HENRI KAUFMANNER
Em suas reflexões sobre a psicologia escolar, Freud nos fala do impacto que causava o encontro casual de um antigo professor pelas ruas de Viena. Tal impacto era acompanhado por um estranhamento, que pode se resumir à pergunta: “será possível que os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos, eram tão pouco mais velhos que nós?” (FREUD, 1977, p.74). Freud confessa que o encontro com seu antigo mestre lhe provoca uma dúvida sobre o que teria exercido a influência mais determinante em sua formação: sua preocupação com as ciências que lhe eram ensinadas ou a personalidade de seus mestres. Se, sob sua pena, a importante articulação entre o Outro e o Saber já revelava sua importância, o movimento de destituição desse lugar idealizado do Outro também se mostrava primordial.
Não por acaso, nesse pequeno texto, Freud discorre sobre a importância do pai, ligação fundamental na vida de uma criança, presente particularmente naquilo que ele nomeia ambivalência emocional. Observa que, a partir da segunda metade da infância, a criança, começando a vislumbrar o mundo exterior, avança em direção a um desligamento dessa idealização primeira, afirmando ainda que tudo o que há de admirável e indesejável em uma nova geração é determinado por esse desligamento do pai.
O tema de nossos trabalhos neste semestre no NIPS (Núcleo de Investigação em Psicanálise e Saúde Mental) do IPSMMG (Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais) convoca-nos a investigar as questões trazidas pela adolescência quando nitidamente nos vemos diante de uma realidade bem distinta daquela experimentada por Freud.
Como pensar uma relação possível ao Outro, num tempo em que o Mestre não surpreende mais? Que instituições poderiam acolher e tratar os adolescentes, nos quais o desligamento do Outro é uma marca determinante? Como podem os adolescentes hoje em dia construir uma nova ligação a um Outro, no qual o que domina é a lógica do não todo?
Esse pequeno fragmento das reflexões de Freud já nos apresenta algumas variáveis do problema.
Miller (2015), em sua intervenção “Em direção à adolescência”, desvela uma dimensão autoerótica do saber que predomina hoje em dia. Os adolescentes trazem o saber no bolso, ele não passa mais pelo Outro. Em sua intervenção, somos ainda apresentados a uma série de consequências relativas ao declínio do Pai e à inexistência do Outro. Há toda uma diversidade de comportamentos ligados a uma demanda de respeito, à denúncia da tirania do Outro e à uma realidade imoral. O avanço da Ciência, ao deslocar do mestre o saber, esvazia a dimensão simbólica do Outro, que passa a se apresentar ora inconsistente, ora em uma consistência, diríamos, malévola.
Miller fala da adolescência como uma construção, e que poderia ser tomada em várias perspectivas. Temos, assim, a adolescência cronológica, a biológica, a psicológica, a cognitiva, a sociológica, entre outras. Assinala ainda que dizer que se trata de uma construção se refere a uma convicção de que se trata de um artifício significante. Segundo ele, vivemos uma época que nega, com muita boa vontade, o real, ocupando-se apenas dos signos que são, em última instância, semblantes.
Adolescência é um daqueles conceitos que, embora não psicanalítico, convoca-nos a operar com ele, tamanha a sua presença e o campo de sentido que cria, além dos inegáveis efeitos na cultura e na clínica. A adolescência é, no mínimo, um semblante de nossos tempos.
Freud, por seu lado, referia-se apenas aos acontecimentos da puberdade. Nos “Três ensaios”, o evento da puberdade é marcado pelo fato de que a pulsão sexual, até então autoerótica, encontra agora o objeto sexual. Assim, as pulsões passam a se subordinar à pulsão genital, tendo como consequência o estabelecimento de uma nova finalidade pulsional, repercutindo de modos diferentes no que seria um homem e no que seria uma mulher, determinando, assim, a diferença entre os sexos. As alterações produzidas pela puberdade tornariam a tensão pulsional impossível de ser satisfeita apenas em sua vertente de ternura, como até então, exigindo também do sujeito a colocação em cena de uma tensão sensual, chamada às vezes por Freud também de corrente agressiva da pulsão. É nítido observar que algo da ordem de uma irrupção no campo pulsional exige um rearranjo dos modos de satisfação que afetam o corpo, não mais apaziguados por aquilo que Freud nomearia de escolhas narcísicas do objeto.
As pulsões sexuais encontram seus primeiros objetos apegando-se às satisfações das pulsões do ego. Assim, as primeiras satisfações sexuais são experimentadas em ligação com as funções de preservação do Eu. Contudo, na puberdade, não é mais possível sublimar a corrente erótica do amor; a via da sublimação não é mais suficiente para manter o desejo sexual acomodado a uma satisfação apenas pela corrente da ternura, e, forçando a barreira do recalque, este cobra seu preço.
Assim, podemos associar a queda dos semblantes e a impossibilidade da sublimação como dois elementos marcantes dessa irrupção da puberdade. Um real que não se acomoda mais às soluções até então encontradas pela criança.
Foi Lacan quem articulou semblante e real. Um significante, por si só, não significa nada, é um qualquer um, e não há relação natural entre as palavras e as coisas. O que está em jogo é a sua utilização da linguagem como laço, e, para tanto, é necessária a mediação de um discurso. A estabilidade de um discurso é o que vela o valor de crença dos sentidos com os quais construímos a realidade. Assim, para que algum efeito de discurso se produza, resultando numa amarração no campo do sentido, é necessária uma rede de semblantes, e que essa rede de semblantes determine um mais-de-gozar. É a rotina, a regularidade dessa rede, que assegura um sentido na relação entre o significante e o significado, estabilizando, assim, o campo semântico.
A puberdade rompe com a regularidade narcísica da criança, desvela o valor de crença da realidade na qual a criança se sustentava até então. O sujeito se vê embaraçado diante da invasão de um gozo que não se pode sublimar fora do discurso.
Assim, se a puberdade, como assinala Freud, convoca o sujeito a um movimento, diria eu dialético, de desligamento/religamento do Outro, podemos vislumbrar que, diante do declínio do pai, da inexistência do Outro, os efeitos de tal convocação em nossos dias são inegavelmente angustiantes.
O adolescente contemporâneo depara-se com uma realidade na qual os semblantes se multiplicaram, não mais organizados em torno de um Outro idealizado. O avanço da ciência e o declínio do sentido por esse produzido transformaram o campo da realidade e dos semblantes, até então articulados.
A Ciência, inaugurada por Galileu, afirmava-se como a escrita da natureza pela matemática. Entretanto, se descolou dessa mesma natureza, e as letras, com as quais a Ciência se escreve hoje, tocam um real que não se confunde mais com o que nos acostumamos a pensar como natural. As letras, assim isoladas, passaram a circular em uma identidade de si, não mais atreladas ao sonho da universalidade da natureza, mas em um circuito que tem sua própria lógica e que, atuando sobre os corpos, produz efeitos com os quais nos deparamos e vamos nos deparar cada vez mais, devido a um inevitável aumento de sua dominância no mundo.
Tal dominância tem consequências significativas sobre os discursos e, por conseguinte, sobre a cadeia de sentidos pelos quais ordenamos nossa experiência de realidade, nossos semblantes.
Aos efeitos do avanço da ciência e à pulverização do campo de sentido produzido pela tentativa de redução do real à lógica resultante da livre circulação das letras, devemos acrescentar os efeitos incidentes na economia de gozo do falasser, consequentes à aliança da ciência ao capital. Essa aliança interfere diretamente na relação desses com o corpo, pela produção de objetos de consumo, gadgets gerados a partir da oferta de um gozo que agora se faria possível pelas ofertas do mercado.
É nesse contexto que encontraremos muitos dos adolescentes que chegam aos serviços da chamada Saúde Mental. Invadidos por essa experiência estrangeira do gozo, convocados ao consumo e ao ato, os adolescentes trazem no corpo a novidade. Uma novidade que transborda e que lhes exige uma construção sintomática.
Como religar onde o Outro não existe?
Não são poucas as instituições que buscam restaurar, de forma moral, esse Outro que assim reaparece em sua dimensão superegoica.
A psicanálise aposta em um caminho em que se torne possível acolher esses corpos e a novidade que neles incide em sua dimensão singular. É preciso um tempo para a invenção do falasser e seu sintoma. Um tempo para que cada um, atravessado que é nos dois polos de sua causação, desarticulado do sentido e imerso na liquidez do gozo, possa recorrer a novas invenções sintomáticas que lhe permitam uma resposta singular, só sua, não universalizável, ao que ele é. Com isso, talvez ele inscreva em sua vida o algo próprio e inalienável de seu ser.