PATRÍCIO ALVAREZ
“A insensatez do sintoma: os corpos e as normas” será o tema de trabalho da Seção Clínica do Instituto, neste semestre. Sua escolha se articula à preparação para o VI ENAPOL e toma como orientação o argumento de Éric Laurent (2013) para esse Encontro. A apresentação do tema parte da afirmação de que, hoje, “o sintoma está no corpo”, não se oferece à interpretação e tem como resposta do mestre contemporâneo variadas tentativas de normatização e padronização dos corpos (medicalização, judicialização, etc), política da qual a psicanálise de orientação lacaniana não compartilha. Se, na França, discute-se, atualmente, a questão da instrumentalização da psicanálise, para justificar a posição contrária ao casamento para todos, no Brasil, estamos sendo chamados a nos posicionar em relação à questão das internações compulsórias de usuários do crack.
Almanaque On-Line: Em Seu Argumento, Laurent Indica Que “Precisamos Conceber O Sintoma Não Com Base Na Crença No Nome-Do-Pai, Mas Baseados Na Efetividade Da Prática Psicanalítica. Essa Prática Obtém, Por Meio Do Seu Manejo Da Verdade, Alguma Coisa Que Toca O Real. A Partir Do Simbólico, Alguma Coisa Ressoa No Corpo E Faz Com Que O Sintoma Responda” (LAURENT, 2013). Ele Diz, Ainda, Que A Questão, Para A Psicanálise, É “Como Falam Os Corpos Para Além Do Sintoma Histérico, Que Supõe No Horizonte O Amor Ao Pai” (LAURENT, 2013). Em Seu Texto De Apresentação Do VI ENAPOL, Sua Pergunta É: “Com Qual Corpo Se Fala?” (ALVAREZ, 2013). Como Se Articulam As Duas Questões?
Patrício Alvarez: Na verdade, no primeiro ensino de Lacan, o corpo está do lado do Nome-do-Pai: é um corpo regulado por esse significante, e, até mesmo o que existe de real, nesse corpo, é regulado pelo significante fálico. Durante esse primeiro ensino, o que fica do lado de fora pertence ao campo da psicose.
O segundo estatuto do corpo, correspondente ao objeto a, já estabelece uma diferença que amplia a clínica e a relação ao sintoma: é a operação lógica da separação o que permite extrair o objeto a e, em torno desse buraco e de sua borda, criar a superfície que constitui o corpo. Portanto, não é o Nome-do-Pai que produz o corpo, mas essa operação lógica inicial. E o Nome-do-Pai funciona como uma duplicação simbólica dessa operação, ao elevar o buraco ao estatuto da falta-a-ser, ou seja, da castração. Então, consegue regular o gozo, constituindo, assim, a perda do objeto a e, em seguida, a sua busca, chamada de desejo, insatisfeito ou impossível. Mas, então, o Nome-do-Pai não é original, e, por isso, nesse momento, Lacan diz que a função do pai é a de “unir o desejo à lei”, porque sua função é secundária: se ocorrer, o gozo é regulado por essa lei. Mas há muitos casos em que não é regulado dessa forma, e Lacan se dedica, nesses anos, a investigá-los: a psicose, a debilidade mental, o fenômeno psicossomático, as tatuagens, a perversão, o luto, a violência e muitos mais são modos em que algo do objeto a não é regulado pelo desejo nem pelo Nome-do-Pai.
O terceiro estatuto do corpo leva mais longe essa diferença: começa em O Seminário, livro 17, quando Lacan afirma, categoricamente, que a castração é operada pela linguagem, ou seja, não pelo pai. É o que permite a Lacan localizar o pai como uma invenção da neurose, situando-o como o mais além do Édipo. Éric Laurent se refere a isso quando diz que o sintoma histérico supõe, em seu horizonte, o amor ao pai. Assim, o que começou em O Seminário, livro 11, ao localizar o pai como a duplicação da operação de separação, culmina com esse conceito e, assim, abre o segundo ensino de Lacan.
Vemos como o mais além do Édipo, que está sendo investigado, atualmente, na Europa, pelo PIPOL VI1, se articula, intimamente, com a nossa pesquisa sobre o corpo. Qual é o corpo que se constitui mais além do Édipo, se a operação do Nome-do-Pai não é o que a constitui? É um corpo diferente, definido por Lacan, em O Seminário, livro 23, como uma caixa de ressonância na qual um dizer produz efeitos: “a pulsão é o eco no corpo de que há um dizer”. Assim, não é o corpo do Nome-do-Pai, nem mesmo o do objeto a: é o corpo do sintoma e do sinthoma. É o instrumento que temos para tocar um real: o simbólico ressoa no corpo pelo sintoma.
Isso interroga a nossa prática e é o que o argumento de Éric Laurent assinala: o modo como o corpo fala mais além do sintoma histérico, isto é, mais além do Édipo.
Almanaque On-Line: Éric Laurent Evoca Jacques-Alain Miller Em Seu Pequeno Tratado Sobre A “Biologia Lacaniana”, Para Destacar A Maneira Como A Linguagem Biológica Se Apodera Do Corpo, Recortando-O Com Suas Próprias Mensagens, Sem Equívoco. Como, Então, Podemos Pensar Sobre A Produção Do Sintoma Analítico, A Partir De Um Corpo Que Não Fala E Que Goza No Silêncio Pulsional De Uma Linguagem Sem Equívocos?
Patrício Alvarez: Não estamos longe de considerá-lo como uma batalha: o corpo que a ciência recorta pode prescindir da linguagem, pode dispensar o equívoco e o mal-entendido, porque foraclui o sujeito.
Deixemos claro que não nos referimos à ciência, tal como concebida pelo Iluminismo e que muitos ainda defendem, destacando seus progressos úteis à humanidade, o que inclui os gadgets que utilizamos tanto. Nós não discutimos esses desenvolvimentos e, de fato, opor-se a eles é uma forma de obscurantismo, contra o qual Lacan adverte insistentemente.
Não é essa a crítica da psicanálise. Referimo-nos a um outro aspecto da ciência, impulsionado pelo discurso capitalista: o que silencia os corpos, foracluindo o sujeito. O corpo da ciência não fala porque os seus meios são outros: o bisturi e os procedimentos tecnológicos não são o problema de primeira ordem, mas as operações políticas e econômicas que constituem a biopolítica. Então, não acho que existam corpos que não falam, mas que a ciência, em conjunção com o discurso capitalista, os silencia. Essa combinação, a que Lacan se refere várias vezes, em seu ensino, é estudada, em filosofia, sob o nome de biopolítica. Agamben, por exemplo, tem demonstrado os instrumentos de que ela se utiliza para manipular os corpos.
Essa é a batalha: ou os corpos são manipulados biopoliticamente, ou os corpos falam. Então, Laurent diz que “as palavras e os corpos se separam na disposição atual do Outro da civilização” (LAURENT, 2013). Para Lacan, o corpo é de um sujeito. Portanto, temos de fazer falar esse corpo que a ciência tenta silenciar, porque é o único meio de resgatá-lo como de um sujeito. E para que o corpo fale, nosso instrumento fundamental é o sintoma: essa “junção das palavras com os corpos”, que Laurent (2013) indica com precisão.
Então, responderia à pergunta, dizendo que eu não acho que, estruturalmente, existam corpos que não falam, mas que são corpos silenciados. Todo corpo pode falar, mesmo aqueles que parecem gozar em silêncio, e a operação da psicanálise consiste, precisamente, em fazê-los falar em sua própria língua: a clínica do autismo, a clínica da toxicomania e a clínica da violência o demonstram a cada dia. Nossa clínica atual trava essa batalha. Trata-se de uma ética, mas, por que não, também de uma épica.
Almanaque On-Line: Como A Psicanálise Pode Contribuir Para Uma Abordagem Desse Novo Status Do Sintoma? Como A Psicanálise Pode Tratar Esses Sintomas Que Não São Passíveis De Interpretação?
Patrício Alvarez: Temos de estabelecer uma diferença, que parece sutil, mas produz muitas consequências: quando Laurent alude a um corpo que não fala, trata-se do corpo da biopolítica, que, como dissemos, não é um corpo que não possa falar, mas que foi silenciado. E, como tal, podemos fazê-lo falar, resgatando o sujeito.
Mas é diferente disso considerar o corpo que está para além do Édipo, que Laurent designa como aquele da cadeia rígida: “o corpo tórico furado. O corpo como agenciamento do real, do simbólico e do imaginário se apresenta em torno de um ou dois furos, e se mantém sozinho” (LAURENT, 2013). Esse corpo prescinde do Nome-do-Pai, como Lacan aponta, ao falar sobre as diferentes formas possíveis de amarração, ao mostrar que o Nome-do-Pai é uma duplicação possível de um dos registros — no caso da neurose — mas não é necessário: não toda a clínica depende dele.
Entretanto, não devemos nos confundir: esse corpo tórico pode prescindir do Nome-do-Pai, mas não do simbólico. O novo estatuto do sintoma não prescinde do simbólico. Essa diferença sutil é o que permite que a psicanálise possa operar sobre ele.
As manifestações dessa cadeia rígida são muitas, mas o fator comum que as unifica é que não passam pelo sentido: na verdade, o Nome-do-Pai foi localizado por Lacan desde O Seminário, livro 11, como o que produz o laço entre S1-S2, associando o sem sentido do S1 ao saber inconsciente. Na cadeia rígida, esse laço não se produz, e Laurent diz que Lacan “propõe outra versão de um inconsciente que não é constituído pelos efeitos do significante em um corpo imaginário, mas, sim, um inconsciente constituído desse nó entre o imaginário, o simbólico e o real. Inclui a instância do real que é a pura repetição do mesmo, o que Jacques-Alain Miller, em seu último curso, isolou na dimensão do Um-sozinho que se repete” (LAURENT, 2013), ou seja, o que Miller chama de iteração. Isso implica dizer que o próprio inconsciente é afetado pela dispensa da amarração ao pai. Mas esse inconsciente, que pode prescindir do pai e do sentido, não prescinde do sintoma.
Então, poderíamos responder assim a essa pregunta: a rigor, nenhum sintoma é passível de interpretação, mesmo o sintoma neurótico. “Vocês sabem que o sintoma não pode ser interpretado diretamente, que é preciso haver a transferência, isto é, a introdução do Outro. […] O sintoma, por natureza, é gozo […] não precisa de vocês como o acting-out, ele se basta” (LACAN, 1962-1963/2005, p.139-140), é o que Lacan indica, desde O Seminário, livro 10.
Precisamente, o sintoma não precisa do sentido ou do Outro, é o analista que atua para esse forçamento, o de fazer passar o gozo do sintoma para a palavra, pela operação da transferência. Esse forçamento é o que viabiliza a passagem do inconsciente real ao inconsciente transferencial, o que permite que o gozo do sintoma faça laço com o Outro, e que o S1 faça laço com o S2. Sabemos que não é uma operação fácil e que não é o mesmo na neurose, na psicose ou nos sintomas contemporâneos, mas pode ser feito. Isso é o que queremos dizer ao afirmar que todo corpo pode falar, o que a clínica da psicose ensinou-nos em primeiro lugar.
Também aprendemos que todo corpo pode falar, mas não necessariamente entrar no campo do sentido. E, para isso, as clínicas da anorexia, da violência, da toxicomania, e até o ponto extremo, do autismo, nos ensinaram que esse procedimento de passagem para o inconsciente transferencial não é sempre possível. Nós aprendemos que é possível operar com o sintoma, sem passar necessariamente pelo sentido, e, para isso, é tão útil o conceito que Miller define como iteração, ao que Laurent se referia.
Almanaque On-Line: Sua Apresentação Do ENAPOL Trata Das Três Teorias Do Corpo Em Lacan E Das Clínicas Que Podem Ser Deduzidas De Cada Uma, Mas Levanta Um Problema Em Relação À Dificuldade De Elaborar Uma Clínica Do Acontecimento De Corpo, Que Ainda Teria Que Ser Construída. Considerando Também Sua Hipótese De “Que Uma Clínica Se Baseia No Particular Da Classe, Talvez Não Se Tenha Que Construí-La, Mas Designar O Que Há De Mais Singular Nesse Corpo Que Fala”, Você Sugere Que O ENAPOL Seria A Ocasião Para Elaborarmos Uma Resposta. Poderia Falar-Nos Um Pouco Mais Sobre Isso?
Patrício Alvarez: É o ENAPOL que deveria responder! É uma brincadeira, mas tem um pouco de verdade: geralmente, quando nos referimos ao corpo, usamos conceitos do primeiro ensino e, várias vezes, misturamos a clínica do Nome-do-Pai e a clínica do objeto a com a clínica do acontecimento de corpo. Por exemplo, dizemos, levianamente, que um sintoma histérico é um acontecimento de corpo.
Éric Laurent define, de uma forma muito precisa: “Nessa perspectiva, pode-se distinguir o sintoma como acontecimento de corpo e o sintoma histérico” (LAURENT, 2013), e eles não são a mesma coisa. O corpo tórico, como dissemos, prescinde do Nome-do-Pai e inaugura uma série de manifestações clínicas novas.
Assim, a clínica do acontecimento de corpo é muito mais ampla do que as duas anteriores: não se limita à clínica das estruturas — relativa ao Nome-do-Pai — nem à clínica do que está fora delas — aquela do objeto a — mas se refere aos diferentes modos possíveis de amarração RSI: é um conjunto aberto e, como tal, poderia fazer uma série, mas não uma classificação. Por isso, dizia que o particular da classe não a apreende.
Essa clínica do acontecimento de corpo não anula ou deixa de fora as duas anteriores, mas a sua relação com elas é ainda algo a investigar: trata-se de saber se vão ser incluídas, redistribuídas, ou se operam ao modo de funcionamento do conjunto aberto, formando uma série de singularidades, uma série de possíveis amarrações RSI. É a grande descoberta do inclassificável: o fato de que não se possa fazer uma classificação não nos impede de tratar; sim, é o que nos permite operar com o que é invariável em toda a série, o sintoma.
Essas perguntas que nos fazemos são, muitas mais, as que podemos fazer para nosso Encontro: se pudermos obter um pequeno ganho de saber na construção dessa clínica do acontecimento de corpo, em nosso VI ENAPOL, seria ótimo!
Tradução: Márcia Mezêncio.