TEREZA FACURY
Psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG |
terezafacury@gmail.com
Resumo: A autora elege o texto de Miller “Ler um sintoma” para abordar o tema da interpretação. A leitura de um sintoma implica em uma defasagem entre a escuta e a leitura que se faz sobre o dito do sujeito. Para esclarecer essa diferença, aborda um caso relatado por Guilherme Ribeiro no Núcleo de Psicanálise e Medicina e o testemunho de passe de Gustavo Stiglitz: “Aqui hay gato encerrado. Sobre el fenômeno psicossomático”.
Palavras-chave: Escuta, leitura do sintoma, interpretação.
INTERPRETATION BETWEEN LISTENING AND READING
Abstract: The author chooses Miller’s text “Reading a symptom” to address the theme of interpretation. The reading of a symptom implies a gap between listening and reading of what the subject says. It also discusses a clinical case presented by Guilherme Ribeiro and Gustavo Stiglitz’s pass testimony “Here there is a closed cat. About the psychosomatic phenomenon”.
Keywords: listening; reading a symptom; interpretation.
Araceli Fuentes (2012), em seu texto “O fenômeno psicossomático e o sintoma: diagnóstico diferencial”, toca em um ponto que considero fundamental. Ela se refere ao fato de que nós, psicanalistas interessados pela psicossomática, nos encontramos em um campo limite tanto para a psicanálise como para a medicina. E nós só podemos abordar esse terreno limite, esse campo limite, por meio do discurso analítico. O que nem sempre é fácil.
Retomo Lacan no texto “Psicanálise e medicina”, citado por Fuentes (2012, p. 1):
“O lugar da psicanálise na medicina é extraterritorial devido tanto aos médicos como aos psicanalistas. A questão do gozo do corpo é contígua às duas disciplinas.
Se a medicina negligencia a incidência do gozo no corpo ela desaparece nas tecnociências. Isto se ela não se esclarece pela psicanálise, existe essa possibilidade. Inversamente, se os psicanalistas não se preocupam por este campo do real, que seremos então, senão psicanalistas medrosos?”[2]
Nós não dispomos de outro meio que não a palavra para abordar um fenômeno que mantém com ela uma relação que pode ser de exclusão ou de borda. A nossa aposta é não confundir o fenômeno psicossomático (FPS) com o sintoma somático; é manter aberta essa hiância e investigar de que se trata a especificidade do FPS.
O ponto de partida da psicanálise é a palavra e, conforme nos diz Miller (2016), o psicanalista está invadido pelas criações, pelas criaturas da palavra. O que distingue a psicanálise de outras práticas terapêuticas que também trabalham com a palavra é o bem-dizer, próprio da psicanálise, que se funda no saber ler que, por sua vez, completa o bem-dizer. Não são nada um sem o outro.
Bom, deixemos de lado a questão do diagnóstico diferencial entre o sintoma e o FPS para nos determos no sintoma. Miller (2016) tenta nos aproximar do que ele chama de ler um sintoma. Enfatizar a questão da leitura em relação à escuta subverte a prática analítica que faz uso da palavra, mas também cria uma distância entre falar e escrever. A psicanálise opera a partir dessa distância entre escuta e leitura, uma do lado do sentido, outra do lado do sem sentido. É o próprio funcionamento da interpretação que se modifica com a passagem da escuta do sentido à leitura do fora do sentido.
Podemos pensar essa distância como o espaço que determina um entre, entre a escuta e a leitura do sintoma? Foi assim que fui remetida a outros “entre”, como psicanálise e medicina, S1 e S2, sintoma e fenômeno psicossomático, etc…
Lacan (1975/1998) responde a uma pergunta que lhe foi feita, durante sua Conferência em Genebra sobre o sintoma, quanto à posição do paciente psicossomático em relação ao acesso ao simbólico. Ele responde que se trata de um domínio pouco explorado, mas que é algo da ordem do escrito e que, em muitos casos, não sabemos lê-lo. Tudo se passa como se algo estivesse escrito no corpo. Por isso meu interesse em trazer este texto hoje para discutir com vocês.
É de uma hiância que estamos falando, de um limite, um limite da estrutura e, portanto, de um incurável, tal como Freud nomeou os restos sintomáticos em uma análise. Há um x que resta mais além da interpretação freudiana do sentido inconsciente dos sintomas, e Freud tentou se apropriar disso de diversas maneiras. Colocou em jogo a reação terapêutica negativa, a pulsão de morte, até dizer que o final de análise deixa sempre subsistir os restos sintomáticos.
Na prática lacaniana, nós lidamos com a confrontação do sujeito com esses restos sintomáticos. Trata-se de fazer um novo arranjo com eles, porém, não sem antes passar pela decifração do sintoma. Com os restos sintomáticos, Freud se deparou também com o real do sintoma, o que, no sintoma, é fora de sentido. Importante dizer que Freud ainda caracterizou o sintoma a partir do que ele chamava satisfação pulsional, “como o signo e o substituto de uma satisfação pulsional que não ocorreu” (FREUD, 1926-1976, p.112), ou seja, algo que não se limitava às lembranças do sujeito.
Lacan substituiu o aparato de interpretar de Freud, o ternário edípico e sua produção de sentido a partir do sintoma, por um ternário que não produz sentido, o do Real, do Simbólico e do Imaginário. Por isso, ler um sintoma vai em direção oposta à produção de sentido; consiste, portanto, em privar o sintoma de sentido.
A interpretação como “ler de outro modo” necessita do apoio da escrita, isto é, a referência a que os sons emitidos podem se escrever de modo distinto ao que se quis. A interpretação supõe a transmutação da fala em escrita. Pensemos na homofonia: é impossível jogar com a homofonia sem se referir à ortografia, ela só é possível se o que se pronuncia da mesma forma se escreve de modo diferente. Ler de outro modo não é automático, muito menos a verdade; pelo contrário, tem algo de arbitrário e aleatório.
Miller (2016) lembra que Lacan realizou a demonstração do que se trata na escrita ao mostrar que a imagem onírica retida por Freud tem valor de significante despojado de significação. Ele pode distinguir isso quando Freud afirma que o sonho se lê como enigma, o que equivale a dizer que a imagem não vale como figura nem como pantomima, mas sim como letra — “esta parece ser apenas outro nome do significante, o nome deste quando se separa da significação e que está aí, besta como tudo” (MILLER, 2012, p.10). Ainda conforme Miller (2016), Lacan atribui um único predicado para todos os significantes, a besteira. “O significante é besta, porque o significado, todas as significações estando alhures, fica aí sem ter muito o que dizer dele mesmo” (Ibid.).
Um exemplo interessante que Miller (2016) nos oferece, no texto “O escrito na fala”, se refere à experiência de uma criança narrada por Michel Leiris no livro A regra do jogo. É uma criança que brinca com pequenos soldados e, quando um soldadinho cai e deveria se quebrar, não se quebra. Essa criança, que não lia nem escrevia, expressa o seu contentamento exclamando “Flismente![3]”. Corrigem-no: “É felizmente que se diz”. A criança pensava que era assim que se dizia quando algo dava certo, “flismente”, no qual se descobre a alegria, o contentamento e mesmo o júbilo em função do soldadinho que, ao cair com a espada, o fuzil não se quebra. “Flismente” é uma jaculação. “A jaculação é um gozo que encontra um significante adequado”, nos diz Miller (2016). Uma iluminação, uma explosão de verdade e um ponto muito importante: a meu ver, um “dilaceramento de um véu”. A regra do jogo é a necessidade de falar igual a todos, e o autor se interroga: “O que são as palavras apreendidas apenas com a audição?”. Tenta capturar lalíngua antes de ler e escrever. Ele nos fornece um ensaio de descrição do modo do ser falante na linguagem, justamente anterior ao alfabeto, antes que o sujeito se “alfabestice” (s’alphabêtisse), uma referência a Lacan no posfácio do Seminário 11.
Michel Leiris se refere às canções aprendidas quando somos crianças, nas quais há um jogo entre a música e a fala e evocam aí o mundo povoado, pelo efeito dos nomes, dos objetos fantasísticos que só existem pelos mal-entendidos na audição. Lalíngua é o que fará a linguagem através da escrita que encontramos como tal, sujeita ao equívoco, definível pelos equívocos que ela permite.
As cadeias significantes nas quais o sintoma está enlaçado não são de sentido, mas de sentido gozado. Escrevem-se como quiserem, porém, em consonância ao equívoco que faz a lei do significante. São cadeias significantes feitas de gozo com o equívoco que aparece quando se tenta escrever o que é dito. É um equívoco que se manifesta na diferença entre o oral e o escrito.
Segundo Laurent:
“A letra é perturbação lógica e a escrita para Lacan é o sistema de notação das perturbações da língua, do fato de que a língua escapa à linguagem, e que há sempre, no que diz, o que fica reservado, o que não chega a se dizer e que, no entanto, se escuta. A escrita permite levar isso em conta. Se ela parece mais propícia a dizer o íntimo, não é porque é primeira, mas sim porque pode notar o indizível” (2016, p. 127).
Trata-se menos de mostrar alguma coisa do que de uma ausência, que é de estrutura: o impossível de dizer.
Pensei em trazer os pontos que nos interessam do depoimento de passe de Gustavo Stiglitz para que possamos discuti-lo em paralelo ao caso que Guilherme Ribeiro nos apresenta. Trata-se nos dois casos de um sintoma relacionado às crises de asma e bronquite, fenômenos muito frequentes na clínica que exigem, na maior parte dos casos, uma intervenção médica e também de um psicanalista.
Ribeiro nos apresenta, logo de início, o seu embaraço ao se referir ao fenômeno psicossomático e sua dissolução. Fiquei me perguntando de que embaraço se trata e pensei que era desse mesmo embaraço sobre o qual falei no início do texto. Pensei que esse significante embaraço condensa um sentido e se aplica muito bem nesse campo tanto para nós, enquanto psicanalistas — quando lidamos com essas encruzilhadas, muitas vezes teóricas, na definição desses termos —, como para denunciar o embaraço de todo falasser nessa articulação do significante com o corpo. Mas o mais interessante é que, “independente do sofrimento no corpo ter ou não uma causa puramente física, desde que o falasser demanda, ele o faz a partir do campo da palavra, ele o faz com significantes. Portanto, esse sofrimento está relacionado à incidência da linguagem no corpo do falasser”, nos diz Guilherme Ribeiro[4].
G. faz uma demanda de atendimento a Ribeiro, inicialmente como psiquiatra, para tratar uma angústia intensa acompanhada de falta de ar, que o impedia de viajar de ônibus quando ia visitar seu pai em outra cidade. Viajar para ver o pai significava deixar sua mãe, por quem ele se sentia responsável desde que ela se separara de seu pai — o que nos leva a perguntar também o que se passa com ele diante da possibilidade do encontro com o pai. Parece-me que, tanto ao lado do pai como ao lado da mãe, ele fica muito desconfortável. Assim como ele fica quando frequenta a família da namorada. Sabemos, pelo relato de Ribeiro, que a mãe não o autorizava frequentar lugares aos quais ele não pertencia — uma fala frequente da mãe. Não sair do domínio materno! É dessa forma que a mãe dava lugar a ele no seu desejo, desde que ele não saísse do seu domínio.
Em uma sessão surge o significante acatar e o analista intervém escandindo-o a…catar…ar. Ao promover esse desarranjo com a escrita do significante, a palavra que estava congelada em um sentido fixo pode ressoar de outras formas, mesmo que não saibamos como isso se deu, pois, como Ribeiro mesmo disse, o sujeito não faz nenhum comentário sobre isso, porém, não foi sem efeitos.
Em seu testemunho, Stiglitz (2011) se propõe a abordar um incurável, não exatamente do sintoma, mas de uma de suas arestas. Ele se refere ao fenômeno psicossomático tomado por ele como campo de investigação sobre o S1; a como se enodam significante e corpo, uma vez que, no fenômeno psicossomático, um ponto de falta dá conta dos impasses da incorporação da estrutura.
No relato de Stiglitz, podemos fazer um recorte do caso em sua dupla vertente: a primeira, da articulação significante, em que, a partir da cadeia S1-S2, articula-se um sentido no qual o sintoma se ancora; e a outra vertente, a da leitura do seu sintoma guiado não mais pelo sentido, mas pela literalidade do significante.
Na primeira infância, a asma, entre lembrança encobridora e novela familiar, que não produzia angústia, e sim satisfação de saber-se cuidado.
A asma cede e a lembrança desaparece até a irrupção do efeito psicossomático da rinite na segunda década da vida. A asma fica reduzida à marca de impasse no enlaçamento do gozo e o significante. Trata-se aqui de um significante congelado, de uma fixação de um significante incapaz de localizar o sujeito, pois não é feito de recalque.
Outro fenômeno ligado ao corpo foi a hipocondria, tomado por ele “como delírio de S2”. Falar de pensamentos sobre as doenças velava as dificuldades com o corpo próprio e as voltas para abordar o corpo do Outro sexo.
Ele chama de tempo 1 o tempo compreendido entre a asma e o efeito psicossomático da rinite e de tempo 2 o sentido hipocondríaco em que ele fala da hipocondria como um delírio de S2. Por que delírio de S2? Na ausência de uma articulação significante entre S1-S2 que produzisse um sentido, onde seria possível localizar o sujeito (metáfora do sujeito), o sentido hipocondríaco delirante se apresenta como saída para o impasse. Dessa forma, o S2 é reintroduzido sob a forma da inércia do sentido fantasmático de morte.
Anos mais tarde, em uma visita a sua família, a irrupção de uma rinite alérgica em função de pelos de gato — o gato amado e alergênico, algo familiar que se torna estranho e molesto. Esse fenômeno passa a fazer parte da sua vida e da sua economia libidinal tornando-se causa do seu sofrimento.
Em outra situação, outro país, um gato negro passa por cima do seu corpo na cama. Era certo de que perderia o sono, mas o que surge é um significante “Schartze cutter”, em ídiche, “gato negro”, apelido do pai, um nome comum com valor de nome próprio. Dessa forma, se ligam o fenômeno e o pai em sua envergadura e função. O fenômeno se alojava na falha do laço e da função, mas só teve estatuto de sintoma com a aparição do gato negro, nesse caso, uma fobia. Agora existia algo, algo podia fazer ponte entre o corpo e o significante do nome próprio do pai. O gato, enquanto figura imaginária, conectava o S1 (Schartze cutter) com a parte do corpo afetada. O gato e a fobia fazem borda, índice de que a pulsão está em jogo.
Com a entrada do schartze cutter na análise, abre-se uma perspectiva para além do imaginário. Até aqui ainda estamos na vertente da interpretação pelo sentido, ou melhor, de uma construção de sentido que finalmente permite uma articulação significante e permite também ao sujeito se localizar.
O analista questiona a interpretação de Stiglitz de que a expressão schartze cutter significava gato negro e o convida para ir ao dicionário. E o resultado foi Schartze: negro; Cutter: corte; Katter: gato.
Uma intervenção que aponta ao real, de uma letra a outra, de um escrito ao outro e um passo de sentido. Gato negro transformou-se em corte negro; desaparece a figura imaginária do gato e um vazio toma seu lugar.
Entre gato e corte existe um espaço para que o sujeito apareça no lugar do efeito psicossomático. Agora era possível interpretar e o inconsciente trabalhar. A rinite deixou de ser um hieróglifo que estava ali para mostrar algo — uma falha — para não ser lido. O desejo do analista, tal como Champolion no deserto, introduz um vazio, um intervalo, que será a condição de possibilidade de uma nova escrita, dessa vez, para ser lida, decifrada e reduzida. Ele diz: “Era questão de cernir o truque de sentido pelo qual se poderia ir mais além do sentido fixado, ou melhor, do fora de sentido do qual padecia meu nariz com seu gozo desregulado” (STIGLITZ, 2011, s/p).
Com a introdução do S2, “corte”, foi inaugurada uma cadeia significante que inscreveu um circuito pulsional ligado ao olhar. A mulher, o pai e a mãe participavam desse circuito. O olhar melancólico da mãe que o fazia dormir, olhar o pai enquanto ideal ou rival e fazer-se olhar por ele, e olhar e fazer-se olhar pelas mulheres. Gato designa tanto o pai como o olhar “felina”, feminina.
O trabalho com o inconsciente é relatado por Stiglitz a partir de dois sonhos. Um deles nos interessa especialmente. Uma frase escrita no ar: “ud. Es um delinquente”. Delinquente era como o pai nomeava a alteridade, ou seja, aquilo do qual ele não compartilhava, porém, o filho sim. E as letras u-d, que faziam ali, é a pergunta do analista. Em associação, Stiglitz responde: “um e dois”, “um e outro”. Acontece o corte de sessão justamente no ponto em que a imagem escreve a separação e o sujeito toma distância do “Um do Ideal”. A operação analítica reinventou o inconsciente como tratamento de uma fixação de gozo enraizado no imaginário, tal como Lacan se expressa na Conferência em Genebra sobre o sintoma.
Shartze cutter marca um limite na incorporação da estrutura da linguagem ao mesmo tempo como aquilo que o pai transmite e faz barreira à mãe, mas nem todo gozo foi evacuado do corpo (Katter).
À sua própria pergunta, sobre o lugar que o efeito psicossomático tem agora com relação ao enodamento RSI, ele responde conferindo ao efeito psicossomático um marco, monumento que comemora a “epopeia singular” de fazer o nó.
Miller, no “Ultimíssimo Lacan” (2014), nos fala que, com a teoria dos nós, a direção é o dar voltas, e dar voltas tem uma estrutura, mesmo que não se trate de uma estrutura linguística. E, referindo-se às demonstrações que Lacan faz com os “objetos matemáticos”, os quais ele usa nesse momento de seu ensino, afirma que “as coisas” sabem se comportar. Nesse sentido, as tentativas topológicas de Lacan são figurações de que o analista corta. Figurações pelo corte, uma vez que tem o poder de mudar a estrutura das coisas. Aqui, não é a palavra que faz as coisas, é o corte o que muda a estrutura dos objetos representados. Com certeza, esse ponto nos ajuda a compreender melhor do que se trata nessa mudança da interpretação do sentido ao sem sentido.