ROBERTO ASSIS FERREIRA
NICOLETTA CECCOLI. AUTO-RETRATO.
Adolescência, o que é? foi o título que me foi sugerido. Tenho como proposta falar para aqueles que atendem no campo da saúde mas entendem que a psicanálise pode trazer contribuições importantes à sua prática.
Sinto-me à vontade em trazer alguma coisa do campo da psicanálise para a medicina. A medicina sempre pescou em outros campos do conhecimento, como exemplos: a causalidade infecciosa de diversas doenças – uma contribuição de Pasteur, que era um biólogo; a genética de Mendel, este era um monge e botânico; a farmacologia de Pauling, e por aí afora.
Voltando ao tema, vamos começar com a adolescência e a puberdade. Esses são conceitos diferentes, vêm de áreas diferentes do conhecimento, e distingui-los clareou bastante minha prática. O conceito de puberdade vem da biologia, da medicina, corresponde a um momento do desenvolvimento do organismo humano, quando acontecem transformações muito intensas, sobretudo no corpo. Freud (1901-1905) fala em metamorfoses da puberdade. Os processos biológicos da puberdade são universais, mesmo com particularidades, variações individuais. Há casos de puberdade tardia e precoce, há fenômenos que caem no campo da patologia. Em síntese, a puberdade é um conjunto de transformações físicas e hormonais que marcam o fim da infância. Não vou aprofundar essa questão.
Já o conceito de adolescência tem várias compreensões. O que se chama adolescência desperta o interesse das ciências humanas e sociais: da antropologia, da sociologia, da psicologia e da própria psicanálise. Para alguns, é uma fase do desenvolvimento humano, confundindo-se um pouco com o conceito de puberdade. Vamos trabalhar com algumas contribuições da psicanálise. Miller (2015), no texto “Em direção à adolescência”, considera a adolescência uma construção. Pode-se falar em construção social, com particularidades em diversas culturas.
A adolescência é um momento de dois grandes chamamentos. Há um chamado que vem do corpo, do próprio corpo e do corpo do outro; e um segundo, que vem do campo do Outro, do desejo do Outro. O que esse Outro quer de mim? Há uma imagem que vi, não sei se em Lacan: um mosquitinho olhando para um louva-a-deus ameaçador de boca aberta. O mosquitinho, a mercê do louva-a-deus, se interroga: o que ele quer de mim? É isso aí, o ser falante se angustia diante do desejo do Outro. Como responder a essa grande boca aberta?
Freud apontava para duas questões nesse momento da puberdade. A primeira, no campo da sexualidade, para a qual o sujeito nunca está preparado. A segunda, a separação, ou seja, o descolamento dos pais ou, ainda, falando de forma mais ampla, a separação do outro familiar. Essa separação só será possível se alguma coisa aconteceu no tempo da infância, se alguma coisa aconteceu no Édipo, se houve, como clareou Lacan, a entrada do Nome do Pai.
Alexandre Stevens (2004) entende a adolescência como sintoma da puberdade. Essa é uma boa aproximação clínica: pensar a adolescência como uma resposta à irrupção pubertária. O sujeito, nesse momento, inventa um modo de sobrevivência visando a essa difícil travessia.
Gosto de ilustrar com uma analogia: você está andando de ônibus, está em pé, sem lugar para se assentar, “no balanço pra lá e pra cá”, é preciso se segurar em algo, senão se vai ao chão. Isso chamo de sintoma, um segurador de ônibus, alguma coisa em que o sujeito se segura para enfrentar as atribulações da vida. O sintoma, para a psicanálise, não é propriamente sintoma de doença, embora possa ser. Não é um fenômeno universal nem apenas particular, é algo singular, cada um tem sua adolescência como seu sintoma. Portanto, a partir da psicanalise, podemos adotar a compreensão de que adolescência, para cada um, é singular. É alguma coisa que dá sustentação ao sujeito. A adolescência entendida como sintoma pode dar sustentação à travessia da infância para o mundo adulto, substituindo, em nossa época, os ritos de passagem de outras culturas. Essa é uma leitura possível das coisas, o que não impede de haver outras.
Em direção à adolescência
Miller (2015), no texto “Em direção a adolescência”, provoca e incita o campo freudiano a trabalhar sobre a adolescência. Propõe que se trate das questões da atualidade, mas aponta a importância dos conceitos básicos. Não há como aprofundar esse debate sem partir do estudo da própria criança, sem ir ao que Freud e muitos pós-freudianos elaboraram, chegando-se ao que se produz hoje. Está colocado o desafio, principalmente àqueles que se dedicam à clínica da adolescência.
Miller coloca que, para a psicanálise, há três questões centrais na adolescência. Como primeira, a saída da infância, momento que vem à tona com a puberdade. Aí é fundamental ler Freud (1901-1905), em especial seu texto “Metamorfoses da puberdade”, mas também estudar fora da psicanálise.
Como segunda, um tema bem atual, a diferenciação sexual. Como essa questão se coloca para o ser falante na infância e na adolescência? Já não se sabe mais o que é ser um homem ou uma mulher. Os semblantes estão confusos, as balizas simbólicas já não dão tanta sustentação à transmissão vertical: o Nome do Pai, o Ideal do eu, as insígnias do Outro. Isso leva os jovens na contemporaneidade a construir respostas com seus próprios recursos, usando a transmissão horizontal, a identificação com os pares, os modismos, as “comunidades de gozo”. Essa falta de referência estimula a experimentação. Cada um procura, pela própria experiência, o que é melhor para ele, o que lhe dá mais satisfação.
Um parêntesis: a medicina biotecnológica, resultante da aliança da ciência com o capitalismo, traz grandes avanços técnico-científicos, mas deixa um resto, que bate às portas da medicina. A clínica do adolescente é precursora dessas manifestações, na qual há resistência, de clínicos e de pediatras, ao atendimento de adolescentes. Pode-se listar formas de adoecer, atuações de risco, enfim, desafios à saúde: depressão, bipolaridade, anorexia, vícios em informática, inibições sexuais, toxicomania, violência e mortalidade por causas externas, etc., problemas pouco valorizados pela medicina há algumas décadas.
Como terceira, o que Miller chama de “a imiscuição do adulto na criança”, aí está em discussão o que ele chama, sem gostar da expressão, de “desenvolvimento da personalidade”, no qual se articulam conceitos como o eu ideal e o Ideal do eu, nesse momento púbere em que o narcisismo se reconfigura. Miller (1999), em outro lugar, comentando o Seminário 5 e referindo-se ao terceiro tempo do Édipo, faz diferenciação entre Supereu e Ideal do eu, duas funções que têm sido confundidas na psicanálise. Afirma que o Supereu suporta funções de proibição, por outro lado,
o Ideal do eu exerce sua função sobre o desejo e a normatividade sexual. Lacan diz: tipificação. É uma função que coloca o sujeito sobre o eixo do que deve fazer como homem ou como mulher. Todas as perguntas sobre a identificação feminina ou viril são questões que, na teoria psicanalítica, giram em torno do Ideal do eu, noção que Lacan teve prontamente como leitor de Freud (MILLER, 1999, p. 75).
Adolescência, um momento especial de encontro com o real.
Costuma-se colocar a adolescência como um momento de despertar. Há uma famosa peça teatral de Wedekind, do fim do séc. XIX, “O Despertar da Primavera”, que foi comentada por Freud e Lacan. A peça conta a história de jovens que viveram esses chamamentos da puberdade, a vivência da sexualidade numa época de grande repressão sexual. Desenrola-se uma tragédia: um jovem se suicida, uma garota engravida e morre ao provocar aborto, outro rapaz é salvo do chamado ao suicídio por um avatar do pai – “um cavaleiro mascarado”. Nesse momento especial da puberdade, o que leva ao despertar é o que na psicanálise lacaniana se chama de Real, um encontro com o real. Um encontro com real pode levar o sujeito a mudar de direção: construir um sintoma; fazer uma passagem ao ato, como um suicídio; desencadear uma psicose…
O que seria esse real que leva o sujeito a despertar? O Real não pode propriamente ser definido, mas é possível tentar passar dele alguma compreensão. O Real como “encontro faltoso”, um encontro com a falta, como está no seminário 11; “como impossível”, impossível de suportar; como “encontro traumático”, aquilo que não tem sentido, aquilo que escapa à simbolização, enfim, um encontro com o que desencadeia a angústia: aquilo que não engana!
Em algum momento, contingencial ou não, há encontro com o Real. Em especial na adolescência, o simbólico que se constrói na infância, muitas vezes não é capaz de dar conta das situações enfrentadas, constituindo-se respostas sintomáticas.
No mundo contemporâneo: qual a resposta à invasão pubertária?
Na contemporaneidade, a adolescência tem caráter cada vez mais particular, de família, de época, de camada social, de grupos sociais. Há tendência a um alongamento da adolescência tanto para baixo, quando meninos e meninas de nove anos se portam como adolescentes, quanto para cima, quando rapazes de 26 a 30 anos ainda se comportam como adolescentes – ainda estão estudando, morando com os pais, sem definição de uma profissão.
Uma dimensão fundamental de nossa época é o declínio da ordem simbólica, ou seja, o declínio do Nome do Pai. Como consequência, pode-se falar do hedonismo contemporâneo. Vive-se em uma sociedade de grande insatisfação, na qual há a ilusão hedonista de um gozo ilimitado, levando à busca contínua de objetos de consumo, gadgets de toda ordem lançados continuamente no mercado. Jacques-Alain Miller criou a expressão I < a (Ideais < objetos).
Miller (2015), no texto já comentado – “Em direção à adolescência” –, aponta para o que há de novo na adolescência e ressalta questões que vêm sendo estudadas por nossos colegas analistas. Entre elas, a referida procrastinação da adolescência, como esse tempo de separação dos pais e do laço familiar vem se alongando. Isso é comum nas camadas médias mais abastadas, nas quais predominam famílias pequenas e gregárias, associando-se às dificuldades de inserção no mercado, dificultando ocupar um lugar no mundo do trabalho. Em outro aspecto, há uma nova relação com o saber: este já é não é mais propriedade dos adultos, está facilmente acessível, a transmissão já é não tão vertical pelos pais e pelos professores, que serviam de modelos. Os modelos estão nos próprios pares. Vive-se também uma realidade imoral, degradada, banalizada, até certo ponto amoral. Por outro lado, pode-se falar em socialização dos sintomas, em modismos sintomáticos, em “comunidades” de gozo. Miller aponta para diversas consequências das mutações da ordem simbólicas, como o declínio do patriarcado, a destituição das tradições e o déficit do respeito – “respeitar e ser respeitado”. Por fim, alerta para um fenômeno que cresce na própria Europa e se antepõe ao discurso da ciência, uma outra tradição: o Islã.
Clínica da recusa: uma característica da adolescência
Há uma particularidade de importância na condução do tratamento de adolescentes. Pode-se falar de recusa ou de rechaço ao tratamento. Essa é uma questão central no trabalho clínico com as anoréxicas. Isso está nas anoréxicas, mas também está nos adolescentes. O adolescente, na maioria das vezes, não tem demanda própria. Às vezes há motivações médicas: febre, dor no estômago, cefaleia, a puberdade que ainda não começou. Querem tratar disso e pronto!
Acontece que as preocupações dos pais podem ser de outra ordem. Estes usam essas queixas, que permitem ao adolescente ir ao médico para que sejam abordadas outras questões. É preciso entender que essa é uma característica dessa clínica. Não há demanda pois não há transferência prévia, o adolescente não supõe no Outro um saber sobre suas questões. Claro que o adolescente pode “ser transferido” com o profissional com quem trata desde a infância, mas é uma transferência constituída de outra ordem. O que não indica sempre que essa transferência permita uma abordagem no campo específico da adolescência. Alguma manobra vai ser necessária ao profissional, é preciso algum manejo para que se constitua espaço para as questões próprias da adolescência.
Dependendo das questões, elas podem ser abordadas pelo próprio profissional, outras devem ser referenciadas a outro, como a um analista ou a um psicólogo. Em geral, não dá bons resultados receitar inicialmente um psicólogo; há resistências. Antes, é preciso permitir que a subjetividade do sujeito venha à tona, que algo surja nesse campo. Essa é minha experiência. E, para que alguma coisa surja da subjetividade, de queixas subjetivas, é preciso uma pitada de escuta, abrir uma pequena janela de escuta, como tem insistido a prof.ª Cristiane de Freitas Cunha (2014).
Há uma nomeação que aprendi, é um instrumento. Por exemplo: um médico, para permitir ao adolescente se deslocar ao trabalho de suas questões com outro profissional e abordar aquelas que realmente estão perturbando a sua vida e a da sua família, tem que se colocar no lugar de um “médico passador” (MILLER, 2012, p. 98). Alguém que permita a passagem de um campo ao outro.
É o que se aprende no trabalho com as anoréxicas e com os adolescentes. O médico sabe que o paciente tem anorexia, mas, para permitir a entrada de um analista, de um profissional ligado às questões que estão ali incutidas, tem que estar disposto a escutar, possibilitar que a subjetividade do paciente apareça.
Concluindo, a clínica do adolescente é uma clínica da recusa, na qual não há demanda própria para tratamento das questões subjetivas. Mesmo quando há algum laço transferencial, este pode se romper. O que compete a nós? Escutar o adolescente e talvez ir um pouco além, ajudá-lo a encontrar um lugar de endereçamento para seu sofrimento. Essa é uma tarefa que se coloca para cada profissional da área da saúde, mesmo para aqueles que não vão assumir a condução do trabalho psicoterápico ou psicanalítico.
A inscrição e a não inscrição no campo do Outro
Ainda um último aspecto! Um grande desafio à adolescência: como conquistar um lugar no campo do Outro? A questão do sujeito “se inscrever” ou “não se inscrever” no campo do Outro. Hugo Freda (1996), no artigo “O adolescente freudiano”, aborda esse tema em um texto muito rico e delicado. É uma questão muito clínica, pois muitos adolescentes não conseguem sair da adolescência e ficam perdidos na vida. Por não encontrar esse lugar, não foram capazes de se inscrever nesse campo do Outro. Alguns desses jovens até construíram ideais, tinham expectativas, mas fracassaram e não conseguem fazer a virada, ou seja, retificar suas expectativas, se reescrever no campo do Outro, fazer novas amarrações. Hugo Freda entende a adolescência como esse momento em que se buscam e se constroem os caminhos para a inscrição no campo do Outro. Ele cita Freud como um exemplo bem-sucedido. Ele queria trazer uma contribuição ao saber humano e trouxe. Cita outros exemplos bem-sucedidos e alerta que se pode repertoriar sintomas e comportamentos diante da impossibilidade da inscrição: o suicídio, a toxicomania, os viciados em jogos, delinquentes e, enfim, formas bizarras de inscrição.
Por fim, uma palavra aos profissionais que se dedicam à adolescência: feliz do jovem que, em dificuldades, encontra uma referência confiável no mundo adulto, um avatar do pai, “um cavaleiro mascarado”, uma referência capaz de dizer sim, de escutá-lo e ajudá-lo a construir uma direção.
Não devemos esquecer que a adolescência é um período de trabalho, de desafios, de incertezas, de sintomas sociais, mas também é um dos momentos mais belos da vida, merecendo ser vivida intensamente.