YVES VANDERVEKEN
Em direção a uma generalização da clínica dos signos discretos[1]
YVES VANDERVEKEN
“A psicanálise muda. É um fato” (MILLER, 2016, p. 26). Essa é a constatação que Jacques- Alain Miller faz, em seu texto de apresentação do tema do X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que aconteceu no Rio de Janeiro em abril de 2016.
De uma transformação do inconsciente…
Essa constatação traz, ou mesmo se deduz, de uma transformação do inconsciente. Jacques Lacan a havia antecipado em seu ensino. Ele acabou por abandonar o termo inconsciente para substitui-lo pelo neologismo falasser – em condições melhores de representá-lo. Essa transformação tem sua origem na mudança de época e daquilo que decorre como mutação da estrutura do Outro. Ora, é justamente no Outro que o sujeito encontra as coordenadas de seu inconsciente.
É a questão do recalque que se encontra no cerne mesmo dessa mutação. Nascida na época vitoriana, em um contexto de quintessência da repressão sexual, a psicanálise se pratica hoje em um contexto de liberação dos costumes, do direito ao gozo e de um acesso generalizado à pornografia. Para além do complexo de Édipo, que ele não deixará de desconstruir ao longo de seu ensino, não é à toa que Lacan isolará a estrutura mitológica de Hamlet na medida em que ela se distingue daquele. A distinção entre o Édipo e Hamlet diz respeito justamente à questão do recalque. Lacan insiste: lá onde o Édipo não sabia, onde as coordenadas de seu crime eram recalcadas e não sabidas, Hamlet, ele sabe. É nesse ponto de distinção que Hamlet aparece como sendo mais propício do que o Édipo a incarnar a estrutura da questão neurótica de hoje. O importante é perceber a que se refere esse saber revelado, essa é a questão a ser delimitada. Eu usarei esta conferência[2] para isolar essa resposta, como ponto final.
Mas digam-me: inconsciente, recalque, complexo de Édipo, não são justamente nessas referências que se fundamentam as distinções entre nossas grandes estruturas clínicas – e a partir das quais situamos a orientação do tratamento?
Sem dúvida, nossa prática se orienta, a partir de hoje, menos pela questão do recalque e de sua suspensão em termos de verdade revelada do que pelo impacto do significante sobre o gozo do corpo enquanto tal.
…E de seu impacto
O que acontece, nesse contexto remanejado, com as nossas referências e categorias clínicas? As coisas devem ser novamente definidas, os contornos devem ser constantemente redesenhados. Isso é tudo, menos simples. É nesse contexto que orientarei esta conferência de abertura do ano de trabalho da London Society da New Lacanian School.
Trataremos aqui de questões clínicas e das dificuldades que podemos encontrar nessa clínica a partir de nossas referências clássicas. Através do que se apresenta como questões diagnósticas, colocam-se também questões muito concretas.
Em psicanálise, além do diagnóstico enquanto tal, apoiamo-nos em referências clínicas diferenciais. Por que? Justamente porque elas são determinantes para orientar nosso ato e a direção do tratamento.
Somos classicamente formados para saber que o tratamento de um sujeito psicótico não se orienta como o de um sujeito neurótico. É por isso que nossas referências diagnósticas importam, mesmo que, ao desenharmos grandes linhas estruturais, configurações precisas das coordenadas subjetivas, elas não digam nada sobre o que representa a singularidade de um sujeito.
É um paradoxo lógico que sustentamos, diante do qual não recuamos: duas verdades opostas podendo ser verdadeiras ao mesmo tempo. Tudo depende do ângulo pelo qual abordamos o real em jogo. Foi apoiando-se em um tal paradoxo que Lacan pôde dizer que nada se parece menos com um neurótico obsessivo – uma categoria geral e universal – do que um outro neurótico obsessivo – uma singularidade absoluta. É o que torna a relação entre o singular e o universal ao mesmo tempo tão necessária, mas também tão precária.
A abordagem do real clínico por um viés pode ser radicalmente diferente de sua abordagem por um outro, sem que um anule, no entanto, o outro – assim como a segunda tópica freudiana não anula em nada a primeira, ou, ainda, o último ensino de Lacan não põe um fim ao seu primeiro.
J.-A. Miller não hesita em nos convidar a fazer “remendos” a partir dos diferentes tempos dos ensinos freudianos e lacanianos porque eles nos permitem tomar conhecimento, visto que são verdadeiros, de um real que a verdade só consegue alcançar por partes.
Nessa perspectiva, nós nos permitimos, por exemplo, apoiar-nos, ao mesmo tempo, em uma clínica binária, descontinuísta, e em uma clínica continuísta, tomada por um outro ângulo. Fazemos as duas; às vezes até as duas ao mesmo tempo. As duas são importantes, cabe a nós precisá-las.
O binário neurose clássica ou psicose desencadeada: sua eficácia, um limite
Por um lado, apoiamo-nos em uma clínica diferencial que se baseia no binário neurose/psicose. Podemos reduzi-la a esse binário, pois a categoria de perversão está sujeita à contestação. Ela está caindo em desuso, devido ao fato de que as coordenadas da nossa época são, enquanto tais, perversas, e sem contar, voltaremos a isso, com a natureza perversa em si da sexualidade do falasser.
Esse binário clínico oferece uma base inestimável. Mas ele é também rígido e restrito. Ele repousa sobre “um ‘ou isso, ou aquilo’ absoluto” (MILLER, 2015, p. 3). Foi preciso que constatássemos que toda uma parte da clínica não entra nessa dicotomia neurose clássica/psicose desencadeada, se radicalizamos as coisas. Nem sempre é fácil decidir a partir dessa referência diagnóstica, e isso, às vezes, depois de vários anos de análise.
Essa dimensão não satisfatória, não discriminante do binário clínico neurose/psicose, é abordada há vários anos em nosso Campo Freudiano, através do que podemos chamar de um verdadeiro programa de pesquisa. O sintagma “psicose ordinária” encontra sua origem nessa dificuldade. Ele encontra aí sua origem, para ultrapassá-la. Ele é oriundo – ou melhor, construído – por J. -A. Miller a partir do último ensino de Lacan.
O impasse borderline
A “psicose ordinária” é uma resposta à categoria borderline, tão desenvolvida no mundo anglo-saxão, essa categoria borderline sendo, ela mesma, uma tentativa de resposta a essa mesma dificuldade clínica. Entretanto, lá onde a categoria borderline supõe uma terceira estrutura clínica (nem neurose, nem psicose) – o que só faz multiplicar os impasses das estruturas clínicas –, o sintagma “psicose ordinária” insiste em fazer fundo ao binário neurose e psicose – para finalmente subvertê-lo, ou mesmo ultrapassá-lo. Um pouco sob a modalidade de um “prescindir dele, servindo-se dele” (LACAN, 2007, p.132), é precisamente o que Lacan acabará por dizer do Nome-do-Pai.
Classicamente, J.-A. Miller indica que havia uma certa diferenciação “supostamente absoluta entre a neurose e a psicose” (2015, p. 4). Se não fosse uma, seria a outra, e vice-versa. Essa dimensão de diferenciação absoluta apoiava-se em um verdadeiro “credo lacaniano” [dixit também J.-A. Miller]: aquele da foraclusão do Nome-do-Pai.
A função do Nome-do-Pai se apoia naquilo que hoje é comumente definido sob o sintagma ordem simbólica. Os padres da Igreja, assim como todos os tipos de conservadores, retiveram apenas essa dimensão do ensino de Lacan, a ponto de se referirem a ela para tudo. Ora, é importante compreender o que esse Nome-do-Pai recobre no ensino de Lacan.
Lacan percebeu sua carência, precisamente na psicose desencadeada. Foi a partir daí que ele elaborou o conceito da foraclusão. Do que se trata? J.-A. Miller situa novamente a hipótese que conduz a ela em seu texto “Efeito de retorno sobre a psicose ordinária” (MILLER, 2015) que pode constituir em si um argumento para nosso próximo congresso da New Lacanian School.
A hipótese do Nome-do-Pai
Lacan parte da experiência de que, nos primeiros tempos da chegada do infans ao mundo, há uma vivência de um sujeito às voltas com um espaço desorganizado, movente, não estruturado, onde predomina a experiência subjetiva do corpo fragmentado, inteiramente submetido às forças pulsionais e às significações fora de sentido. É um mundo em que o eu do sujeito e o Outro estão indistintos. Lacan não desistirá nunca dessa hipótese de partida da subjetividade humana. Ele situa a prematuridade do filhote do homem como sua causa.
Nessa configuração e no classicismo do mundo à moda antiga, a mãe, ou seu substituto, vinha sustentar essas características, já que ela era supostamente a figura do primeiro representante encarnado desse Outro. O desejo da mãe era a manifestação primária, para o infans, dessa força pulsional e da figura desse Outro desorganizado, pulverulento, ilegível e fora de sentido. Um mundo, uma experiência de gozo fora de sentido e enigmática habitavam a figura do Outro materno. É uma experiência subjetiva precisamente idêntica àquela encontrada pelo sujeito psicótico depois de seu momento de desencadeamento.
No segundo tempo desse desenvolvimento, Lacan situa a entrada do simbólico nesse mundo, como vindo para organizá-lo, para colocar ordem nesse imaginário e nesse gozo sem rédeas. O simbólico vem regulá-los, pelo menos para definir suas leis e seus interditos. Essa figura supostamente natural, que surge como terceiro entre este, o infans e esse Outro desregulado, e que nessa construção supunha-se organizar o que está desorganizado por natureza, quem mais poderia ser, nesse caso, senão o pai, enquanto representante da lei e de sua suposta ordem simbólica?
É a ideia de que há um Outro desse Outro primeiro, que tem como função vir dominá-lo, limitá-lo, definir sua organização e, principalmente, dar-lhe um sentido, torná-lo legível. Trata-se da função ordenadora do Nome-do-Pai, sob a condição de que ele venha nomear e organizar o desejo supostamente desorganizado da mãe. Ele se faz de destinatário, isto é, ele vem se definir como o que causa o desejo materno, e desde então lhe dá sentido. É uma operação de metáfora, que Lacan chamará de paterna. É uma operação metafórica, a partir do momento em que ela vem dar sentido a um x, uma incógnita situada no cerne do desejo, enquanto gozo. Essa é a formalização que Lacan dá ao complexo de Édipo freudiano.
NP
DM
Essa operação produz um efeito. A operação do simbólico, ao organizá-lo, estanca o desencadeamento pulsional. Supõe-se que essa operação o limite. Nesse sentido, ela produz um efeito de perda, tanto quanto de localização. É o que quer dizer “a castração”, ou, ainda, “o menos phi”, “uma subtração de gozo” (MILLER, 2015, p. 6), lá onde, na psicose, ela se apresenta como não localizável, não limitada, e desde sempre “em excesso”. O órgão peniano se faz o depositário e o representante desse gozo a partir daí regulado por uma lógica fálica. Ele é o órgão precisamente apto a encarnar esse gozo marcado por um mais ou um menos. Ele tem seu significante: o falo.
É uma construção, se nós a separarmos – a modernidade obriga – dos atores que são a mãe e o pai, extremamente robusta e clinicamente pertinente, pelo menos enquanto função e estrutura. Uma parte do gozo é interdito, passa sob a barra, instalando o recalque, uma perda e a limitação do gozo.
É precisamente essa função que o Presidente Schreber tenta restabelecer, depois de seu desencadeamento que desorganiza todas as significações do mundo e sua relação com o corpo. Ele tenta restabelecê-la de um outro modo, que nós diremos delirante, a fim de tecer novamente e dar um outro sentido aos fenômenos que o assaltam, no ponto em que a significação paterna se mostra foracluída. A causa desses fenômenos é, daí em diante, Deus (nova figura de um pai), ele próprio tornando-se o objeto de gozo desse Deus. Toda uma nova construção complexa elabora e determina as vias em condições de explicar, e legíveis para ele, o que ele experimenta como fenômenos de gozo desenfreado e não localizável falicamente. É seu trabalho de elaboração, assim como de interpretação. É por isso que Lacan qualifica essa operação de metáfora delirante, na medida em que ela vem suprir a foraclusão da metáfora paterna, e isso precisamente na linha freudiana, que já compreendia o delírio como uma tentativa de cura.
A carência paterna neurótica
Eu dizia que essa construção era robusta. No entanto, ela não conduzirá Lacan a uma religião do pai. E isso por várias razões.
Lacan só constrói a lógica da metáfora paterna na medida em que ela se revela, digamos, a céu aberto, sem recalque, como faltante, ou mesmo carente, na psicose desencadeada. Mas, logo depois que sua construção é feita como não operando na psicose, Lacan se encarrega de demonstrar, pela clínica, a generalização da carência da metáfora paterna em relação ao gozo, e isso para todo o campo da clínica: a saber, que nem tudo do gozo passa pelo crivo fálico e pela lógica da metáfora paterna, que nem tudo do gozo se deixa negativar.
É o que demonstra o neurótico Pequeno Hans. Em seu próprio corpo, em relação à vida de seu órgão peniano, a significação paterna e fálica, não consegue explicar o Krawall que aí se manifesta. Ele também tem que recorrer a uma construção paliativa: o significante fóbico, na medida em que ele vem em seu socorro para poder significá-lo.
É também nessa falha que se situa o que produz o encontro traumático de Hamlet. Bem além da morte real de seu pai, é justamente com a parte do desejo de sua mãe que não responde, ou melhor, que excede e transgride a lei do pai, que ele se debate. É o traumatismo eletivo do neurótico obsessivo: o encontro da mãe com sua feminilidade que não se reduz ao materno, se articula com a relação ao pai. Lacan zomba do esforço de Hamlet, que ele considera patético, em querer fazer entrar o desejo de sua mãe não referido ao pai no nível da decência. É o encontro com esse ponto que mergulha Hamlet no luto do pai, bem além de sua morte, e precisa do apelo de todo o jogo simbólico – o trabalho dito de luto – para fazer face à sua carência encontrada no buraco que perfura, no limite fálico, o gozo feminino. Ele construirá para si uma fantasia pessoal, em condições de responder sua própria versão da coisa: a saber, que nenhuma palavra vale e que há, desde então, “algo de podre” (SHAKESPEARE, 1995, p. 547) no mundo – eu acrescento: no mundo suposto da ordem simbólica. É o grande segredo que Lacan acabará por revelar aos próprios psicanalistas: a saber, que “não há Outro do Outro” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 322) em posição de normalizar o gozo, de conseguir dar-lhe um sentido.
A compensação generalizada
Em uma outra vertente, a foraclusão do Nome-do-Pai na psicose, que só se revela por seu desencadeamento, conduz à dedução lógica de que outra coisa, antes, ficava no lugar, como uma bengala, uma compensação; assim como a metáfora delirante indica ao mesmo tempo que alguma outra coisa pode exercer essa função depois.
A metáfora delirante, a psicose compensada e não desencadeada, assim como a fobia de Hans ou a fantasia de Hamlet, demonstram seu caráter de construção ou de tentativa de construção simbólica sobre o real, que faz objeção a eles. Nesse contexto, toda construção simbólica, na medida em que visa a dar sentido a alguma coisa profundamente fora de sentido, tem a estrutura do delírio e do religioso. Para dizê-lo de maneira mais leve, isso relega a significação paterna e fálica do gozo a uma significação possível, dentre outras. Ela perde então sua primazia. É o que a clínica demonstra.
O fim do ordinário neurótico?
Isso interroga a neurose. Em setembro de 2015, o Kring voor Psychoanalyse van de NLS iniciava em Gand um ciclo de conferências sob o título “A neurose de hoje é assim tão ordinária?”[3]
A neurose tinha, no início do ensino de Lacan, uma conexão com a normalidade; pelo menos a psicose derivava dela. Essa última era uma variação, pelo modo da carência, da estrutura considerada como fundamental da neurose, da normalidade e maturação que encarnava o complexo de Édipo. No tempo da potência dos grandes discursos da tradição – o pai é isso –, que são finalmente tantas prescrições ensinadas e transmitidas para saber como fazer com o gozo, com a sexualidade, com o ser homem e mulher, etc., a neurose era considerada como a normalidade. Nesse sentido, ela era o ordinário. Certamente, a neurose era o preço a pagar pela lei do pai e pela tradição, com toda a série de sintomas que tornaram necessárias e conduziram à invenção da psicanálise. Mas nós tínhamos então prescrições para saber fazer com o gozo, que retiravam mais ainda sua força do fato de que eles imitavam o dito e o suposto natural. Por seu próprio desvio, em nossas referências clínicas, dizia-se que a psicose não enganava. A psicose era clara: na medida em que não era “normal”, não era “ordinária”, ou ainda não era “típica”.
Desde o início da sequência do ensino de Lacan, a perspectiva mudou radicalmente.
Inicialmente foi a clínica que levou a demonstrar a natureza essencialmente perversa, sempre não ordinária, sua dimensão “nunca a boa” e “nunca a necessária” da sexualidade humana. É o que o retorno do recalcado do sintoma neurótico dizia, significava, ou mesmo gritava, de algum modo.
Hoje, a desconstrução dos grandes discursos, sob o efeito conjugado da ciência, do capitalismo, da democracia – e ousemos acrescentar, da psicanálise – acabou por desnudar sua natureza de semblantes. Foi justamente sua única natureza de tradição que foi revelada, em relação a uma sexualidade que, no ser humano, não é de forma alguma natural ao passar pela linguagem. O grande edifício falocrático da lei do pai, que é tudo, menos igualitário e democrático, foi contestado e rejeitado por toda parte. Ora, a rejeição ao pai é precisamente o que constituía o elemento determinante da psicose (MILLER, 1987).
A lei do pai, que dá acesso ao gozo num contexto de interdição, aparece desde então como uma modalidade, dentre outras, de tratamento do gozo. Digamos ainda: um modo de gozar, particular, onde isso se goza da interdição, outros modos podendo ser possíveis.
O ordinário da foraclusão generalizada
A psicose ordinária é um sintagma que nasceu dessa mudança de perspectiva. Ele faz da neurose um caso inteiramente particular sobre um pano de fundo, em que a estrutura da psicose domina e é primeira. O ordinário se traduz em termos de foraclusão generalizada na medida em que falta no Outro o significante que venha significar o gozo, e isso, para todo ser falante.
Mesmo que ela continue a se fundamentar no binário neurose/psicose, entramos aqui para nos orientar numa abordagem clinica mais continuísta.
Poderíamos representar essa nova perspectiva clínica como uma curva de Gauss. Em uma de suas extremidades, está a psicose desencadeada com todos os seus fenômenos de desconexão, fenômenos de corpo e do significante. De acordo com as nossas primeiras referências clinicas, é uma dimensão que, quando a encontramos, não nos engana. Mas, na outra extremidade dessa hipotética curva de Gauss, temos também alguma coisa que, particularmente na atualidade, não engana: a neurose. É o que me ensina minha experiência de psicanalista. O ordinário, se vocês quiserem, torna-se de algum modo um “entre-dois”. Nas duas extremidades do campo clinico, vocês estão no extraordinário, vocês estão no claro, no binário. O ordinário diz respeito a um registro mais difícil: o da tonalidade, dos indícios, em que as oposições são menos formais.
O que não engana na neurose
O efeito da mudança nos discursos nos obriga a uma afinação do conceito de neurose. Em “Efeito de retorno sobre a psicose ordinária”, J.-A. Miller (2015) é claro. A neurose é algo preciso, muito construído. Ela traz nela algo que não engana. É nesse sentido que ela traz, como ele diz, uma assinatura. Ele utiliza outros termos: é uma formação que apresenta uma estabilidade, uma constância. Há uma repetição da neurose. Em termos estruturais, de arquitetura geral se vocês quiserem. J.-A. Miller precisa o que é necessário ter para estar na presença desta construção tão singular que é uma neurose: ele fala mesmo de “critérios”. Eu o cito:
Vocês precisam de certos critérios para dizer “é uma neurose”: de uma relação ao Nome-do-Pai — não um Nome-do-Pai — vocês devem encontrar algumas provas da existência do menos fi, da relação à castração, à impotência e à impossibilidade; é preciso ter — para utilizar os termos freudianos da segunda tópica — uma diferenciação nítida entre o Eu e o Id, entre os significantes e as pulsões, um Supereu claramente traçado. Se não há tudo isso e outros sinais, então não se trata de uma neurose, é outra coisa (MILLER, 2015, p. 13-14).
Isso é forte! É preciso se curvar a isso, a essa disciplina e a essa precisão. Não estou certo se tiramos sempre todas as consequências clínicas disso.
Aliás, a imagem da curva de Gauss não é aqui satisfatória. O “entre-dois”, nessa lógica, deve ser situado ao mesmo tempo, de um lado. Se não for uma neurose, é uma psicose – a compreender, já que isso se apoia no binário, que não é uma neurose.
Sob o efeito da desconstrução dos discursos da tradição – o Nome-do-Pai sendo colocado na categoria de um dos semblantes dentre outros –, tende-se a generalizar a dimensão encontrada na clínica de um semblante compensatório que possa funcionar.
A categoria epistêmica da psicose ordinária…
Retornemos ao campo clínico. No registro da psicose ordinária, como a psicose não está desencadeada, já que ela não é nítida e não é uma neurose, é preciso supor que alguma coisa faz função ou serve como Nome-do-Pai, na medida em que ele estabiliza e enlaça os diferentes registros – do corpo e do significante – sem que seja o Nome-do-Pai. Um outro elemento, não típico, exerce essa função.
J.-A Miller constata que
Isso introduz uma mudança de estatuto para o Nome-do-Pai. Nos textos clássicos de Lacan, utiliza-se o Nome-do-Pai enquanto nome próprio. Quando se pergunta: “O sujeito tem o Nome-do-Pai ou há a foraclusão do Nome-do-Pai?”, utiliza-se logicamente o Nome-do-Pai como nome próprio, o nome próprio de um elemento particular que é chamado o Nome-do-Pai.
Seguindo a ideia da ordem simbólica delirante, pode-se dizer que o Nome-do-Pai, não é mais um nome próprio, mas um predicado definido na lógica simbólica.
Um tal elemento funciona como um Nome-do-Pai para o sujeito. Esse elemento é o princípio que ordena seu mundo. Isso não é o Nome-do-Pai, mas tem essa qualidade, essa propriedade (MILLER, 2015, p. 8).
Podemos então ter um quadro clínico que pode se assemelhar a uma neurose, apesar de não ser uma. É precisamente nesse singular entre-dois – que não é, portanto, um – que é convocada e deve ser desenvolvida toda uma fineza e uma riqueza clínica. Longe de se constituir como uma zona indefinida, de um não-saber, isso obriga e produz um apelo na direção de um refinamento cada vez maior de nossas referências clínicas. Inversamente ao que não está nítido, ou de uma zona onde tudo cabe, há uma convocação a um maior rigor. É precisamente aí que todo o saber da distinção clínica é convocado.
…E seu apelo a um saber clínico renovado
É um programa de pesquisa, um work in progress. As indicações de clínicas diferenciais que J.-A. Miller abre em seu texto são um recurso muito precioso. Nesse registro em que a clareza dos traços do grande binário clássico psicose desencadeada/neurose está ausente, somos confrontados com a necessidade de produzir distinções que não pertencem ao registro dos grandes traços, mas do detalhe, da distinção fina. J.-A. Miller utiliza ainda outros termos que tentam descrever o que é exigido aqui: é uma clínica dos “pequenos indícios variados” (MILLER, 2015, p. 5). Não estamos, nesse campo circunscrito pelo sintagma “psicose ordinária”, no registro de uma “definição rígida” (MILLER, 2015, p. 2). Não é uma clínica da categoria “objetiva” (MILLER, 2015, p. 4), é uma clínica da “categoria epistêmica” (MILLER, 2015, p. 5) que está à procura de uma “sinalização[4]”. Resumindo, é uma clínica do registro dos “signos discretos”! Anuncio aqui o que está em jogo e a envergadura do título do próximo congresso da New Lacanian Scholl: “Signos discretos nas psicoses ordinárias. Clínica e tratamento”. Ele acontecerá este ano, no começo de julho e também pela primeira vez em Dublin – cidade cujo laço com a psicanalise lacaniana é evidente através de James Joyce, cuja figura está precisamente na origem de uma nova abordagem da clínica e do sintoma para a psicanálise lacaniana.
É interessante notar que, em francês, o termo “discreto” (discret) comporta uma dupla significação das mais interessantes, que não “passa” pelo inglês. Ele significa o que não se mostra facilmente, o que é pequeno, o que não é evidente – quase escondido -, mas ele comporta também a significação, em outros registros, daquilo que determina, aquilo que dá a assinatura e decide.
Partir da não-relação
Resultado de uma necessidade clínica que o sintagma “psicose ordinária” tenta delimitar, essa lógica clínica dos signos discretos, das “tonalidades” a encontrar e precisar se inscreve em uma lógica que nos cabe ampliar. Por causa da mutação da estrutura dos grandes discursos, é uma lógica que acaba por concernir o conjunto do campo da clínica. Situo aí a envergadura do próximo congresso da NLS.
Nós escorregamos, oscilamos, entramos em um contexto de binaridade, em uma clínica que se inscreve também, pouco a pouco, em um registro continuísta.
É um registro de distinção clínica que acompanhada de um traço geral, comum a todo ser falante, que é experimentado por todos. Em seu texto, J.-A. Miller aponta esse traço comum como uma discordância. Uma discordância experimentada por todos, no registro ou na relação com o ser, com o sentimento de ser. Para se referir a esse traço, ele lança mão de uma expressão originada nos primeiros tempos do ensino de Lacan, que diz respeito precisamente à psicose desencadeada: “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN, 1958/1998, p. 565). Trata-se de um sentimento de alguma coisa que não vai bem, que não se encaixa, não anda como deveria. De fato, se fizermos referência aos termos mais tardios de seu ensino, veremos que se trata de uma “não-relação”. Essa não-relação resulta da conjunção ou do encontro do registro do corpo, portanto, do imaginário, e o registro do significante, o simbólico. Esse encontro estrutural provoca uma “desordem”, que produz uma não-relação – nos deparamos com o encontro dos registros imaginário e simbólico que serviam de base para a construção edipiana, tomada aqui de outra maneira. Sim, mas se a não-relação é experimentada por todos, em que modalidade ou tonalidade ela se declina? Em que registro, por exemplo, ela se manifesta mais eletivamente?
Essa última questão permite situar uma primeira distinção: entre histeria e obsessão. J.-A. Miller (2015, p. 9-10) precisa: o sujeito histérico experimenta essa desordem, mais precisamente, na relação com seu corpo, e o sujeito obsessivo mais eletivamente na sua relação com as ideias.
Sim, mas – precisão suplementar necessária – quando essa discórdia se inscreve prioritariamente no registro da relação identificatória narcísica com o corpo próprio, quando essa relação não é ”suficientemente boa” (MILLER, 2015, p. 4), quando ela se manifesta pelo sentimento de não ter corpo, quando a relação com o corpo se inscreve em uma dimensão de “derrota” (MILLER, 2015, p. 4), isso tudo faria parte do campo histérico e do sentimento de vazio que os sujeitos podem experimentar em si, ou isso denotaria uma relação com o “buraco psicótico” (MILLER, 2015, p. 4)? O que, nesse último caso, revela que nenhuma marca da identificação simbólica grampeia o corpo, e denota, dito de outro modo, uma disjunção total dos dois registros do corpo e do significante.
Do mesmo modo, quando nos situamos no registro da relação discordante com o pensamento, podemos nos perguntar se o sujeito mantém uma relação muito erotizada com o pensamento, se ele está sobrecarregado por seus pensamentos de forma obsessiva – o que J.-A. Miller lembrava recentemente (Bosquin-Caroz, 2015), que ele apresentava então uma estrutura extremamente construída, decorrente de um edifício muito complexo, como para o Homem dos ratos e a análise estrutural que Lacan (2008) desenvolve sobre ele em O mito individual do neurótico? Ou, ainda, podemos nos perguntar se isso vai até o sentimento de que seu pensamento, de uma forma ou de outra, é influenciado, por exemplo? Ou se ele acontece de maneira autônoma, nas modalidades do automatismo mental? Ou ainda se ele é habitado pelo sentimento de ser manipulado por um Outro exterior ao sujeito – o que faz parte então precisamente do registro psicótico?
O prescindir, se servir do binário clínico – Da tonalidade nos registros clínicos
Mesmo em relação ao fato de que ainda resta uma grande oposição entre o corpo e o significante, tudo isso exige uma localização mais precisa. Nem sempre é simples decidir, exatamente quando isso não se apresenta de uma forma nítida, quando, por exemplo, uma amarração não típica dos registros evocados “vela” (MILLER, 2015, p. 4), “dissimula” (MILLER, 2015, p. 9) ou compensa os efeitos potencialmente maiores e excessivos.
Quando é esse o caso, é então a dimensão da “tonalidade”, da “intensidade” (MILLER, 2015, p. 9) que é exigida. É um manejo muito delicado. J.-A. Miller situa alguns registros onde ela pode ser delimitada. Eles são apaixonantes. Sua delicadeza exige que eles sejam desdobrados, refinados. O que produz, em contrapartida, um novo enriquecimento das distinções clínicas.
Um primeiro registro útil deve ser situado no nível da inscrição e do laço social do sujeito. Por esse registro, não se trata de promover a inserção social, do mesmo modo que também não se trata de erigir sua rejeição como ideal. Mas, com relação a esse registro, o que poderia ser lido nele de particular em um dado sujeito? Mais precisamente, que indícios poderiam ser lidos na maneira como ele se identifica com sua função social? Mais precisamente ainda, que tipo de “relação negativa” o sujeito manteria com ela? Aqui também há um desacordo para todos. Mas de que tipo seria ele? Seria na modalidade de uma rebelião – toque histérico? Seria na modalidade “autônomo”, do tipo “não tenho nada a ver com isso, não pense que eu acredito nisso, isso não me interessa nem um pouco, mas tudo bem…” – assinatura mais obsessiva? Ou ainda, a não inserção seria mais forte? A impossibilidade de se inscrever seria mais forte e de que tipo? Sob que coordenadas? A dificuldade de se inscrever em um laço social seria impossível, ou ela seria necessária e iria de ruptura em ruptura, até o extremo de ter que romper todo laço com o outro – assinatura esquizofrênica? Uma dificuldade relacional conduziria à necessidade de tomar distância a cada vez, até, às vezes, de maneira vital, ter que colocar vários quilômetros entre as coisas – esse número de quilômetros sendo, literalmente, proporcional à distância subjetiva que o sujeito precisa para não ser capturado pelo Outro? Que facilidade teria o sujeito com a ruptura, lá onde certos neuróticos se fixam por anos, e têm uma angústia diante da ideia de qualquer mudança? Ou, ainda, no outro extremo da tonalidade identificatória, esta seria completamente fora da dialética? Ela apresentaria uma inserção imediata sem discordância, ou ainda uma identificação completa e total com a função – o que poderia não produzir um déficit, mas justamente uma competência multiplicada nessa ocasião? Essa identificação com a posição social seria justamente a amarração atípica que permitiria ao sujeito psicótico dar a si mesmo um ser, uma posição no social, um eu e uma imagem, da qual só perceberíamos a medida “compensatória” quando a perda desse apoio real não fosse superável pelo sujeito e pudesse conduzir ao desencadeamento ou ao desligamento psicótico?
Temos aqui variedades que somente o binário neurose/psicose no quadro da presença ou não do Nome-do-Pai, nem sempre pode ser identificado. Antes de tudo, a ausência da função Nome-do-Pai somente se deduz a partir desses traços e da dimensão de intensidade que apresentam.
A mesma fineza do detalhe deve se mostrar necessária na relação com o corpo, com o sentimento de estranheza que se pode manter com ele. Nós já o evocamos brevemente. Como o sujeito habitaria, sempre de maneira mais ou menos ruim, seu corpo? Quanto a esse corpo, essa discordância apresentaria uma dimensão acabada, localizada, bordejada? Seria uma parte do corpo – o pênis, por exemplo – que escaparia ao controle e ao comando e seria objeto de todas as disfunções? Ou então ele não seria jamais atingido por elas e, portanto, não estaria submetido ao vai e vem do desejo? Essa discordância se deveria a um sentimento de impotência localizada, com relação, por exemplo, a um funcionamento ideal e idealizado? Ela seria então marcada por essa função própria do menos, do menos-phi em que se situa o registro do binário neurótico da impotência e do impossível? Ou então seria todo o corpo que escaparia? A localização seria mais fluida? As lágrimas, por exemplo, estariam ligadas a um acontecimento, fosse ele acompanhado de um sentimento de vacuidade, ou então tivesse ele um caráter radicalmente imotivado? Em resumo, J.-A. Miller diz isso de uma maneira muito bonita: é uma discordância submetida a uma imposição, no limite que impõe o menos-phi da estrutura exigida pela neurose, ou então a falha é não marcada por esse limite e apresenta uma característica muito mais insondável?
Os detalhes podem se multiplicar e se entrecruzar ou podem ainda se acumular. J.-A. Miller toma o exemplo da marca real no corpo, que pode constituir uma compensação à não-inscrição, à falta de marca simbólica, à não-amarração do simbólico na relação com o corpo. Não é simples elucidar o alcance disso, ainda mais com a mudança de época e o enfraquecimento justamente da força de marca de inscrição dos discursos da tradição. Alguns rituais tradicionais, por exemplo, constituíam as marcas do corpo inscrevendo-as em um registro social e dando-lhes função, eu diria, de corpo. Vemos, hoje, na era da queda desses grandes marcadores, a utilização generalizada, “democratizada”, das marcas reais no corpo: piercings, tatuagens, etc., às vezes, mesmo que raramente, nos lugares mais sensíveis deste. De que eles seriam marca? Lá onde – certamente de maneira errada – elas eram consideradas muito rapidamente como signos de psicose, não faz ainda muito tempo. Lá também é a tonalidade que informa. Seria em um registro do limitado? Ou então carregaria uma outra característica, que dá corpo ao sujeito psicótico, lá onde ele não dispõe de nenhum outro grampo para ele?
A questão da dialética, ou ao contrário, de uma fixidez ou insistência estranha, se coloca igualmente no nível da identificação com o objeto dejeto. Seria a relação com a falta ou com a falta da falta? A autodesvalorização, por exemplo, seria a máscara de um narcisismo e de um ideal bem enraizados, em relação aos quais o sujeito teria um jogo dialético – o que não o impediria de sofrer por isso – isso se inscreveria novamente em uma dimensão de falta, de limitação? Ou então o sujeito estaria, sem dialética, inteiramente identificado com essa falta que ele encarna? Ele chegaria até mesmo a ser, realmente, na relação com o corpo e com sua forma de se vestir, um verdadeiro dejeto? Isso aconteceria em um registro onde a tonalidade é menos marcada? Além disso, como essa identificação não dialética se manifestaria? Como tal ela conseguiria se velar-desvelar por uma afetação, uma higiene, uma forma de se vestir específica que carregaria essa marca?
O que aconteceria ainda, por exemplo, no registro da culpa? De que ordem e intensidade seria ela em relação a suas manifestações extremas? De tipo neurótico, ou ainda insondável, identificando-se com falta e com o objeto que acabo de evocar? Como no caso de Franz Kafka, por exemplo, na medida em que a culpa acontece, entretanto, e precisamente com ele em sua relação com o pai. Com que tipo de figura de pai o sujeito teria que se haver?
O que dizer da relação com a linguagem? Em sua clínica generalista, Lacan terminará por dizer que ela é um parasita para todos. Sim, mas de que forma e em quais modalidades para cada um, no singular?
A lista não termina. O continente é imenso. Tanto para os registros como também particularmente no seio mesmo da cada entidade clínica. J.-A. Miller toma o exemplo na psicose:
Vejam a diferença entre um bom paranoico, fino e musculoso, que se construiu verdadeiramente um mundo para ele e para outros, e o esquizofrênico que não pode sair de seu quarto. Nós nomeamos tudo isso psicose.
Quando se trata de uma paranoia, o make-believe do Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido. […] Mas, há algumas, como o gênero paranoia sensitiva, que mencionei anteriormente, que não são claras, desde o início. Foi apenas após três anos de análise que o analista percebeu que alguma coisa não estava certa, que o sujeito construía, cada dia, sua paranoia. Há também os esquizofrênicos socialmente desconectados, enquanto os paranoicos são socialmente, totalmente conectados. Algumas grandes organizações são frequentemente dirigidas por psicóticos em potencial, cuja identificação é super social. O campo das psicoses é, portanto, imenso (MILLER, 2015, p. 16).
Sem dúvida, não é à toa que ele toma o exemplo da amplitude do campo clínico no registro da psicose, a neurose sendo provavelmente mais específica, mais “extraordinária” e, portanto, mais precisa e circunscrita.
O que não se distingue
A lista é infinita. Eu a fecharei – e isso é crucial – somente por um contraexemplo. Um registro a propósito do qual J.-A. Miller insiste que justamente ele não é pertinente, que ele não é “discreto”, no sentido de determinante, com relação às distinções clínicas: a saber, o registro da sexualidade. Não se pode basear um diagnóstico clínico apoiado nas práticas sexuais enquanto tais precisamente porque é o lugar eletivo da não-relação, em que a normalidade, o ordinário, não existem no ser falante. O ordinário, o natural, em termos de sexualidade, é o instinto. Ele é, por natureza, desregulado no ser falante. Não há “vida sexual típica” (MILLER, 2015, p. 19). É um ponto para se recordar sempre: se as práticas sexuais podem revelar, ou mesmo permitir refinar, as distinções clínicas, estando colocadas em relação aos elementos dos outros registros percorridos (relação ao corpo, etc), elas não o podem per se (por elas mesmas).
O ensino com o qual rompemos
As “pequenas chaves” (MILLER, 2015, p. 13), outro nome dos signos discretos, devem ser precisados a cada vez naquilo que podemos ler deles da relação própria para cada sujeito, tomado em sua singularidade.
Essa estreita fineza exigida, levada ao extremo de sua lógica, nos conduz a um mais-além da clínica binária, hierarquizada. Ela não a anula enquanto tal, mas pode fazê-la passar para segundo plano; ou mesmo, ela desloca o ângulo do modo pelo qual podemos considerá-la.
A clínica se orienta, assim, mais na direção da lógica dos nós borromeanos, que interessou Lacan em seu ensino tardio, a partir precisamente de J. Joyce. É uma lógica que tira todas as consequências da desorganização inicial dos campos da subjetividade humana que nós havíamos evocado como estando na base da concepção lacaniana da psicose. Lacan é levado pela clínica a generalizá-los. A mudança de estatuto no Nome-do-Pai que evocamos, de se encontrar “reduzido” a uma modalidade dentre outras, de amarrar os três registros com os quais Lacan dividiu, desde o início de seu ensino, o campo da subjetividade humana, é o que leva a isso. A lógica é invertida. É o campo da psicose extraordinária que revela o estatuto inicialmente solto e independente dos registros. Eles certamente encontraram uma modalidade típica, socialmente compartilhada, decorrente da tradição, de se atar: o modo neurótico e edipiano. Pelo fato de ser típico, ele poderia ser pensado como ordinário, e mesmo “natural”. Essa tipicidade foi diminuída e contestada até o osso.
O campo imenso que não diz respeito a isso, o vasto campo que nós tentamos capturar pelo registro da psicose ordinária, a psicose dita compensada e não desencadeada, o registro no qual outras amarrações se revelam eficazes, constitui o ensino de uma outra lógica com a qual devemos abrir um espaço.
A abordagem não é mais tanto a de se identificar o que é deficiente em relação a um standard e a uma norma suposta – de fato inexistentes. Deve-se tentar apreender e delimitar o modo flexível e em movimento pelo qual cada sujeito, em sua singularidade, se vira ou não para enodar e ligar o real que constitui a não-relação sexual, com o corpo – o imaginário – e o significante – o simbólico –, como nós começamos a fazer nas declinações dos registros clínicos. Essa amarração é, por exemplo, típica, singular ou inexistente?
Para dizer de outra maneira, citando J.-A. Miller, nosso trabalho é, antes de isolar e “de captar sua maneira particular, insólita, [no sentido próprio de cada um e a nenhum outro semelhante] de dar sentido às coisas, de dar sempre o mesmo sentido às coisas, de dar sentido à repetição em sua vida” (MILLER, 2015, p. 8). Isso significa, se quiserem, delimitar seu “delírio privado”, o que, em uma época, foi isolado por Lacan pelo termo fantasia fundamental, na medida em que daria o algoritmo do ser do sujeito.
O fenômeno clínico, ou o anti-DSM
Nessa lógica, o diagnóstico, particularmente o binário neurose/psicose, é grosseiro, no sentido de que ele é uma ofensa precisamente à fineza exigida. Ele é demasiado espesso, é muito abrangente. Essa lógica nos conduz menos às classificações do que ao isolamento do “fenômeno clínico” enquanto tal. Retornamos, assim, aos “signos discretos” do congresso da NLS, no ponto que podemos considerar que ele só é estreito na medida em que ele escapa às classificações conhecidas e toca na singularidade absoluta.
J.-A. Miller precisava, durante a última reunião da FIPA em Paris (BOSQUIN-CAROZ, 2015, p. 4-5), que os relatos clínicos de G. de Clérambault são os modelos: a saber, uma precisão rica de todos os recursos da língua, em sua dimensão literária, no ajuste do fenômeno clínico, até poder tentar dizer, e reduzir, em uma ou duas frases, o que faz o osso e a depuração para cada sujeito. É uma abordagem em que o diagnóstico não é mais dito. Ele se deduz em cada oportunidade, sem mais.
Observemos que são os recursos de que a psiquiatria clássica dispunha e sobre os quais ela se apoiava. Ela os perdeu em sua biologização desenfreada. A psicanálise se tornou sua depositária. Ela também tem a tarefa de reinventá-los a partir de suas próprias referências.
A captura por um dizer aproximado do fenômeno clínico, na medida em que ele é próprio a um sujeito, é o avesso mesmo, radicalmente, da referência do DSM. Aqui, é a singularidade absoluta que está em questão. No DSM, trata-se de um corte e de um corte e de um desfiar, por um recenseamento estatístico acéfalo de sintomatologias standards e quantificáveis.
Em direção a uma nova orientação do tratamento
Concluirei por destacar a ponta do que J.-A. Miller disse a respeito em sua apresentação do congresso da Associação Mundial de Psicanálise – referência com a qual fiz a abertura dessa conferência.
Uma nova inflexão de ângulo está aí ainda presente, a partir do ultimíssimo ensino de Lacan, aquele que antecipava as consequências clínicas das figuras do Outro de hoje.
Se a psicanálise muda, diz J.-A. Miller, é porque ela “deve levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles sobre os quais ela se estabelecera” (MILLER, 2016, p. 26). Ele precisa: não é que a ordem simbólica tenha vacilado, mas que a verdadeira mutação que ela sofreu foi o desvelamento de que ela não passa de uma articulação de semblantes, de simples construções sociais, cada dia mais votadas à desconstrução.
É precisamente isso, como para o ser falante de hoje, que Hamlet sabe, lá onde para Édipo era não sabido. É a natureza da dimensão de semblante do pai e de sua própria ordem que lhe é des-velada. Doravante, tudo é apenas semblante. É o que faz a errância – a época e seus errantes – do ser falante de hoje e faz também dele, fundamentalmente, um não-tolo.
Foi a psicanálise que veio recolocar que tudo é apenas semblante. Que existe um real, fora de sentido: aquele da não-relação, a respeito do qual o ser falante se encontra em uma posição de debilidade que o destina, em sua busca de sentido, ao delírio.
A esse respeito, J.-A. Miller prossegue – eu o cito brevemente, isso merece evidentemente ser desdobrado –
Enquanto a ordem simbólica era concebida como um saber regulando o real e lhe impondo sua lei, a clínica era dominada pela oposição entre neurose e psicose. Agora, a ordem simbólica é reconhecida como um sistema de semblantes que não comanda o real, mas lhe é subordinada. […]
Disso resulta, se assim posso dizer, uma declaração de igualdade clínica fundamental entre os falasseres (MILLER, 2016, p. 31).
Aquele que fez uma análise sabe que a respeito do real, não há nenhuma normalidade que valha – nenhum “ordinário” não é conveniente.
J.-A. MILLER isola um ternário que “repercute”, ele diz, aquele clássico dos registros real, simbólico, imaginário: delírio, debilidade, tapeação (duperie).
A única via que se abre mais além é, para o falasser, fazer-se tolo [dupe] de um real, quer dizer, montar um discurso no qual os semblantes obstringem um real, um real no qual se crê sem a ele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido e que só pode ser aquilo que ele é. A debilidade é, ao contrário, a tapeação [duperie] do possível. Ser tolo, tapeado por um real – que ostento – é a única lucidez aberta ao corpo falante para se orientar (MILLER, 2016, p. 31).
Eu acrescento: é o que se chama se fazer tolo de seu inconsciente. Uma nova definição de uma orientação do tratamento resulta disso. Ela é, contrariamente àquela que se fundamentava em nossas referências clínicas binárias, transestrutural: “Analisar o falasser demanda jogar uma partida entre delírio, debilidade e tapeação. É dirigir um delírio [a decifração do inconsciente no tratamento] de maneira que sua debilidade ceda à tapeação do real” (MILLER, 2016, p. 31-32). É a esta escola que nós devemos tentar nos situar.
Tradução e revisão: Márcia Bandeira e Márcia Mezêncio