CASSANDRA DIAS FARIAS
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Assuntos de família no discurso toxicomaníaco: impasses
Os assuntos de família trazem para a nossa comunidade analítica um trabalho de investigação acerca de como os falantes do século XXI se arranjam com a estrutura familiar, essa invenção humana de fazer laço social e reunir em pequenas ou grandes células, corpos e sintomas.
É no seio da família que se desenrolam os conflitos e impasses, a partir da trama simbólica que se tece sobre o mal entendido constitutivo da linguagem.
“São os acasos que nos fazem ir a torto e a direito, e dos quais fazemos nosso destino, pois somos nós que o trançamos como tal. Fazemos assim nosso destino porque falamos. Achamos que dizemos o que queremos, mas é o que quiseram os outros, mais particularmente nossa família, que nos fala. (…) Com efeito, há uma trama – chamemos isso de nosso destino”. [1]
O sujeito vai supor ao destino o seu caminho. A experiência analítica vem demonstrar que esse caminho é feito de escolhas a partir das marcas do dizer do Outro parental. Esse dizer é constituído, fundamentalmente, do que cai do encontro sempre faltoso entre um homem e uma mulher e que teve como produto, um filho. A unidade familiar, qualquer que ela seja, porta em seu seio um segredo sobre o gozo, conforme nos diz Bassols: “é o campo do gozo feminino, o gozo do Outro, que habita em toda unidade familiar. Dito de outra forma: toda família é um aparato de gozo, um modo de resguardar o segredo do gozo como inominável, inclusive abjeto”.[2]
O heteros do gozo feminino toca a cada um que se enoda ao redor desse ponto, produzindo um sintoma. Na clínica da toxicomania, o que podemos pensar a respeito desse aparato de gozo familiar e do segredo acerca do gozo, feminino por excelência?
Nos serviços de assistência a problemas relacionados com o uso de drogas, a família, via de regra, encontra-se desarvorada com a iteração do gozo mortífero e sem sentido da intoxicação de um dos seus. Perplexidade e cansaço predominam e não é incomum que a posição de rechaço e dejeto sejam as únicas saídas possíveis para o insuportável que se apresenta nos corpos intoxicados. A segregação encontra-se sempre no horizonte.
Entendendo o recurso à intoxicação “como uma ação substitutiva, no momento em que o sintoma se mostra insuficiente como resposta para o sujeito”,[3] podemos pensar que, na impossibilidade de articular as marcas do dizer do Outro parental sobre si e do segredo acerca do gozo que habita em cada família, o sujeito se lança no desmedido do autoerotismo, mantendo-se exilado do enigma, portanto, do sintoma.
O sintoma constitui-se como o representante do próprio sujeito, através de sua relação com o gozo. Esse circuito sempre precário, destinado ao fracasso, constitui o movimento do sujeito tentando fazer-se representar pelo sintoma em sua relação com aquilo que lhe causa.
No entanto, não é isso que ocorre na toxicomania. Trata-se de outro caminho subjetivo para os impasses com o sexual e a castração. É através da adição a uma substância que o sujeito encontra uma saída para o impasse sexual sem ter que se defrontar com a diferença sexual, sem ter que tirar consequências do fato da linguagem subverter sua própria condição de animal. Por se tratar de uma operação real sobre o real, entendemos como uma posição de rechaço ao sexual, na medida em que nada quer saber sobre a inexistência da relação sexual.
[1] En la toxicomania no se passa por el Outro sexo, que supone tener que pasar por el encuentro com el cuerpo del outro y que implica la diferencia. A sua vez, ya vimos que esse passar por Outro supone poner em función al falo. (…) Es decir, que la solución toxicómana al malestar no se busca por la via de encontrar o de hacer del Outro la metáfora del objeto perdido, aunque con esto no alcanza.[4]
Os impasses que a clínica nos traz veem atestar que o sujeito intoxicado, na impossibilidade de construir um sintoma, recorre à substância como anteparo ao enigma do gozo que perpassa a instituição familiar, permanecendo colado aos efeitos desse gozo sobre o corpo, em silêncio absoluto sobre o enigma sexual.
Será preciso que algo desse segredo alojado na família ressoe e algo fure a blindagem subjetiva promovida pela substância, fazendo enigma para o sujeito. Nessa operação, ele poderá reencontrar o caminho das palavras. Resta para mim, a razão pela qual o sujeito poderá consentir com a investigação do enigma familiar, abrindo mão do gozo compato da intoxicação. Encontro em Lacan a referência precisa: “Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”[5], para fazer mediação com o Um sózinho.