CATHERINE LACAZE-PAULE
Psicanalista. Membro da ECF/AMP | lacazepaule@gmail.com
Resumo: Catherine Lacaze-Paule aborda a atual experiência de confinamento para refletir sobre suas repercussões na clínica psicanalítica praticada virtualmente. Nesse contexto, ela indaga quais seriam “as condições para que um encontro seja real, para que uma presença se faça sentir, para que ela se experimente”. A autora se serve da expressão lacaniana “presença real” enodada ao desejo do analista e, dessa forma, dá um passo além dos termos — presencial, a distância — que o discurso corrente faz uso.
Palavras-chave: confinamento, presença real, objeto a
Abstract: Catherine Lacaze-Paule addresses the current experience of confinement to reflect on its repercussions in the psychoanalytic clinic practiced virtually. In this context, she asks what would be “the conditions for a meeting to be real, for a presence to be felt, for it to be experienced”. The author makes use of the Lacanian expression “real presence” that is rooted in the analyst’s desire and, in this way, takes a step beyond the neologisms — in person, at a distance — that current discourse makes use of.
Keywords: confinement, real presence, object a
Durante o confinamento, experimentamos os corpos ausentes, a distância. Percebemos que as noções de proximidade, de distância, de fronteira entre si mesmo e do outro eram insuficientes para dar conta da presença. O próximo, o distante, a distância social, o blurring — neologismo inglês para designar a ausência de fronteira entre o privado e o profissional — , o FOMO (fear of missing out[2]) — medo de perder algo nas redes sociais — ou o FOGO (fear of going out) — medo de sair de casa, que parece ser uma nuance da agorafobia — são os novos sintagmas que testemunham novas doenças ligadas à presença e aos efeitos das relações com o outro, com o exterior, com o vizinho próximo, com o íntimo e com o êxtimo.
Para atenuar a ausência, o digital se impôs nas vidas inserindo-se profundamente. Dois termos passaram para a linguagem comum para circunscrever esse efeito, o “presencial”[3] e o “a distância”. Com a tecnologia digital, tivemos acesso à possibilidade de “nos ver” sem estar de forma presencial, “nos ouvindo” ao nos conectarmos, nos aproximarmos, mas a distância. Toda vez que o objeto a é tocado, o ver se impõe em detrimento do olhar, e a imagem especular torna-se o reflexo de si mesmo. A ausência do corpo que não se enlaça, sem lastro, sem fazer mais uso da palavra, perde-se, esvazia-se de sentido e gozo. Consequentemente, efeitos de “fadiga”, de “corpo cansado” e mesmo de “lassitude”, por vezes se fazem sentir. Nossos encontros se digitalizam. Nossos encontros se virtualizam. Nós tocamos a presença?
Sem a presença dos corpos, sem a confrontação dos corpos, a presença se faz mais enigmática, mas necessária. Será sempre assim? Quais são as condições para que um encontro seja real, que uma presença se faça sentir, que ela se experimente? Como se produz o sentimento da presença?
As sessões analíticas não escaparam desse problema e atestam em que a análise é indissociável de uma certa relação aos corpos presentes. O que a ausência dos corpos revelou é que o corpo escapa. Lacan evoca a fugacidade (LACAN, 1960-1961/ 1999, p. 229) do corpo em O seminário 8: a transferência. Introduzamos o equívoco da fuga, dos corpos ausentes e dos corpos que escapam para interrogar o que é a presença real. Esta é aquela que se faz “em carne e osso”?
A expressão presença real (LACAN, 1960-1961/ 1999, p. 240) aparece pela primeira vez no seminário sobre a transferência, em diversas ocasiões e, também, como título de capítulo. É através de sua negatividade, sua negação, que frequentemente essa noção é apreendida. Nesse seminário, é sob a forma do insulto. O insulto à presença real que Lacan localiza na clínica de uma neurose obsessiva feminina. Seu sintoma consiste em ver, sem que se trate de uma alucinação, no lugar da hóstia, os órgãos genitais masculinos. Esse insulto à dimensão sagrada do dogma religioso católico é como um insulto feito à Eucaristia. Lacan se baseia nele para evocar a noção de presença real. Segundo São Tomás de Aquino, a presença real é substância. Ela não serve para designar uma coisa visível pelo “olho corporal”, mas sim a realidade inteligível de um ser. A presença real nomeia o corpo de Cristo. Ela não é perceptível através de nenhum dos sentidos nem pela imaginação, mesmo quando o vinho e o pão (a hóstia) dão forma imaginária para recobrir essa substância. Lacan se serve desse termo para dar conta da função do grande Phi, a função do falo, o que simboliza a ausência e a presença que ele designa como presença real. O grande Phi simboliza, ao mesmo tempo, a significação e seu além, o intervalo entre dois significantes, como presença vazia, como não relação entre dois significantes (S1//S2). “Pois ao signo que há para dar [pelo psicanalista], falta significante” (LACAN, 1960 – 1961 / 1999, p. 232).
Em cada intervalo se abre para o sujeito a questão do desejo do Outro, e algo do desejo se manifesta, mas nada que seja significável. É por isso que o obsessivo se dedica a conjurar o intervalo entre dois significantes toda vez que este se apresenta diante de si. Assim, no tratamento, a função que o falo simbólico ocupa em seu lugar “é que não é simplesmente signo e significante, mas presença do desejo. É a presença real” (LACAN, 1960 – 1961/ 1992, p. 244).
O falo, além de sua representação de órgão, além de toda representação ou possível significação, tem um status de signo. Mas esse signo é presença real que o analista, em seu desejo e seu corpo, pode encarnar em carne e osso.
Os objetos a são alojados no analista, ele os encarna. Distingamos com o ensino de Jacques-Alain Miller: o começo do tratamento, momento em que a idealização é apenas a máscara do objeto a, é a etapa da revelação. Esta é seguida pela repetição: a análise que perdura. Enfim, o terceiro tempo, aquele da estagnação, o da gaiola do sintoma, sua inércia. Aquele do gozo bem real. De acordo com os momentos, os objetos da demanda e do desejo são sublinhados, acentuados, marcados ou, ao contrário, reduzidos a zero, subtraídos pelo analista. O manuseio do objeto é o que funda o buraco real na linguagem e, ao mesmo tempo, o que o simboliza e o que cobre a falta sob seus vários disfarces. Quer o olhar seja firme, quer seja fugidio, aqui, o corpo do sujeito é, acima de tudo, o do narcisismo, reduzido à imagem. Seja na idealização da verdade, seja do discurso e do significado, o analista encarna o Outro como lugar dos significantes e da verdade. Por outro lado, através de seu silêncio, ele indica a presença do gozo. O seu silêncio, ou sonoridade, é o que convoca o objeto voz. A voz que não é sonora, que não é aquela da vocalização, mas a que surge cada vez que o significante cai sobre o que não pode ser dito, sobre o que é indizível. É a voz que se assemelha ao que despenca, ao que cai do corpo quando o significado se perde e foge. A palavra, sem o eco produzido pelo silêncio do analista, esvazia-se de significado e de gozo.
Da mesma forma, o corpo do sujeito, como sustentação do brilho fálico ou depositado no divã como uma casca, se confronta com o corpo vivo do analista, para além do que é, com o que existe. A presença real do corpo do analista como suporte é também aquela que convoca o presente do dizer. “Trata-se da oposição do que chamarei de dizer do presente ao presente do dizer” (LACAN, 1957 – 1958/ 1999, p. 65), distingue Lacan em O seminário 5: as formações do inconsciente. Ele especifica que não é simplesmente um jogo de palavras, mas que a atualidade do presente permite localizar a atualidade do falante no nível da mensagem, enquanto o presente do dizer abre o espaço à metonímia ou ao que se ouve. Acrescentamos: o que é lido a partir do que é dito, o que se goza de dizer. Quando o psicanalista é presença, ele é, ao mesmo tempo, apoio velado de um desejo — Che vuoi? — e suporte, através do objeto a em presença, do gozo.
Pois, quando o desejo do analista se faz suporte de uma presença real como impossível, ele pode também encarnar, fazer interpretação de um evento de gozo singular. Se o significante não é tudo, a presença real enodada ao desejo do analista é o index do real do gozo do corpo. Com a presença real, Lacan nos coloca na via da sessão analítica como objeto topológico, um real que não é produzido pelo impossível, mas pelo nó, pelo manuseio do nó.