BERNARDO MARANHÃO
Psicólogo. Advogado. Mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Doutorando em Estudos Psicanalíticos na UFMG. Professor na Escola do Legislativo de Minas Gerais |
maranhao.bernardo@gmail.com
Resumo: Este artigo discute o trecho de “Televisão” em que Lacan faz menção à gaia ciência, o saber alegre dos trovadores medievais. O que se pretende interrogar é em que medida esse saber pode ser tomado como um referencial, entre outros simultaneamente possíveis, para a interpretação analítica, num contexto em que o inconsciente é concebido, com Lacan, como “o mistério do corpo falante”.
Palavras-chave: inconsciente, gaio saber, lalíngua.
THE REAL OF THE UNCONSCIOUS AND THE GAY SÇAVOIR:
SAVOIR-Y-FAIRE WITH LALANGUE
Abstract: This article discusses the sketch of “Television”, in which Lacan mentions gai savoir, the joyful knowledge of medieval troubadours, in order to interrogate to which extent this knowledge can be taken as a reference, among others equally possible, to psychoanalytic interpretation, in a context in which the unconscious is conceived, with Lacan, as “the mystery of the speaking body”.
Keywords: unconscious, gai savoir, lalangue.
Nos anos finais do ensino de Lacan, a concepção do inconsciente estruturado como uma linguagem cede espaço à do inconsciente como corpo falante. A leitura em perspectiva desses remanejamentos conceituais, tal como empreendida por Miller, possibilita que a proposição lacaniana “o inconsciente é o mistério do corpo falante” (LACAN, 1972-73/1985, aula de 15 de maio de 1973) seja reformulada nos seguintes termos: “o real do inconsciente é o corpo falante” (MILLER, 2015, p. 34). E é precisamente lalíngua, tomada como o real da língua e como o elemento de gozo que há no uso da palavra, que corresponde, nesse corpo falante, ao ponto de amarração entre a fala e o corpo.
A metafísica cartesiana, observa Bassols (2015), conserva inquestionado o mistério da união entre a alma e corpo. Já na perspectiva lacaniana detalhada por Bassols e por Miller, a união entre a res cogitans e a res extensa, ou seja, entre a substância pensada e a substância corpórea, constitui uma terceira substância, uma substância gozosa, que corresponde a isso que Lacan denomina “o mistério do corpo falante” e que Miller designa como o real do inconsciente. É essa substância gozosa, diz Bassols, que se encontra no ensino de Lacan, a partir do Seminário XX, Mais, ainda, como o significante que se transforma cada vez mais em letra e que, no mesmo passo — ousamos acrescentar —, vem a ser progressivamente tomado como pertinente não à linguagem, mas a lalíngua. A respeito dessa substância gozosa, observa Bassols (2015, p. 14): “É aí que se coloca o problema do real da linguagem, que amarra o corpo imaginário e o simbólico da realidade psíquica. É o real como terceiro que, não obstante, produz uma amarração”.
É também a partir desse real da linguagem que se forma o sintoma, concebido como acontecimento de corpo, num arranjo que resulta da maneira singular como o ser falante é afetado em seu corpo pelos sedimentos de lalíngua. Ao analista, incumbe saber ler o sintoma (MILLER, 2016a), não segundo uma visada hermenêutica, atrelada aos sentidos convencionados do significante, mas de uma maneira que presta atenção à materialidade gráfica e fônica do significante, ou seja, à sua dimensão de letra e às ressonâncias produzidas no corpo do sujeito pela matéria do significante, constelada na galáxia de lalíngua. Ao analisante, toca-lhe a tarefa de “inventar o saber” (LACAN, 1973/2003, p. 315) que lhe convém quanto a esse seu modo singular de gozo. Dito de outro modo, o que está em jogo numa análise é a construção de um modo específico de saber, que Lacan (1976-77, aula de 15 de fevereiro de 1977) nomeia com a expressão savoir-y-faire. Trata-se de um saber que aponta para a aproximação entre o fazer do psicanalista e o do artista, um saber que valoriza a diferença entre o universal e o singular. O savoir-y-faire, tal como o toma Lacan, observa Márcia Mello de Lima (2009, pp. 26–27), pode ser traduzido como um saber se virar com isso que o sujeito tem de surpreendente, com isso que o conduz à singularidade de seu ato.
O trato com o real do gozo de lalíngua, com os efeitos por ela produzidos no corpo — efeitos que são afetos (LACAN, 1972–73/1985, aula de 26 de junho de 1973) —, é algo cultivado refinadamente pelos trovadores da Idade Média, os quais instituem, a partir desse savoir-y-faire, um campo particular do saber, a gaia ciência. Em “Televisão”, Lacan (1974/2003) aproxima esse saber do poeta ao do analista e caracteriza a gaia ciência, ao mesmo tempo, como um afeto — trata-se, afinal, de um saber alegre — e como uma virtude, em oposição ao afeto da tristeza, que ele, evocando Dante e Spinoza, qualifica como uma falha moral. Nesse passo, Lacan coloca em curto-circuito a acostumada oposição entre afeto e intelecto ao indicar que o afeto deriva do pensamento, e, conforme veremos mais detalhadamente a seguir, põe o problema das depressões a salvo de uma abordagem biologizante ao enquadrá-lo na moldura de uma ética do bem-dizer.
Desde o Seminário X, A angústia, Lacan já indica que o campo dos afetos é atinente à relação do sujeito com o Outro, relação articulada pelo significante. A esses dois termos, o significante e o Outro, é preciso, diz Miller (1986/2016b, p. 108), acrescentar um terceiro: o gozo. Sob essa perspectiva, os afetos não derivam de uma relação direta do sujeito com o mundo, mas de uma relação mediada pelo desejo, e consistem em efeitos de gozo produzidos pela linguagem no corpo desse sujeito. Em síntese, diz Miller (1986/2016b p. 109), “o que Freud denomina a separação entre a cota de afeto e a ideia se torna, para nós, a articulação do significante e do objeto a”.
Em “Televisão”, Lacan inscreve expressamente os afetos no campo da ética. Ao tratá-los como “paixões da alma”, na esteira de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, afasta-os das visadas psicológicas e psicofisiológicas próprias da contemporaneidade e, sem deixar de reconhecer que eles têm uma ancoragem no corpo, toma os afetos em consideração a partir da relação que eles possam guardar com o problema do bem, ou mesmo do soberano bem. Não se trata, pondera Miller (1986/2016b), de transportar para a psicanálise a questão do soberano bem, tão cara ao pensamento antigo e medieval, mas de indicar que “é nessa abordagem tradicional da questão que a psicanálise encontra sua orientação” (p. 109).
É eloquente, quanto a essa consideração dos afetos sob uma perspectiva ética, o exemplo da oposição evocada por Lacan entre a tristeza e o gaio saber. Essa oposição é amplamente lastreada nas doutrinas médicas e filosóficas da Idade Média (AGAMBEN, 1977/2007), que associam a tristeza ao pecado mortal da acídia — posição demissionária do sujeito em face do soberano bem[2] — e reconhecem no gaio saber — ramo da arte do bem-dizer — um remédio para esse mal que nem a religião, nem a filosofia, nem a medicina sabem curar.
Desse par de opostos herdado da tradição, Lacan faz uma apropriação à sua maneira. A tristeza constitui para Lacan um problema ético — e é para dar evidência a esse ponto que, nessa passagem de “Televisão”, ele recusa expressamente o termo depressão, próprio ao campo semântico de uma abordagem psicofisiológica dos afetos. Com apoio em Dante e em Spinoza[3], caracteriza a tristeza como “lassidão moral”, isto é, como um abandono, por parte do sujeito, em face de um dos deveres éticos fundamentais. No entanto — e aqui se destaca o aspecto particular da leitura proposta por Lacan —, esse dever ante o qual o sujeito se omite não é, como quereria o filósofo seiscentista, o de bem-dizer o supremo bem divino, mas o de encontrar seu próprio lugar na estrutura, ou seja, sua posição em face do inconsciente (LACAN, 1974/2003). Esse dever, em sua versão lacaniana, também se enquadra na ética do bem-dizer e engaja a relação entre o saber e o gozo. Nesse sentido, observa Miller (1986/2016b, p. 111): “A ética do bem-dizer consiste em discernir, em circunscrever, no saber, aquilo que é impossível de dizer. (…) Quando o saber é triste, ele é impotente para pôr o significante em ressonância com o gozo; esse gozo permanece exterior”.
Já no que concerne à gaia ciência, virtude de um saber alegre que se encontra em oposição ao vício do saber faltoso da acídia-tristeza, Lacan a considera não somente como a arte de entrelaçar com engenho as sílabas às notas musicais e as palavras umas às outras, mas como uma arte de “gozar do deciframento” (LACAN, 1974/2003, p. 525), um modo de dar lugar ao gozo no exercício do saber, de propiciar alguma reconciliação entre o saber o e gozo. Como observa Miller:
“[O] gaio saber admite a extimidade do gozo, ele admite que esse gozo não é, decerto, absorvível no saber, mas que tampouco lhe é exterior. Notemos, quanto a esse aspecto, que o saber alegre não é o saber onipotente, mas aquele que faz passar da impotência ao impossível. A tristeza é a impotência [do saber], ao passo que o gaio saber é o impossível do saber. Por essa via, ele toca no real” (MILLER, 1986/2016b, pp. 110-11).
De que maneira o saber alegre toca no real? As palavras de Lacan, no trecho de “Televisão” em que ele se refere ao gaio saber, propiciam o vislumbre de uma resposta a essa questão:
“No polo oposto da tristeza existe o gaio issaber [gay sçavoir] o qual, este sim, é uma virtude. Uma virtude não absolve ninguém do pecado — original, como todos sabem. A virtude que designo como gaio issaber é o exemplo disso, por manifestar no que ela consiste: não em compreender, fisgar [piquer] no sentido, mas em roçá-lo tão de perto quanto se possa, sem que ele sirva de cola para essa virtude, para isso gozar com o deciframento, o que implica que o gaio issaber, no final, faça dele apenas a queda, o retorno ao pecado” (LACAN, 1974/2003, p. 525).
A partir desse dito de Lacan, é possível, ainda, considerar que o gaio saber fornece um paradigma para a escuta analítica: “não compreender, fisgar no sentido, mas roçá-lo tão de perto quanto se possa”. Essa divisa nos parece articulável, do lado da interpretação analítica, àquilo que Éric Laurent (2018) recorta do ensino de Lacan sob a rubrica da interpretação como jaculação. A partir das indicações dadas por Laurent, é possível supor que a jaculação se liga menos ao conteúdo semântico de determinado significante que a “um efeito de sentido real” (LAURENT, 2018, p. 70) produzido pela maneira como esse significante é veiculado pelo analista. Em suas palavras: “Essa interpretação não é o acréscimo de um significante dois com relação a um significante um. Ela não visa à concatenação ou à produção de uma cadeia significante” (LAURENT, 2018, p. 71). Trata-se, como explica Laurent mais adiante nesse mesmo texto, de um significante que seria novo em razão de sua capacidade de desencadear um despertar, o qual se conecta “à produção de um efeito de sentido real como produção de um evento de corpo” (LAURENT, 2018, p. 71).
Dentre os contextos de uso da ideia de jaculação recortados da obra lacaniana por Laurent, destacamos dois, por sua pertinência à discussão que aqui tecemos acerca do gaio saber. O primeiro deles diz respeito a Poordjeli, palavra-valise inventada por Serge Leclaire de modo a formalizar, em final de análise, vários aspectos de sua fantasia. Lacan qualifica esse invento como “uma jaculação secreta, uma fórmula jubilatória, uma onomatopeia” (LACAN, 1964-65, aula de 27 de janeiro de 1965). O segundo contexto é o do uso do termo jaculação para dar conta da força do texto poético.
As referências específicas identificadas por Laurent neste segundo contexto são aquelas feitas à poesia de Píndaro e à de Angelus Silesius. No entanto, podemos imaginar Lacan às voltas com a raiz etimológica do termo “jaculação”, não muito distante, possivelmente, do latim joculator (de jocus: jogo), termo que derivou, nos séculos XI e XII, para o nome dado, em diversas línguas latinas, a uma figura-chave da cultura dos trovadores medievais (ZUMTHOR, 1987/2001, p. 56), o jogral, esse que em suas andanças cantava coisas como:
Er vei vermeills, vertz, blaus, blancs, gruocs,
vergiers, plais, plans, tertres e vaus;
e’il votz dels auzels son’e tint
ab doutz acort maitin e tart:
so’m met en cor q’ieu colore mon chan
d’un’aital flor don lo fruitz si’amors
e jois lo grans e l’olors de noigandres.
Um dos vestígios que nos chegaram da “catedral” (AGAMBEN, 1977/2007, p. 157) de versos e melodias construída pelos trovadores medievais da Europa ocidental, essa estrofe do Canto XI de Arnaut Daniel (1150-1210) exemplifica bem um modo, próprio da gaia ciência, de saber fazer com o gozo de lalíngua. Ainda que a melodia tenha se perdido, ainda que a língua nos seja estranha, é possível perceber como esses versos se prestam a uma fruição que se dá não só no pensamento, às voltas com as camadas de decifração do sentido, mas também no corpo, afetado pelo ritmo de cada verso, pela vibração de cada palavra, pelo timbre de cada fonema.
E embora a gaia ciência medieval pareça remota e inacessível à sensibilidade contemporânea, pode-se dizer que ela encontra uma espécie de ressurgência entre nós, brasileiros, na canção que aqui se tem produzido, sobretudo na segunda metade do século XX, como sugere José Miguel Wisnik (2004). Esse cancioneiro, observa o autor, constitui um espaço de reflexão e debate sobre os problemas do país, ao mesmo tempo que proporciona, em grande medida, a nossa “educação sentimental”, como o atesta o documentário As canções, de Eduardo Coutinho (2011) — e tudo isso em formas nas quais se encontram ricamente articulados o erudito e o popular, o literário e o oral, a fala e o canto, a poesia e a música. No que concerne particularmente ao discurso analítico, a gaia ciência brasileira parece oferecer, a quem se deixa tocar pelas várias vozes que a compõem[4], uma via régia para o real de lalíngua.