JORGE ASSEF
Psicanalista, membro da EOL/AMP |
jorgepabloassef@hotmail.com
RESUMO: O autor recorre a uma citação de Éric Laurent referente a um episódio do início de sua análise com Lacan e, a partir desse exemplo, aborda as três vertentes do meio-dizer implicadas na estrutura da interpretação tal como propostas por Lacan: o equívoco, o enigma e os efeitos de estilo.
PALAVRAS-CHAVE: Interpretação, meio-dizer, enigma, citação, efeitos de estilo.
LACANIAN INTERPRETATION: HALF-SAYING, POETRY, STYLE
ABSTRACT: The author uses an Éric Laurent’ quote in which he refers to an episode from the beginning of his analysis with Lacan and, through this example, he addresses the three aspects of the half-saying proposed by Lacan: the misunderstanding, the enigma, and the effects of style.
KEY WORDS: Interpretation, half-saying; enigma, citation, style effects.
“Nas entrevistas preliminares, apresentei a Lacan toda uma confusão de coisas pedindo, acima de tudo, para que não me aceitasse em análise, porque eu estava muito extraviado, era muito jovem e muito privilegiado em comparação com outros que não podiam demandar análise. Lacan concluiu essas entrevistas garantindo que a idade era perfeita para começar uma análise, meu extravio também, e que, quanto ao privilégio, eu não tinha nenhuma ideia do que dizia.
E ele disse uma frase cuja harmonia ainda ressoa e cujos múltiplos sentidos foram pouco a pouco se esclarecendo. Hoje transcrevo essa frase assim: todos acabam sempre se tornando um personagem do romance que é a sua própria vida. Para isso não é necessário fazer uma análise. O que a análise realiza é comparável à relação entre o conto e o romance. A contração do tempo — que permite o conto — produz efeitos de estilo. A psicanálise te permitirá descobrir efeitos de estilo que podem resultar interessantes” (LAURENT, 1995, p. 37, tradução nossa).
As vertentes do meio-dizer
No Seminário 17, Lacan apresenta a estrutura da interpretação como um saber enquanto verdade e que, como tal, não pode mais que meio-dizer. Dessa forma, propõe duas vertentes desse meio-dizer: o enigma e a citação:
“Enigma colhido, tanto quanto possível, na trama do discurso do psicanalisante, e que você, o intérprete, de modo algum pode completar por si mesmo (…). Citação, por outro lado, tomada, às vezes tirada do mesmo texto, tal como foi enunciado. Que é aquele que pode ser considerado uma confissão, desde que o ajuntem a todo o contexto. Mas estão recorrendo, então, àquele que é seu autor” (LACAN, 1969-70/1992, p. 38).
Lacan também adverte que a estrutura do meio-dizer está na figura do oráculo, o qual “não revela nem oculta: (…) ele faz signo” (LACAN, 2003, p. 555).
Desde “O aturdito” em diante, o meio-dizer toca no equívoco:
“É unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe. (…) Esse dizer, para que ressoe, para que consoe, outra palavra do sinthoma masdaquino, é preciso que o corpo lhe seja sensível” (LACAN, 1975-76/2007, p. 18).
Nessa última vertente da interpretação como meio-dizer, além do corpo, Lacan remete à função do escrito, dado que a interpretação que sabe jogar com o equívoco apela ao escrito na palavra e ao uso de lalíngua (LAURENT, 2016).
Em 1967, Éric Laurent consulta Jacques Lacan e a primeira intervenção de que Laurent se recorda nos permite localizar as três vertentes do meio-dizer que comentamos. Em primeiro lugar, encontramos uma das formas mais simples do equívoco, quando Lacan transforma as razões que o analisante supõe como contraindicações para seu tratamento (o extravio e a juventude) em condições ideais para começar uma análise. Em segundo lugar, aparece a citação quando Lacan retoma as palavras do analisante “demasiado privilegiado” agregando “você não tem nenhuma ideia do que diz com isso”, o que provoca um enigma. Por último, a intervenção adquire um tom oracular quando Lacan anuncia ao analisante que, com a psicanálise, descobrirá “efeitos de estilo”.
Convocar o estilo pela via da poesia
Quando Laurent retorna àquela primeira sessão com Lacan, afirma que a psicanálise é uma experiência narrativa (o que implica a escrita), localiza as condições do romance e do conto destacando a contração do tempo, mas principalmente para lembrar que, em 1977, Lacan precisou que os recursos do analista provêm da poesia:
“se o analista é poeta, o sujeito pode se converter nesse personagem essencial que é o vazio que circula pelo poema. A sessão breve, que prefiro qualificar de contraída, tem esse horizonte: fazer do sujeito o vazio do haiku[2] de sua enunciação” (LAURENT, 1995, p. 37, tradução nossa).
Em uma antiga conferência, J. A. Miller enumerava rapidamente as distintas faces da interpretação lacaniana — “fazer ressoar, fazer alusão, sobre-entender, fazer silêncio, fazer de oráculo, citar, fazer enigma, meio-dizer, revelar” — para explicar que é o inconsciente mesmo quem faz essa tarefa como ninguém e, portanto, a interpretação analítica deveria oferecer outro horizonte. Miller o designa assim: “revelar uma opacidade irredutível na relação do sujeito com lalíngua” (MILLER, 1996 apud ASSEF).
O que Laurent retoma da primeira interpretação de sua análise, quando Lacan lhe diz “a contração do tempo que o conto permite produz efeitos de estilo”, e a maneira como essas palavras o remetem à poesia e ao vazio, nos mostra que, já nesse momento, Lacan tinha como meta reduzir o sentido do romance até chegar em uma opacidade irredutível, porque, uma vez que o sujeito se encontra com essa opacidade, resta-lhe apenas uma saída: o que cada um pode inventar, também graças à análise.
Laurent destaca uma citação do Seminário 22 em que Lacan localiza um efeito de sentido real provocado pela interpretação: “(…) o que, no Seminário 22, designando um efeito de sentido real, é chamado de jaculação, torna-se, no Seminário 24, o significante novo” (LAURENT, 2018, p. 61). A propósito, Miller explica: “Quando se apela a um significante novo, trata-se, de fato, de um significante que poderia ter um outro uso” (MILLER, 2007/2014). Por essa via, estaria em jogo justamente a noção de estilo a qual Lacan apela na primeira entrevista de Éric Laurent.
Um ano antes daquele encontro, Lacan havia publicado uma nova edição dos seus Escritos e, no texto introdutório, escreveu “O estilo é o homem” e logo esclareceu: “Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si” (LACAN, 1966/1998, p. 11). Efetivamente, é disso que se trata!