Mauricio Tarrab
Psicanalista, Membro da EOL /AMP |
mauricio.tarrab@gmail.com
Resumo: Neste texto o autor retoma e comenta outra publicação de sua autoria, “A psicose e a máquina de interpretar”, e resgata a ideia de que o real, fora do sentido, coloca em funcionamento uma máquina de produzir ficções e que a própria psicanálise pode fazer funcionar essa máquina de produzir sentido. Ele ressalva, no entanto, que, com o ensino de Lacan, é possível ir além do campo ficcional, e é esse além que o autor desdobra em seu texto.
Palavras-chave: real, interpretação, psicose.
Psychosis and the interpreting machine
Abstract: In this essay, the author revisits and comments on another publication of his, “Psychosis and the interpreting machine”, bringing back the idea that the real, being outside of meaning, puts into operation a machine that produces fictions and that psychoanalysis itself, can make this machine of meaning production work. He points out, however, that with Lacan’s teaching, it is possible to go beyond the fictional field and it is this beyond that the author unfolds in his text.
Keywords: real, interpretation, psychosis.
Em razão do convite que me fizeram, voltei a ler, com certa distância, meu texto “As psicoses e a máquina de interpretar” (TARRAB, 2018) para retomar uma temática que sempre me pareceu apaixonante. O texto extrai consequências de uma pontuação de Jacques-Alain Miller.
Miller faz essas pontuações em formulações de Lacan, que ele espreme, retorce, desenvolve, combina, separa, mas, de onde, fundamentalmente, extrai consequências. Ler e escrever estão nesse “método” que Miller coloca em jogo. Lê-se a partir dessas pontuações e isso permite escrever algo novo. No argumento do semestre escrito por Cristiana Pittella, pude ver que trabalharão a partir da referência desse texto extraordinário de Miller, “Ler um sintoma” (2016), e, de fato, em uma série de Noites da Escuela de la Orientácion Lacaniana (EOL) que organizei com Silvia Salman, trabalharemos algumas pontuações, uma delas sobre a interpretação, e o que resta como um x mais além da interpretação freudiana.
O tema é tão fundamental que começou com a interpretação dos sonhos… mas é preciso centrar-se em um tema, fazer-lhe bordas, cercá-lo, para que a fuga de sentido não nos extravie. O que me atrevi a dizer nesse texto, que vocês tão amavelmente tomaram e que apresentei em uma Mesa Plenária no Congresso da Associação Mundial de Psicanálise em Paris, é que “há uma máquina de interpretar” e que essa máquina de interpretar funciona porque há uma debilidade para afrontar o real. Parti de uma pontuação fundamental, que é a de que a debilidade chamada mental consagra o corpo falante ao delírio, ou seja, que o consagra à interpretação. Se a radicalizarmos, podemos dizer que não há outra possibilidade para o ser falante que delirar. O que faz também que, com isso, digamos que o delírio é normal. Uma formulação que Lacan extrai de Freud mesmo.
Lacan o diz de muitas formas, por exemplo, que é uma evidência fundamental em uma análise perceber que se fala só no semblante… e para isso não é necessário ser psicótico.
Então, o delírio, ainda que normal, e isso já está em Freud, está do lado da resposta ao real, que, como tal, é fora de sentido e é o que faz colocar em marcha essa máquina eficaz, às vezes infernal, às vezes tonta, de produzir sentido. Sejamos precisos… de produzir ficções. E essa ideia reabre o grande capítulo da psicopatologia, desde as psicoses à psicopatologia da vida cotidiana.
Penso que, a partir de um certo momento, pode-se ler o alcance do ensino de Lacan como um modo de comprovar se seria possível ir um pouco mais além do campo ficcional. Até chegar a formular a aspiração em termos condicionais sobre a possibilidade de um discurso que não fosse do semblante.
O que existe de ficcional na própria psicanálise impeliu Lacan até o final. Existem os discursos, sim, mas, no final, os discursos não são mais que uma articulação significante que governam as palavras e incidem nos corpos. Humpty Dumpty[2] sabia algo disso. Mas Lacan aponta para algo mais. Existem os discursos que giram, como ele diz, no Seminário 19: “o gozo, a verdade, o semblante, o mais de gozar, ali gira a coisa. E ali está este suporte, o que ocorre ao nível do corpo […] o ground” (LACAN, 1971-72/2012).
O ground está ali, em inglês, ground, o solo, o solo dos discursos é o corpo. E nesse ground passam coisas, ocorrem coisas nos corpos. Retomarei isso no final com algumas referências clínicas que me interessa compartilhar com vocês.
O ground
Quando assinala que o “matérial-ne-ment” — só o material não mente —, Lacan define sua própria orientação até um ponto certo, firme, que é esse encontro entre o corpo e o significante que não só muda o corpo, mas que também muda o significante mesmo.
Por outro lado, com sua indicação no Seminário 23, de que é preciso “reduzir toda invenção ao sinthome” (LACAN, 1975-76/2007), ele assinala onde é que esse ground se corporifica e diz, ao mesmo tempo, que isso poderia se “encarnar” em uma prática possível, quando a psicanálise parecia encalhar na borda do desalento. A debilidade do saber, a debilidade do saber inconsciente, evidenciada como um fim de linha, força a passagem do inconsciente ao sintoma como única via praticável.
A própria psicanálise põe em funcionamento essa máquina ficcional. Se nos descuidamos, ela a estende em todas as direções e, então, em meio às “criaturas das palavras” que a psicanálise convoca, onde estaria o real? A questão deveria nos incitar, aos analistas, desde que tratemos de não nos perder na névoa dos semblantes e na circulação dos discursos. A pergunta se sustenta: onde está o real? É uma pergunta epistêmica, já que implica o saber e faz girar seu ensino, e é uma pergunta clínica, já que determina de outro modo a orientação da psicanálise, de sua clínica e de sua prática.
Onde está o real? No gozo? No corpo? Na irrupção do trauma? No furo do sexo? No umbigo do sonho? No escrito? No sintoma?… E isso, como se alcança? A prática e a análise ensinam que não se trata de buscar o real como a verdade. A prática e a análise ensinam que é o real que nos encontra.
Por isso digo que, ainda que as neuroses mesmas possam ser consideradas ficções dessa ordem, nada o ilustra melhor que os fenômenos intuitivos e interpretativos das psicoses, as ordinárias e as outras. E é nessa via que Lacan, muito cedo, formulou a ideia, um tanto descabelada, de que a psicanálise é uma paranoia dirigida. É uma paranoia porque, na análise, o analisante — não o analista, o analisante — não faz outra coisa que interpretar. O que lhe disse o analista, o que não lhe disse, porque esse tom ao dizê-lo, disse-me isso, mas queria dizer-me… porque esse ruído detrás do divã… Essa estrutura interpretativa faz aparecer na análise a dimensão do desejo do Outro, ou seja, de sua intencionalidade. E é um bom indicador sobre o momento que se atravessa na transferência localizar quando vocês interpretam a seus analistas. Prestem atenção e verão que não há muita escapatória. Lacan conservou o dispositivo freudiano e, ao mesmo tempo, não deixou de colocar “pedras no caminho”[3] nessa maquinária difícil de se deter.
O excesso de interpretação, tributário da fuga de sentido, fez Lacan mudar muitas vezes sua concepção de interpretação e o seu alvo. E agora, no ponto em que estamos, o termo interpretação já não nos convence, já não diz bem o que quer dizer a interpretação para a psicanálise que praticamos.
Tomei no texto essa frase preciosa de “Função e campo da fala e da linguagem”, que demonstra como o ensino de Lacan não é linear. Não segue a flecha do tempo. O que está no final retoma o que já estava no princípio como intuição e, também, como formalização porque é uma frase, de longo alcance, que indica uma formalização sobre a interpretação: “… e ainda o suspiro de um silêncio basta para suprir todo um desenvolvimento lírico” (LACAN,1953/1998). É uma indicação clara do que a interpretação lacaniana deveria ter de contradelirante. “O suspiro de um silêncio…” não há ali só um silêncio, que é todo um capítulo sobre a interpretação. Nesse “ainda o suspiro” está a presença mesma do psicanalista e de seu desejo.
A interpretação não necessitou esperar a psicanálise para se fazer um lugar, não só na psicopatologia, senão na própria cultura. E a psicanálise, desde “A interpretação dos sonhos”, se localizou nessa corrente cultural arriscando se perder na construção de uma ficção sempre interpretativa, risco que Lacan denunciou ao final de seu ensino.
Lacan produz uma ruptura também no campo da interpretação. Separa a psicanálise daquilo que a incluía em uma hermenêutica e, ao traçar os limites do campo freudiano, reconhece os limites de Freud como também segue a orientação secreta que acredita ler no próprio Freud: “O que ele realmente executa, ali, sob os nossos olhos fitos no texto, é uma tradução pela qual se demonstra que o gozo […] consiste propriamente nos desfiladeiros lógicos (…)” (LACAN, 1974/2003 p.514).
Isso muda as coisas para a interpretação que se quer “analítica”. O ternário edípico já não é causa, senão uma interpretação, mas a serviço do gozo. E quando se trata do gozo, não há uso comum nem sentido comum da interpretação, o que a situa sempre um pouco fora de toda regra. Sua função alusiva, ilustrada pelo dedo apontando para o alto de São João de Leonardo da Vinci, localiza o horizonte da interpretação mais além do marco do quadro, mais além do marco simbólico.
Alcançar, ou não, esse fora de sentido torna-se chave no ultimíssimo ensino de Lacan, que havia começado com a exaltação dos “poderes da palavra” e a promessa que oferece Ao plus-de-sens (mais-de-sentido). O devir da própria prática lacaniana evidencia que o sentido sempre está em fuga e que esse ponto fixo, que comanda a repetição, não se captura pelo sentido.
E direi que aqui nós topamos com a questão do ponto fixo, para dizê-lo, em termos de solo, do ground, o ponto onde poder-se-ia ficar de pé. Essa é a questão que justifica voltar a visitar Humpty Dumpty e, também, sobre o que as psicoses ensinam ao psicanalista. É o que afirma Fernando Casula quando recorta esta frase de Miller em A interpretação pelo avesso”: “o avesso da interpretação consiste em cercear o significante como fenômeno elementar do sujeito, como anterior a sua articulação enquanto formação do inconsciente, que lhe dá sentido de delírio” (MILLER, 1996, p. 98).
Subamos mais uma vez no muro com o famoso Ovo… Temos ali um divisor de águas para a interpretação: vamos do lado “histérico” com Alice, fazer com que as palavras signifiquem outra coisa do que se quer fazer significar. Temos claro que, ao interpretar, não nos privamos disso com os analisantes, mas isso tem um horizonte que não se alcança nunca. A fuga de sentido é incontrolável quando a máquina de interpretar vai por esse caminho, especialmente nas psicoses. O sujeito corre o risco de precipitar-se em uma sideração de sentido delirante que não se pode deter e que lhe resulta insuportável.
O outro caminho é o que indica o Ovo: trata-se de que há um mestre. Um mestre do jogo, com certeza, um mestre do discurso que decide sobre as palavras que podem ser ditas nesse discurso. Mas, também, e isso é uma modulação fundamental, um mestre que decide sobre os corpos.
Circundá-lo, localizá-lo, sublinhá-lo, “fazê-lo notar”, como diz Lacan em Estou falando com as paredes (LACAN, 1971-72/2011), aponta para a detenção do deslizamento infinito e pode permitir estabilizar as significações. Deter esse deslizamento e centrar o sujeito sobre os fenômenos elementares permite fazer com que o Outro gozador perca a consistência recolocando-o no lugar de um semblante e, eventualmente, permitindo reordenar a relação com o corpo, se é que se tem um corpo.
Éric Laurent sustenta que, na psicose, a interpretação do sujeito está baseada em uma certeza (em um ponto fixo) e que o sujeito psicótico “está pronto para impô-la ao mundo” (LAURENT, 2017, p. 19). Por essa via, o inconsciente a céu aberto da psicose não é mais que uma máquina interpretativa, cuja produção — delirante — não cessa de traduzir os significantes de lalíngua. E Laurent ensina que o analista deveria intervir no sentido de não permitir ao psicótico se deixar levar pelo movimento delirante e voltar a centrá-lo nos fenômenos elementares, os S1 isolados que a ele se impõem. O caso de Isabela, que eu menciono no texto, é um grande ensinamento para nós.
Laurent toma como exemplo o milagre do uivo, do caso Schreber. Imaginando um diálogo fictício, ele lhe perguntaria: “Você disse ‘uivo’, ‘milagre do uivo’? Diga-me um pouco mais. O que é um ‘milagre do uivo’?” (LAURENT, 2017, p. 21). Recorta o significante ‘uivo’, que nomeia um acontecimento de corpo, e convida o sujeito a falar sobre “como se defende do milagre mediante uma invenção particular” (Ibid.). Podemos ler no livro Conversações Clínicas de UFORCA (UFORCA, 2020) uma apresentação de pacientes realizada por Miller que coloca em ato essa orientação de maneira esclarecedora. Diferentemente de Humpty Dumpty, a psicanálise nos ensina que há um mestre mais além do significante.
O que responde e o que não responde
O inconsciente interpreta porque o inconsciente é essa parte do sintoma que responde, e isso permite a dialética cifração-decifração (LACAN, 1975-76/2007). Mas como tocar com a interpretação aquilo que não responde do sintoma e produzir uma ressonância que não seja de sentido? É o problema que traz à prática do analista a aspiração de Lacan de reduzir o sintoma a seu real. Estamos diante do que se pode decifrar do trabalho interpretativo do inconsciente e do que se pode captar do gozo opaco do sinthome. E como se capta isso? Miller dá o exemplo da alucinação do dedo cortado do Homem dos Lobos. Por que comparar a emergência do Um sozinho com uma alucinação, senão para dizer que, como isto está cortado de toda cadeia, não retorna tal como retorna o recalcado?
“Se há retorno, (…), não é na história, mas no real” (MILLER, 2009, p. 34). É uma emergência, uma intrusão, como o é uma alucinação. Por isso tem também o valor de ser prova de um real. Esse Um sozinho não se conecta ao Outro nem ao sentido. Não se decifra, pois é capturado, é testemunha dessa emergência. Talvez isso responda ao que, entre outras coisas, as psicoses ensinam à interpretação lacaniana.
“Se há retorno, (…), não é na história, mas no real” (MILLER, 2009, p. 34). E onde se pode capturá-lo, se não retorna como o retorno do recalcado? Às vezes, pode-se capturá-lo na análise, não como saber, sentido ou verdade, mas como acontecimento, como surpresa, para o analisante e para o analista. Muitos testemunhos de Passe testemunham essa contingência final em torno de um acontecimento de corpo como um pedaço de real. O acontecimento de corpo torna-se então — fórmula paradoxal — um fenômeno elementar que se pode ler. São requeridas, para isso, as chaves de leitura que o analisante pôde extrair ao longo de toda sua análise. Por vezes, um testemunho de passe consiste em apresentar essas chaves de leitura para ler o Um sozinho. Lê-lo é extrair desse real um sentido na encruzilhada do fora do sentido, do acaso e da história.
Mas voltemos à questão do Mestre. Lembrem-se do escrito “A direção do tratamento e os princípios do seu poder” (LACAN, 1958/1998), no qual se mostra claramente a intencionalidade política que Lacan dá ao tratamento analítico, pois não se trata somente da direção do tratamento, mas dos princípios de seu poder. E se estamos metidos nessa ordem política do tratamento, não podemos falar da interpretação sem situar a questão dos princípios de seu poder. Lacan mesmo o fez, de forma enérgica em sua época, para questionar, na psicanálise daquele momento, a intrusão não só do discurso universitário, mas, em especial, do discurso do mestre na psicanálise e na prática da interpretação que se encarnava como o analista mestre.
O que se passa hoje conosco é que estaríamos curados por Lacan ter escrito sobre isso em 1956? Podemos dizer que estamos curados, estamos a salvo de seguir encarnando, não somente o analista universitário, mas também o analista mestre?
A boa pergunta para o analista seria: quem é o mestre na psicanálise que eu conduzo? Como evitar essa pergunta sobre quem é o mestre? Por exemplo, se a evitamos, a resposta e o mestre do jogo em uma análise vão entrar de alguma maneira surpreendente e será o momento no qual iremos pedir uma supervisão. Assim, enquanto a coisa funcionava de uma certa maneira, há algo que, prontamente, entra em jogo e não se sabe o que fazer com isso. Sempre há que se buscar um mestre em um caso. E vocês sabem muito bem a importância que tem em uma análise capturar, por exemplo, um significante que seja uma chave de leitura, os efeitos que isso tem para um analisante.
Interpretar… é uma palavra aplicada a muitas coisas diferentes e, além disso, abarca campos tão variados que não é fácil saber o que dizemos ao usá-la. Por exemplo, aquele que toca um instrumento musical, interpreta uma obra, um ator ou uma atriz que interpreta um papel que está escrito, improvisa em alguma parte. Um compositor, nesse caso, um compositor e maestro muito próximo a mim, meu irmão, me explicava a importância que se tem justamente de interpretar o que o compositor esperava que fosse lido de sua partitura, quer dizer, aquilo que, alguma vez, teria escrito. Essa interpretação, ainda que se queira ser fiel, tem sempre algo que é agregado por parte daquele que interpreta. Existe a obra e existe a interpretação que, aquele que a executa, lhe agrega. Poderíamos delirar com isso e dizer que a interpretação faz a música existir, pois onde ela estaria antes de ser interpretada?
Uma vez me convidaram para dar um seminário sobre a interpretação em São Paulo e, quando cheguei, à noite, me levaram para escutar música numa linda sala, a sala São Paulo, para escutar um concerto de Rachmaninoff. Enquanto o ouvia, certamente pensava no que teria que dizer no dia seguinte. E como o contexto me provocava um pouco a questão, enquanto soava um violino espetacular, eu me perguntei por que usamos a mesma palavra para dizer coisas tão diferentes como o que fazemos em uma análise e como o que o violinista estava fazendo com sua arte naquele momento. E pensei que poderia haver uma vinculação que fosse mais além da mestria com um ou outro instrumento. Encontrei uma formulação da qual gostei. Pode-se dizer que aquele que executa um instrumento musical o faz, com maior ou menor mestria, de modo homólogo ao que o analista faz com sua leitura: ambos fazem escutar o que está escrito.
Pareceu-me uma boa fórmula para a interpretação analítica, com a condição de acrescentar que, em um e outro caso, o corpo está concernido, mais além das palavras. Havia uma canção que cantava Domenico Modugno, cantor italiano, que se chamava “Paroles”, palavras, tão somente palavras há entre os dois. Isso, poder-se-ia falar da situação analítica, na qual, supostamente, só há palavras entre os dois parceiros. E, entretanto, seguindo essa linha que percorro, o que há a dizer com todas as letras, para seguir a forte indicação de Humpty Dumpty, é que analisar, analisar-se, interpretar, não é um jogo de palavras. No primeiro lacanismo que conheci, tudo era jogo de palavras, até que chegou Miller com o Outro Lacan, nos anos 80, que permitiu abrir um campo novo, completamente mais além das palavras.
Ao longo de seu ensino, Lacan formula, de maneiras distintas, como pensar a estrutura da interpretação, ainda que não o faça de maneira explícita. Mas pode-se ler em muitos desenvolvimentos a ideia latente de que há um esforço de redução: “ainda o suspiro de um silêncio…”.
Nas conversas em Saint-Anne, publicadas como Estou falando com as paredes (LACAN, 1971-72/2011), Lacan fala da interpretação, em especial, na primeira dessas conversas, intitulada “Saber, ignorância, verdade e gozo”. Toma os quatro termos, um por um; em princípio, o saber, certamente o saber que não se sabe, o saber não sabido de que se trata em psicanálise, ou seja, o inconsciente. A importância da primazia do saber em psicanálise é o primeiro ponto disso que faço Lacan dizer, como estrutura da interpretação. O segundo ponto vai diretamente no tema da interpretação, ele diz:
“O segundo ponto, vocês não esperaram por mim para sabê-lo — dirijo-me aos psicanalistas pois ele é o próprio princípio do que vocês fazem, a partir do momento em que interpretam. Não há interpretação que não se refira à ligação entre aquilo que se manifesta de fala, no que vocês escutam e o gozo” (LACAN, 1971-72/2011, p. 26).
Podemos então ser inocentes como Alice e pensar que se trata de um jogo de palavras ou que, na transferência, que sustenta o laço analítico, trata-se só de palavras, mas aquilo com o que se encontrarão é que, o que dizem, concerne ao laço entre as palavras e o gozo. E algumas coisas na prática da análise, como no amor, é melhor sabê-las logo, então, para retomar Humpty Dumpty e contradizer um pouquinho sua arbitrariedade, o mestre, a quem ele se refere na análise, é o gozo.
Lacan diz que o laço entre as palavras e o gozo não apareceu em Freud de imediato, pois, ele disse, houve uma época do princípio do prazer em Freud — como também poderíamos dizer isso de Lacan, pois tampouco apareceu em Lacan no princípio —, uma época na qual tudo se resumia ao significante. Podemos explicar o caminho mais claramente freudiano de uma psicanálise dizendo que vai da ignorância de um saber que não se sabe e que faz sintoma à verdade que a interpretação revela, e que é a chave ética e curativa freudiana, e o que cai como saldo é um saber.
Claro — disse Lacan —, um dia Freud mesmo foi surpreendido pelo fato de que, mais além do sentido desse programa, havia outra coisa, a repetição, a insistência de um benefício de gozo que comanda a repetição: ali temos o mestre. O mestre é o que comanda a repetição e, por outra parte, poder-se-ia dizer que, se não houvesse repetição, o que interpretaríamos? Só a repetição permite situá-lo, então temos a insistência da repetição.
E ali Lacan formula seu terceiro ponto para essa estrutura da interpretação dizendo: “Se nossa interpretação nunca tem senão o sentido de assinalar o que o sujeito encontra aí, o que é que ele encontra? Nada que não deva ser catalogado no registro do gozo” (1971-72/2011, p. 28).
Assinalar o que o sujeito encontra. A estrutura mesma da interpretação lacaniana é assinalar, assinalar o ponto de gozo. Depois, o como o fazemos assinalar: se cortamos a sessão, sublinhamos, interrompemos, isso pode variar; o tema é assinalar.
O que encontra o sujeito que há que fazê-lo notar? O ponto de gozo da repetição. Essa é uma indicação maior para o praticante, em especial, é uma indicação contra essa nova ferocidade do praticante que, muitas vezes, vem tomar o lugar da ferocidade curativa; quero dizer que, quando na prática se passa da ferocidade curativa, é porque se tropeçou com o impossível de curar nos tratamentos que alguém conduz ou porque na própria análise tenha encontrado também esse impossível.
Muitas vezes se escuta, nas supervisões, uma nova ferocidade, que é a de fazerem-se buscadores da verdade, detetives do mistério do sofrimento sintomático, e Lacan vem agora dizer que se trata de “assinalar o que o sujeito encontra”. Recordem Isabela, “io sono sempre vista” (LACAN, 1962-63/2005, p. 86). Isso já implica, então, uma certa destituição do analista como mestre da interpretação.
Resta ainda o quarto ponto em Estou falando para as paredes, referido à interpretação. Ele se pergunta: “Onde é que isso habita, o gozo? Do que ele precisa? De um corpo” (LACAN, 1971-72/2011, p. 28).
Com isso, voltamos a encontrar a referência inicial de meu texto, a frase que tomei como ponto de partida a respeito do delírio e do corpo falante. O gozo habita no corpo e “os corpos estão capturados pelos discursos”. E sabemos que o corpo deve ser capturado pelo discurso para ser um corpo. Para regular-se como um corpo, para existir como um corpo, e para que alguém tenha a chance de ter um corpo. O que abre todo o capítulo do encontro, do mal encontro ou do desencontro entre os discursos e os corpos, que não poderei desenvolver com vocês, mas creio ser essencial para situar na clínica a problemática que vocês vão estudar este ano.
Então, temos saber, ignorância, verdade, gozo e um corpo onde se encarnam os discursos e, nesse caso, o que Lacan indica é que a interpretação deveria tocar o corpo. Quando, em relação à interpretação, se fala de ressonâncias, indica-se essa borda de onde se entrelaçam um saber não sabido, mas articulado, o inconsciente, as palavras, o fora de sentido, os gozos e os corpos. Quando alguém se analisa, supõe que não está falando às paredes, porque supõe — porque assim o interpreta — que há um Outro a quem lhe fala e, também, porque o analista se localiza ali na transferência. E sobre esse dizer, feito de palavras e atos, é que interpretamos. Em uma análise, circunscreve-se o discurso de tal maneira que pode-se dizer que, ao final, como o diz Lacan em Estou falando com as paredes (1971-72/2011), não é tão importante eu falar com ele, senão que falar com as paredes é seguir não suas palavras, mas o circuito da reflexão de sua voz. O analista pode bem ser essas paredes que contêm, em uma análise, o espaço onde o mais singular do analisante tenha a oportunidade de ressoar.