BERNARD SEYNHAEVE
Psicanalista. Membro da ECF e da NLS (AMP) |
seynhaeve.bernard@gmail.com
Resumo: O autor sustenta o lugar determinante que Lacan dá à presença dos corpos em uma análise: o do analista e do analisante. Em seu ultimíssimo ensino, compreende-se que a interpretação segue o rastro do falasser considerando que a função do inconsciente se completa pelo corpo — não pelo corpo simbolizado nem pelo corpo imaginário, mas pelo corpo que tem em si algo de real. Portanto, para além da decifração, o que uma interpretação visa é perturbar a defesa, fazer ressoar o corpo afetado por lalangue. Para tanto, não basta se ver ou se falar; a presença física também faz parte da interpretação.
Palavras-chave: Interpretação, corpo; gozo, sinthoma, lalangue.
NOT WITHOUT BODIES
Abstract: The author sustains the determining place that Lacan gives to the presence of bodies in an analysis: that of the analyst and the analysand. In his last teaching, it is understood that interpretation follows the trail of the speaking being, considering that the function of the unconscious is completed by the body, not by the symbolized body, nor by the imaginary body, but by the body that has something real in it. Therefore, beyond deciphering, what an interpretation aims at is to disturb the defense, to make the body affected by lalangue resonate. Therefore, it is not enough to see or speak, the physical presence is also part of the interpretation.
Keywords: Interpretation, body, sinthome, jouissance, sinthome, lalangue..
Tento avançar com as questões que me tocam.
Gostaria de tentar precisar por que uma psicanálise lacaniana necessita, exige a presença dos corpos: o do analisante e o do analista.
Isso pode parecer evidente à primeira vista, mas não é. Dessa forma, uma questão que eu não esperava surgiu num grupo da New Lacanian School (NLS). Um colega disse: “Você verá, senhor, que um dia haverá AEs que terão feito suas análises por Skype”. Essa questão, que é política, coloca-se em nossa Escola, a NLS. Aqueles que estiveram em Tel-Aviv na Assembleia Geral de 2019 se lembram de nosso debate acerca do uso da internet (Skype) na cura.
Uma outra questão se coloca para mim na perspectiva de nosso próximo Congresso, que acontecerá em Gante, em junho de 2020[2], sobre a interpretação nos tempos do falasser, e não mais nos tempos do sujeito. Essa questão leva em consideração o ultimíssimo ensino de Lacan, que visa perturbar a defesa.
A defesa é esse “dispositivo psíquico” que Freud, desde o começo de sua obra, postula como sendo uma “defesa primária”, que bloqueia aquilo que chamou de “ameaças de desprazer” (FREUD, 1895/1980, p. 486) e que chamamos, com Lacan, de “o real do gozo”, o impacto da língua sobre o corpo. Para o último Lacan, a interpretação visa perturbar a defesa na medida em que cuida de não desfazer o nó de lalangue e do corpo, mas de fazê-lo ressoar.
O que seria, portanto, um corpo impactado pela língua?
Da necessidade da presença dos corpos
Freud, no fim de sua vida, estava com esta constante: a análise é interminável. Para o ultimíssimo Lacan, uma análise pode se concluir na medida em que o falasser encontra um saber-fazer com seu sinthoma, isto é, com o impacto da língua sobre o seu corpo. Se a interpretação visa perturbar a defesa, é na medida em que tenta tocar esse real do corpo que se goza.
Mas pergunto: para tocar esse real, a presença dos corpos, do analista e do analisante, é necessária?
Salientamos, a respeito disso, duas intervenções de Jacques-Alain Miller. A primeira é retirada de sua entrevista ao jornal Libération, em 1999.
“A tecnologia desenvolve modos de presença inéditos. O contato a distância em tempo real se tornou comum ao longo do século. Quer seja por telefone, agora celular, internet, videoconferência. Isso vai continuar, multiplicar-se, será onipresente. Mas será que a presença virtual terá, afinal, um impacto fundamental sobre a sessão analítica? Não. Ver-se e falar-se, isso não faz uma sessão analítica. Na sessão dois estão ali juntos, sincronizados, mas eles não estão ali para se verem, como demonstra o uso do divã. A co-presença em carne e osso é necessária, nem que seja para fazer surgir a não-relação sexual. Se sabotamos o real, o paradoxo desaparece. Todos os modos de presença virtual, mesmo os mais sofisticados, tropeçarão aí” (MILLER, 1999, tradução nossa).
A segunda é extraída de sua intervenção no texto publicado “Uma fantasia”, no Congresso da AMP em Comandatuba, em 2004. “O inconsciente é corporal?” (MILLER, 2005, p. 17). O efeito de interpretação se deve ao uso das palavras ou a sua jaculação? Além do mais, é preciso colocar o tom. Aqueles que tiveram a oportunidade de relatar as interpretações de Lacan sempre as repetem com o tom de Lacan. “A poética da interpretação (…) é um materialismo da interpretação. (…) É preciso pôr o corpo para elevar a interpretação à potência do sintoma” (Ibid.).
O que é um corpo?
Visto que se trata de delimitar o que constitui a junção do corpo e da língua, o que é, portanto, um corpo? O que é um corpo falante, o corpo dos seres falantes, o falasser?
Na apresentação do tema do X Congresso da AMP, em 2014, Miller apontou que se pode, sem dúvida, apreender o corpo como imaginário: “(…) encontramos a seguinte equivalência formulada por Lacan: o imaginário é o corpo. E (…) seu ensino, em seu conjunto, testemunha a favor dessa equivalência” (MILLER, 2014). Mas ele acrescenta que Lacan, ao final de seu ensino, enuncia outra coisa: o corpo “é um mistério” (Ibid.). Ele diz isso no Seminário: livro 20: mais, ainda: “o real (…), é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente” (LACAN, 1985, p. 178).
Tentemos especificar esse mistério. J.-A. Miller nos convida para fazer uma distinção entre o que chamamos um corpo e uma massa, um saco de órgãos, ou seja, entre o corpo e a carne.
“Na distinção entre o corpo e a carne, o corpo se mostra apto para figurar, como superfície de inscrição, o lugar do Outro do significante. (…) O que faz mistério, mas permanece indubitável, é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo. Para dizê-lo em termos cartesianos: o mistério é sobretudo o da união da fala com o corpo. Por esse fato de experiência, pode-se dizer que ele é do registro do real” (MILLER, 2014).
O ser falante tem, portanto, um corpo e o utiliza como um instrumento para falar. O que faz mistério é a própria amarração da língua e do corpo, é que UOM (LOM) (LACAN, 1975/2003) possa fazer uso de seu corpo para falar. E isso não se explica, é um mistério, isso faz furo no saber e, consequentemente, dá relevância ao registro do real.
Por outro lado, o falasser goza desse uso. O ser falante se goza de fazer uso de seu corpo enquanto falante. Portanto, não há somente o corpo que se imagina, há também o corpo que se goza. E esse gozo, o gozo do se gozar, é autoerótico, autístico, como precisa Lacan. A percussão da língua e do corpo faz furo (trou), ele diz mais, faz troumatisme (LACAN [1973-74], aula de 19/2/1974).
A esse “corpo marcado por acontecimentos de gozo, por traumas de lalíngua, virão, em seguida, efeitos inconscientes de sentido, assimilados por Lacan a efeitos de saber” (LAURENT, 2016, p. 57), especifica Laurent. “O gozo se experimenta: ‘isso se sente’. E é após essa prova pelo gozo que se produzem os efeitos de saber próprios aos efeitos significantes sobre o corpo” (Ibid.), “é preciso, de início, ter um corpo, condição para que o gozo (…) venha se inscrever nele” (Ibid.).
No começo de seu ensino, Lacan desenvolveu as consequências de sua tese da primazia do simbólico. O sintoma era então considerado um retorno do recalcado inconsciente velando a verdade do sujeito, e a interpretação analítica consistia em tentar revelar a verdade oculta dos sintomas e do desejo inconsciente do sujeito.
Nesse contexto, Lacan revisitou os conceitos freudianos — o inconsciente, a transferência, o sintoma e também a interpretação — à luz do simbólico enfatizando a palavra, a linguagem e a letra. Essa tese de Lacan implica que existe um Outro, com O maiúsculo, que é correlativo ao conceito de fala. Isso implica também que a linguagem seja estruturada, ou seja, que “os significantes estão em relação entre si sob duas espécies, a da combinação e da substituição, o sentido aparece como um efeito dessa combinação e dessa substituição” (MILLER [1995-96], aula de 31/1/1996, tradução nossa). A interpretação, nesse caso, não é um problema. Ela se ocupa dos significantes. Ela responde à questão do Che vuoi?, Que queres?, e mesmo que seja sobre o desejo, ela continua a ser uma questão de sentido. Mas se, ao início de seu ensino, Lacan relia Freud definindo o inconsciente como sendo estruturado como uma linguagem, à medida que seu ensino progride, ele extrairá as consequências desse arranjo do corpo com a linguagem, isto é, do corpo que se goza. Portanto, as coisas mudam, observa J.-A. Miller.
Para que a amarração da linguagem e do corpo aconteça, é preciso que UOM (LOM) faça de seu corpo um instrumento de fala, UOM (LOM) fala através de seu corpo; para falar, é preciso ter um corpo do qual se servir; UOM (LOM) deve consentir em ter um corpo para que a amarração se produza. E é esse nó entre linguagem e corpo que constitui seu sinthoma. Esse nó é sólido. A principal consequência dessa tese será orientar a cura analítica em direção a esse nó, em direção ao real do gozo produzido por essa amarração para fazê-la ressoar.
Lacan muda, então, o vocabulário, como observa J.-A. Miller. Ele não utiliza mais os conceitos freudianos de inconsciente, sintoma e recalque, mas fala de falasser, sinthoma e verdade mentirosa. Passa-se da linguagem à lalangue, da palavra à aparola (apparole), ou seja, ao aparelho de gozo, do sujeito do inconsciente ao falasser.
Para ilustrar essa mudança, J.-A. Miller toma de Michel Leiris um pequeno exemplo através do qual ele inicia sua “Regra do jogo”, três pequenas páginas que narram uma experiência de criança.
“Então, Michel Leiris é uma criancinha que ainda não sabia ler nem escrever, ele brinca com seus soldadinhos. Um soldadinho cai. Ele deveria ter se quebrado, mas não se quebrou. E Leiris diz: ‘foi tamanha minha alegria que me expressei dizendo: ‘flismente’ (reusement)!’. Mas é felizmente (heuresement) que ele deveria ter dito, sua mãe disse a ele. O pequeno Michel, quando estava indo tudo bem, acreditava que se dizia ‘flismente’ (reusement). Ele então descreve minuciosamente o quanto ficou surpreso: para ele, reusement era muito mais expressivo que heureusement. Reusement é, sem dúvida, uma pura jaculação (…), uma jaculação de gozo que encontra seu significante adequado. Mas agora se produz (…), como diz Leiris, ‘um rasgo no véu, uma explosão de verdade’. Ele descobre que há um sentido da palavra, um sentido na língua e que ele deve dizer felizmente (heureusement), como todo mundo. Sente-se que isso é único, que ele será capaz de escrever interminavelmente sua própria ‘Regra do jogo’. A regra do jogo é, justamente, que é preciso dizer como todo mundo (que nos endereçamos ao Outro com O maiúsculo) e que, nesse momento, a palavra se encontra inserida em uma sequência de significações precisas (numa estrutura gramatical, lexical, sintática) e que aquilo que era antes, era realmente uma ‘coisa minha’ — ele diz. Esse pequeno exemplo impressionante, Leiris o desenvolve um pouco mais adiante. Há um segundo fragmento de ‘A Regra do jogo’ que começa com estas palavras: ‘Quando ainda não sabemos ler’. Ele tenta capturar o que seria a linguagem antes de começarmos a escrever e a ler. Ele se pergunta o que são as palavras quando as apreendemos apenas pela audição” (MILLER, 1995-1996, aula de 17/1/1996, tradução nossa).
Lalangue não é uma estrutura, ela é sem Outro, ela não obedece às regras gramaticais e sintáticas. Ela não se endereça ao Outro, ela é para si mesma “o que se sabe, consigo”, como diz Lacan em seu último escrito (LACAN, 1976/2003, p. 567). Ela não é um querer dizer ao Outro, “ela não é o sentido, mas o gozo” (MILLER, 1995-96, aula de 31/1/1996, tradução nossa).
O que é uma interpretação no sentido do ultimíssimo Lacan?
No seminário O objeto da psicanálise, Lacan retoma, como observa Laurent (2020), as primeiras frases de seu primeiro seminário ([1953-54], 2009, p. 9) sobre a ação do mestre zen:
“todos sabem que o exercício Zen tem alguma relação, mesmo que não saibamos bem o que isso quer dizer, com a realização subjetiva de um vazio. (…) o vazio mental que se trata de obter e que seria obtido nesse momento singular, brusquidão que sucede à espera que se realiza às vezes por uma palavra, uma frase, uma jaculação, até mesmo uma grosseria, uma zombaria, um pé na bunda” (LACAN, 1965-66, aula de 15/12/1965).
O mestre zen coloca, portanto, seu corpo aí.
O analista também coloca seu corpo em jogo, a interpretação analítica é, ela mesma, um arranjo de lalangue e do corpo do analista. J.-A, Miller esclarece:
“Tudo está ligado ao acontecimento, um acontecimento que deve ser encarnado, que é um acontecimento de corpo — definição de sinthoma dada por Lacan. O resto, digamo-lo, é uma roupagem — uma roupagem necessária, na maioria dos casos. Mas o núcleo (da análise) (…), é esse instante, o instante da encarnação” (MILLER, 2009, p. 76, tradução nossa).
Mais adiante, com relação ao sinthoma, J.-A. Miller assinala também:
“Há um nível de defesa que é mais tortuoso, mais paradoxal (…). Do ponto de vista do singular, do ponto de vista do sinthoma, como o que há de singular em cada um, não vejo como evitar dizer — bem que eu gostaria —, não vejo como evitar ao menos passar por essa proposição a fim de aferi-la: o inconsciente (transferencial), ele mesmo, é uma defesa — sim —, o inconsciente é uma defesa contra o gozo em seu status mais profundo, que é seu status fora de sentido” (MILLER, 2009, p. 77, tradução nossa).
“A orientação para o singular”, ele continua, “não quer dizer que não decifremos o inconsciente. Ela quer dizer que essa exploração encontra necessariamente um obstáculo, que a decifração se interrompe no fora de sentido do gozo” (MILLER, 2009, p. 78, tradução nossa).
Mas, “do lado do inconsciente”, ele avança,
“há o singular do sinthoma, onde isso não fala a ninguém (o monólogo do falasser/parlêtre, o autismo do sintoma). Razão pela qual Lacan o qualifica de acontecimento de corpo. Não se trata de um acontecimento de pensamento (…). É um acontecimento de corpo substancial, aquele que tem consistência de gozo” (MILLER, 2009, p. 78, tradução nossa).
E, uma coisa importante a se lembrar, é que a interpretação que produz sentido, saber sobre o sintoma, não se relaciona com o acontecimento de corpo, com o sinthoma.
J.-A Miller assinala, então, o lugar determinante que Lacan dá à presença e, mais especificamente, ao corpo do analista no segundo tempo da análise:
“o ponto de vista do sinthoma consiste em pensar o inconsciente a partir do gozo. Pois bem, isso tem consequências para a prática, especialmente para a prática da interpretação. A interpretação não é apenas a decifração de um saber, é fazer ver, é elucidar a natureza de defesa do inconsciente. Sem dúvida ali onde isso fala, isso goza, mas a orientação para o sinthoma enfatiza o seguinte: isso goza ali onde isso não fala, isso goza ali onde isso não faz sentido. Como Lacan pôde convidar o analista a ocupar (anteriormente) o lugar do objeto pequeno a, em seu Seminário O Sinthoma, ele formula: O analista é um sinthoma. Ele é suportado pelo não-sentido, então perdoamos-lhe suas motivações, ele não se explicará. Preferirá, antes, dar-se ares de acontecimento de corpo, de semblante de traumatismo. E terá muito a sacrificar para fazer jus a ser, ou a ser considerado um pedaço (bout) de real” (MILLER, 2009. p. 79, tradução nossa).
J.-A. Miller nos dá aqui uma indicação precisa sobre o que seria a interpretação em uma cura orientada para o sinthoma.
Prosseguirei com dois exemplos clínicos em que a intervenção do analista toca o mais íntimo, o mais singular do ser do analisante, a saber, o sinthoma que orientou e decidiu seu destino. Recorrerei a excertos de dois testemunhos, os de Monique Kusnierek e de Bernard Porcheret, que me tocaram profundamente, me marcaram pessoalmente e que, no que concerne a essa articulação do corpo e de lalangue, são claros e precisos.
Aqui está o que Kusnierek diz:
“A sessão acabara de terminar. Ela saía do consultório de seu analista, estava no corredor, ele fazia sombra e, de repente, ela ouve atrás dela um barulho de um bicho feroz. Ela não acredita em seus ouvidos. Ela se vira para verificar com seus olhos o que havia ouvido. É quando vê seu analista que gesticula como um bicho feroz pronto para se lançar sobre sua presa. Ela fica surpresa e ri.
Que essa pantomima barulhenta fez interpretação, suas consequências o provam. A analisante entendeu, antes de tudo, que, na relação transferencial, não havia apenas uma demanda de amor e um abandono, mas também uma pulsão oral, que fazia sentir a sua presença.
Ela, então, começa a buscar como pensar isso em termos de transferência, como integrar essa pulsão, devorante, à única coisa que ela vinha fazer em análise, que era falar, isto é: colocar em jogo a relação que ela tinha com o saber, expor-se, cair sobre o que ela não sabia.
Ela encontrou, então, uma fórmula que lhe pareceu ideal e que estava no limite do que ela poderia elaborar sobre o que era, para si, o fato de falar. Foi a seguinte fórmula: ‘Se não estou à altura, então me morda!’.
Esse ‘me morda!’ era, sem dúvida, a fórmula de um imperativo pulsional. Ela entendeu, então, que essa era a motivação louca que a levava a cada semana à análise e que esse imperativo estava articulado nela à divisão gerada pelo próprio fato de falar (…).
Essa interpretação é sem palavras. Consiste apenas em um som e um gesto. Comporta um som, um barulho de bicho feroz, um ‘grr’, como uma espécie de núcleo da fala que, de repente, se faz ouvir. E, ao mesmo tempo, um gesto igualmente intempestivo se faz ver, o do bicho feroz pronto para lançar-se sobre sua presa.
A interpretação (…) (produz) uma montagem cênica que se inspira muito diretamente no pesadelo. Essa montagem é usada para trazer à cena da transferência a devoração. A devoração torna-se um semblante, uma peça com a qual se joga.
Essa interpretação do analista diz respeito ao próprio analista como parceiro do sujeito. O analista se faz surgir na cena como um bicho-papão, como o Outro convocado pela montagem pulsional do sujeito. E, de repente, essa montagem na qual se fabricou um Outro fantástico acaba se revelando ser apenas uma farsa burlesca. É o que, depois de ter a surpresa, fez essa analisante rir.
Isso a levou, posteriormente, a tirar uma série de conclusões.
O analista, ao se fazer de bicho feroz, ou seja, reduzindo o Outro da fantasia ao seu semblante, realizou, de fato, o que o terceiro sonho anunciava: a castração do grande Outro” (KUSNIEREK, 2002, p. 23-36, tradução nossa).
Eis aqui um curto trecho de testemunho de Bernard Porcheret que, em seu relato, evidencia seu fascínio pela morte, o que se inscreve em toda a sua história. Aqui está, como ele a chama, “a interpretação decisiva”:
“No caminho em direção à porta de saída, eu tiro meu casaco do cabide. Silêncio, nenhum barulho de maçaneta para ir chamar o analisante seguinte. Viro-me, o analista, contingência da interpretação, neste dia, está vestido com um terno escuro, daqueles que vestimos para momentos solenes. Na penumbra do corredor, atrás da porta da sala de espera, ele fica de frente para a parede, congelado, imitando o agente funerário. Siderado (…).
Na rua, a alguns metros de distância, leve, eu rio. Um dizer surgiu: fôlego. Algumas palavras, como se saídas de um buraco, se escrevem. Um salto aconteceu na saída do tobogã. A interpretação fez cair o significante mestre agente funerário, sob o qual eu estava esmagado. Imitando-o, em silêncio e sem olhar, o analista me separa dele. Eu era aquele olhar se olhando, aquela voz que se invocava. Quebra. Eu era aquela boca à qual eu me oferecia como alimento para domesticá-la. A pulsão enoda a sexualidade no inconsciente e a morte” (PORCHERET, 2012, p. 63, tradução nossa).
Para pontuar minha intervenção
Cito novamente J.-A. Miller.
“E correlativamente à noção de interpretação como perturbação, algo como o falasser (parlêtre) deve ser introduzido, uma noção da ordem do que Lacan denomina que vai mais além do inconsciente. (…) e (o) que se inscreve nesse lugar: ele o chamou de falasser, no qual a função do inconsciente se completa com o corpo, mas não pelo corpo simbolizado, o corpo imaginário, senão com o que o corpo tem de real.
Assim, a interpretação como perturbação mobiliza algo do corpo, exige ser investida pelo analista e, por exemplo, que ele forneça (…) o tom, a voz, o sotaque. Até o gesto e o olhar.
Pensando nessa interpretação como perturbação, recordava uma observação de uma passante (Kusnierek)[3] que referia, como AE, à sua cura e o que havia sido para ela o ponto de viragem.
Tal como o contava, essa interpretação não foi todo um discurso: ela estava num longo corredor escuro depois da sessão e, enquanto ia-se, viu-se levada a se virar, pois o analista lhe dirigia uma mensagem que, tal como ela a descreve, era feita de uma espécie de pantomima de devoração acompanhada de um vago rosnado, algo como um Grrr…! (…). Como se assinalava muito precisamente, isso acontece (…) fora, na saída (no corredor), já que a posição padrão não permite a operação da visão, o olhar, etc. (…) (Há aí) uma forma de colocar o corpo (…). Não se pode trazer a pulsão oral ou a pulsão anal, mas podem-se trazer, por outro lado, as pulsões especificamente lacanianas, que são a pulsão escópica e a pulsão invocante.
E a interpretação como perturbação conta especificamente com essa contribuição. Em todo caso, um dia seria necessário apreender que o que falha na noção de decifração é que, na análise, é preciso que um e o outro coloquem o corpo” (MILLER, 2011, p. 136, tradução nossa).
Para terminar, evocarei um momento do Colóquio organizado pela UFORCA em 2011, em Montpellier, acerca do Seminário, livro 23: o sinthoma.
Éric Laurent foi convidado para comentar um texto apresentado por Alfredo Zenoni, que citava uma frase de Lacan no Seminário, livro 21: os não-tolos erram, dita em 1973, dois anos antes do Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976/2007). A frase era a seguinte: “o que você faz sabe o que você é” (LACAN, 1973-74, aula de 11/12/1973, tradução nossa). A frase completa está assim:
“Isso (a que) responde o discurso analítico é o seguinte: o que você faz, longe de ser o fato da ignorância, é sempre determinado, determinado já por alguma coisa que é saber, e que chamamos o inconsciente. O que você faz, sabe (sabe, s.a.b.e), sabe o que você é: sabe de você!”
Tal debate merece ser seguido detalhadamente:
É. Laurent: Alfredo Zenoni isolou uma frase do Seminário XXI: “O que você faz sabe o que você é”. Nesse caso, o que você faz é antes tomado na dimensão daquilo que o inconsciente o faz fazer ou daquilo que o inconsciente, como saber, faz de você.
J-A. Miller: Sim, mas há aqui uma espécie de materialismo do tipo: o que você faz, desde que você tenha um comportamento que se repete, bem, você é isso (…). Você está atrasado. Você está atrasado e, portanto, você é um retardatário. Você está o tempo todo atrasado, por causa disso ou daquilo, é um ato falho, mas no fim das contas você é um retardatário (…).
J-A. Miller: O psicanalista (ele também) é só o que faz. É isso. Ou seja, ele coloca seu corpo em jogo.
Deduzo desse debate que, uma outra forma de dizer que “o psicanalista não pode se conceber a não ser como um sinthoma”, é dizer “o psicanalista, é o/isso que ele faz”. Isso quer dizer que ele está presente com seu corpo, e sua interpretação implica sua presença física.
Uma interpretação, segundo Lacan, visa, portanto, perturbar a defesa. Visa colocar “um limite ao monólogo autista do gozo” (MILLER, 1995-96, aula de 31/1/1996 – tradução nossa). E ela não pode ser considerada sem a presença dos corpos. Ela visa fazer ressoar no corpo algo que toque essa articulação do corpo e da língua. Ela não implica necessariamente um enunciado, nem uma enunciação (LACAN, 1974-1975, aula de 11/2/1975). Os meios utilizados para fazê-lo são diversos, mas para que ela faça acontecimento, é preciso que o analista faça semblante do sinthoma do analisante — e é difícil ver como isso seria possível por Skype. Isso remete ao modo como o mestre zen o faz.