando a fronteira do inimigo a ser combatido. A população desse território, seus moradores e os usuários de crack vivem na mesma condição: à margem de quase todos os direitos sociais.
Cracolândias não são lugares em si, são efeito de discurso. Portanto, móveis, deslizantes. Hoje, na Pedreira, amanhã, poderá ser na Serra ou em outra favela qualquer da cidade. Essa alcunha preconceituosa, cracolândia, é, sobretudo, o modo como a imprensa e a cidade localizam e conjuram seu mal em territórios esquecidos pelo Estado. Lugar dos abandonados e pobres, onde lixo e sujeira se acumulam. Lugar onde homens e mulheres, invisíveis à cidade, dividem com o lixo um mesmo território.
O lixo que cerca os homens e serve de espelho para sua condição não é, contudo, uma escolha individual. É negligência pública, é hipocrisia social, que vê, nos corpos, sujeira e degradação, sem enxergar, ou melhor, ignorando a responsabilidade que cabe a todos e ao poder público na produção e tratamento adequado dos resíduos diários. Eis aqui uma tarefa que nos compete: o trabalho de desconstruir a articulação significante crack/lixo, pois sabemos que a mesma, além de evocar uma identificação com o dejeto, autoriza a violência e a arbitrariedade.
Cada época tem sua própria droga, afirmam alguns estudiosos. A nossa não poderia ser outra, senão o crack. Veículo que conduz ao prazer fugaz e imediato, bem de acordo com o ideal do nosso tempo, que prediz o consumo como um imperativo e uma necessidade inadiável. Uma máxima para a nossa sociedade poderia ser assim formulada: consumir, é preciso; viver, não é preciso. [1] Nessa sociedade de consumidores, diz Bauman,
[…] a percepção e o tratamento de praticamente todas as partes do ambiente social e das ações que evocam e estruturam tendem a ser orientados pela síndrome consumista, que, encurtando drasticamente o lapso de tempo que separa o querer do obter, coloca, entre os desejos humanos, a apropriação, rapidamente seguida pela remoção de dejetos, no lugar de bens e prazeres duradouros (BAUMAN, 2009, p.109)
Ou, nos dizeres de Saramago: “como tudo na vida, o que deixou de ter serventia deita-se fora. Incluindo as pessoas” (SARAMAGO, 2000, p.130). Noutras palavras: somos uma sociedade produtora de lixo, de restos materiais e sociais, viciada em consumo e em descarte.
A Pedreira Prado Lopes não é a cracolândia, mas continua a ser um bairro pobre, onde a violência é cotidiana. E onde, hoje, o uso do crack se faz em público. A fantasia do mal que circula pela cidade diz que o crack é próprio daquele lugar. Mas sabemos, ou temos razões para desconfiar, que ele está em todos os lugares: nos becos, nas bocas, nas favelas, mas também nos bairros nobres ou da classe média, nas escolas, nas casas, nas prisões. Circula pela cidade, de mão em mão, ou de boca em boca, e funciona não só como anestésico para a dor, ou via de acesso ao prazer solitário e pleno. É também objeto de trabalho e aditivo do qual alguns lançam mão, para poder produzir mais e melhor.
O efeito de adesão ao ideal capitalista é evidente no modo de uso do crack adotado, por exemplo, por pescadores e cortadores de cana-de-açúcar. No universo dos craqueiros, nem todos o utilizam para se desligar do mundo. Alguns, submetidos a desumanas condições de trabalho, usam crack para melhor se ajustar ao modo de produção capitalista, cada dia mais cruel e impiedoso. Muito bem ajustados à engrenagem capitalista, nem por isso esses sujeitos se salvam. Aqui, na Pedreira, encontramos uma versão desse modo de uso: trabalhadores, de áreas diversas (encrachazados, como brinca a equipe), sobem o morro, no fim do dia de trabalho, em busca de crack. Lá, fazem seu uso, retornam a suas casas e vidas, depois de um breve intervalo entre o labor e o prazer.
Em nossas andanças pelos becos e ruas, ao lado de usuários de álcool e outras drogas, vamos cuidando, recolhendo palavras, resíduo humano que ajuda a tecer o laço, e aprendendo com o que a realidade nos traz.
Extraímos da prática cotidiana pontos de orientação. Identificamos traços de diferença na relação com as drogas: efeitos e modos de uso. Aprendemos a reconhecer as drogas presentes em cada território e os cenários que propiciam ou que se criam no momento do uso. Com as crianças e adolescentes, por exemplo, identificamos um traço comum e sempre destacado nos estudos sobre população em situação de rua: o uso da droga como um momento de convívio e troca. Em torno do thinner e do loló, as crianças e adolescentes de rua, assim como os adultos de rua fazem com o álcool, se juntam, se conectam, dividem histórias e superam a solidão da vida nas ruas. A droga, nesse cenário, aparece como remédio para a dor singular, mas também como antídoto contra a solidão.
Nessa cena de uso de drogas, trabalhamos usando a disposição para o laço a favor de um tratamento possível, ou seja, estimulamos o convívio entre eles e a cidade, introduzindo na roda outros objetos: tinta, pincel, ingresso de cinema, circo, passeio, atividades, como modos substitutivos de satisfação pulsional, e convidamos a outros laços com a vida, com o mundo, com o Outro.
Esse tem sido o momento mais ameno, mais fácil. A dificuldade com essas crianças não é dada pela dependência do thinner ou do loló. Não é ditada pela droga, mas pelo osso da vida. Sem redes, equilibrando-se sobre o abismo da desproteção, “alimentando-se de blues” (HOLLANDA, 1984), esses meninos e meninas atiram pedras, ficam nus, caem, riem, são ameaçados de morte, esquivam-se ao contato, à aproximação, e resistem a abandonar o laço com a rua e seus perigos. Dizem: “prá casa não volto”. O nó dessa experiência passa pela conquista de uma morada para o cidadão que também acolha as questões do sujeito. Encontrar a via de retorno a casa e à família, sem tolas imposições de adequação ao que fracassou (a família) e sem tampouco precipitar a saída, enxergando casa onde há apenas simulacro desta, teto e cama, sem singularidade e afeto, traços marcantes da institucionalização das diferenças, tem-se mostrado uma dificuldade real. A saída aqui pede recursos de outras políticas, demanda o trabalho em rede, efetivo e potente.
Com o crack, a história é outra. “Quando uso isto aqui, não gosto de nada, não”, palavras de um usuário que demarcam o momento em que a abordagem não é bem-vinda. Gozo solitário, breve, desconectado do Outro, mesmo quando próximo, cuja possibilidade de entrada passa pelo adiamento de outra experiência de satisfação, gerando um intervalo que também é redução de danos.
Na estratégia de reduzir os danos, a saúde vai aprendendo a medida da satisfação com cada sujeito, oferecendo a cada um recursos parciais, pequenas estratégias que convidam a outro modo de cuidado de si. Deixando a droga à margem, cria chances para o sujeito, distraída, disfarçada ou decididamente, fazer perguntas, pedir ajuda, aceitar o laço com o Outro e se deixar acompanhar. Buscar o laço é orientação também nesse cenário. E aqui tiramos partido do intervalo. Entre uma pedra e a próxima, a acolhida e a conversa com a equipe, eis que surge uma novidade: a instituição, pelos usuários, da regra fundamental. “Não fumar, para conversar”. É preciso falar, colocar palavras, e não pedras, sobre o vazio, para fazer margem e circunscrever o gozo. A equipe se posiciona e trabalha buscando dilatar o tempo, fazendo mais atrativa e interessante a conversa que enlaça uns aos outros, permitindo que a palavra circule e crie possibilidades para que um pedido ou um convite ao tratamento encontrem condições para acontecer. E isso confirma que o contrário da dependência não é a abstinência, mas a liberdade.
É assim, na semeadura e coleta diária no campo de trabalho, com palavras e artefatos distintos, que se tecem os laços entre usuário, equipe e moradores do território, possibilitando a quem deseja e pede acessar as redes para escapar à destruição, seja pelo gozo irrefreado do objeto ou pela violência que envolve seu consumo e comércio.
Temos aprendido, a cada dia e com cada usuário, que o que toca a flor da pele, [2] convulsiona, aperta o peito e faz delirarem meninos, mendigos, malucos, bandidos, santos, padres e juízes não pede mais remédio, pede pensamento. Solicita mais poesia, mais arte, mais cultura, mais sublimação, contornos e direitos. Grades e prisões são dispensáveis. Para o humano, o que produz humanidade não é a grade, mas o Outro: seu desejo, seu corpo, cheiro, suas palavras, seu afeto e aconchego. É o laço com o outro e com a rede — invenção que se faz com homens, ideias e afetos para fazer caber homens, ideias e afetos — o que permite a construção de saídas possíveis.
Concluindo: “Enquanto todo mundo espera a cura do mal, e a loucura finge que isto tudo é normal, eu finjo ter paciência” (LENINE; FALCÃO, 2000).
O que fez surgir uma política pública de atenção aos portadores de sofrimento mental foi a ousadia de pensar diferente do estabelecido, num momento em que isso era uma ofensa mais grave do que hoje. Além do questionamento à instituição psiquiátrica, tida como insubstituível, pensar diferente do que propunha o Estado, naquele momento político, podia ter consequências muito diversas e mais duras que a mera diferença de ideias.
Pensar o inexistente, a sociedade sem manicômios, desejá-la real num futuro que fosse a consequência de nosso presente e a substituição rigorosa e efetiva de nosso passado antecedeu toda e qualquer condição de fazer existir um novo locus para uma prática democrática e viva de trato e relação com a loucura. Portanto, foi da força de uma ideia, de uma proposição desconcertante, vinda de um lugar não autorizado socialmente como produtor de pensamento — o movimento social — que um acontecimento histórico se forjou e se inscreveu como condição de vida a ser inventada na liberdade.
Patrimônio de uma luta e fonte renovável de recursos que a permite ir além e enfrentar obstáculos, cuja valorização e defesa se fazem necessárias, num tempo que busca, por diferentes estratégias, reduzir a tudo e a todos à dimensão de algo a ser contabilizado, medido. Um tempo no qual todo excesso, não importa se de vida, de desejo, sonho, tristeza ou dor, deve ser reduzido ao padrão da norma, deve ser enquadrado, anestesiado, silenciando toda pergunta. Eis aqui um sutil obstáculo ou desafio posto no caminho da Reforma Psiquiátrica e da psicanálise: a redução do homem a um objeto contabilizável e do psiquismo às reações neuronais ou bioquímicas.
O acúmulo ético/prático e teórico construído pela Reforma Psiquiátrica tenta alcançar os novos sujeitos do perigo social: os cidadãos que fazem uso ou abusam de drogas lícitas e ilícitas. A política que ousou romper com a exclusão e a segregação, como modos de respostas à loucura, toma posição e busca responder às questões postas pelos que encontraram nas drogas a via para escapar ao mal-estar, sem ceder à demanda social que demoniza e criminaliza uma experiência eminentemente humana. Seu encontro com os usuários de álcool e outras drogas terá mais chances de êxito, caso saibamos, todos, tirar proveito de um dos aprendizados da clínica com a loucura em liberdade, que é a capacidade de saber ver além do que o olho da razão é capaz de captar, para escutar a verdade do desejo de cada um de nós. Essa é nossa real expertise e é o que de melhor temos a oferecer aos novos e antigos demônios. Não é mais técnica, e sim mais vida.
O presente e o destino da Reforma Psiquiátrica e dos que fazem uso de álcool e outras drogas nos convocam a tomar posição política.
A nós: militantes da causa e descoberta freudiana e da luta contra todos os manicômios; a nós, meio tortos, que nascemos com a sina de não nos furtamos de tentar ajustar um mundo torto; que nos recusamos a ser reduzidos à condição de servidores de uma normalização do homem, que não recuamos da posição de testemunhas de uma prática e de um pensamento de insubmissão, em que solidariedades se buscam, na construção de um tempo melhor, terminamos lembrando o que nos ensina Freud: “[…] a vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis” (FREUD, 1929, p.93). E pede-nos, acrescentamos com Guimarães Rosa, coragem. Coragem, para viver e seguir fazendo valer nosso desejo, a despeito de todas as pedras no meio de nossos caminhos.