LAMA -RICHARDSON PONTONE
Almanaque: “Acontecimento” é nosso tema de trabalho neste número do Almanaque e o entendemos como uma experiência que inaugura um antes e um depois. Você considera o rompimento da barragem de Brumadinho no estatuto de acontecimento? É uma experiência que inaugura um antes e um depois para a população e a cidade?
Rodrigo Chaves: Com certeza. Não sei se o conceito a ser utilizado é o de acontecimento ou se é o de crime, de tragédia humana absurda, mas com certeza tem um antes e um depois. É crime, que com certeza muda, traz transformações muito profundas na vida de uma comunidade, de um território. Ocorreram mudanças afetivas e mudanças culturais muito grandes em tão pouco tempo. Percebemos mudanças culturais, nas relações de afeto entre as pessoas, mas não é um crime que aconteceu. É um crime em acontecimento.
Se a palavra é essa, ele está acontecendo, a tragédia está em andamento. Temos como exemplo o caso de uma pessoa que, no primeiro momento, queria muito encontrar o corpo do familiar para poder sepultá-lo e, logo em seguida, era tomada por uma atitude de negação, acreditando que o familiar estivesse vivo. De alguma forma, o luto nem pôde começar, porque nem se sabia se o familiar desaparecido estava vivo ou não.
A: Como foi organizada a estrutura da Rede de Saúde Mental de Brumadinho após o rompimento da barragem?
RC: Nós fomos capazes de dar uma resposta imediata. Fizemos na Saúde, como um todo, um esquema de plantão tanto nos hospitais gerais da microrregião e região metropolitana – para receber os feridos, prestar os primeiros socorros – quanto na saúde mental, junto a equipes locais (adulto e infantil) e profissionais da Coordenação Estadual, da FHEMIG, dos municípios vizinhos, do CRP, da Força Nacional do SUS e de outros parceiros. Mas isso só foi possível porque Brumadinho tem um SUS bem organizado.
É um local que tem 100% de cobertura do Programa de Saúde da Família e uma equipe de saúde mental estruturada dentro da necessidade do município. A cidade já contava com o CAPS e com o CAPS infantil. E, em razão dessa necessidade, ampliamos toda a rede de saúde mental, aumentando a capacidade do CAPS; credenciamos o CAPS infantil e criamos mais equipes que trabalham no território, chamadas de intermediárias. Isso foi aprovado e está sendo financiado pelo Ministério da Saúde. São quinze profissionais, cinco em cada equipe, que acompanham os casos mais próximos nas unidades básicas, para que o CAPS fique efetivamente com a crise e com a urgência. Estruturamos plantões de saúde mental nos postos da zona quente e na sede. Era preciso que a população tivesse a certeza de que, se fosse necessário, estaríamos lá. Fundamentalmente, é preciso dizer do trabalho territorial anteriormente desenvolvido pela saúde mental e aprofundado pós-rompimento da barragem. O SUS que conhece e sendo reconhecido pela comunidade.
A: E como foi a resposta da comunidade?
RC: Diferente do que esperávamos. No primeiro momento, não apareceu ninguém.
As famílias ficaram fechadas dentro de casa, sem ter certeza do que estava acontecendo, ansiosos esperando uma notícia. Aparentemente só saiam de casa duas vezes por dia, uma de manhã e outra à tarde, a hora em que saía a lista dos bombeiros, para saberem se tinham encontrado alguém ou se alguém tinha mudado de lista, de desaparecido para encontrado ou dado como morto. Em seguida, voltavam para suas casas. E isso persiste, ainda, em muitos casos.
A: Como você avalia isso? Uma perplexidade?
RC: Logo após o rompimento da barragem, as pessoas ficaram circulando pela cidade tentando fazer contato com familiares, procurado saber se alguém tinha notícias. Em seguida tivemos uma pane e, segundo alguns relatos, os telefones param de funcionar, e não se conseguia comunicar. As pessoas ficaram esperando notícias do seu familiar, mas, diante da falta de notícias, a expectativa era de que ele ainda estaria vivo e não dava notícias por causa da pane que paralisou os telefones. Em seguida, a população ficou na expectativa de que viria uma enchente, de que a lama viria ocupar toda a cidade, e então eles foram para as partes altas da cidade. Mas isso não aconteceu. A lama parou nas proximidades da cidade, entre a barragem e a cidade. Acumulou ali uma lama gigantesca, uma montanha de lama que segurou a água. O rio que passa pela cidade foi interrompido por algum tempo pela lama e começou a baixar o nível de água. Muitas pessoas desceram para a beira do rio e foram acontecendo coisas inusitadas, por exemplo um ajuntamento de pessoas olhando para o rio, paralisadas ali, dias e dias e dias ali, olhando para ver se algo vinha. Porque, nas primeiras semanas, os números eram imprecisos. Eles olhavam ao longe, no rio, na esperança de que o rio trouxesse algo, de encontrar pessoas, ou mesmo fragmentos dos corpos. Era muito ruim.
A: O rio passou a ter outra conotação para a população?
RC: Sim, ocorreu também o “balé dos peixes”. Os peixes saltavam da água e as pessoas começaram a descer à beira do rio para pegar os peixes com as mãos. Ou seja, ao mesmo tempo em que se esperava que chegasse alguém, um corpo, uma notícia, o que se vê são pessoas pegando os peixes com as mãos. Me pergunto: o que faz o ser humano agir dessa forma? O rio e seus peixes eram um complemento alimentar utilizado normalmente por eles, pela pesca. Mas, naquela situação, eles desciam para pegar os peixes devido à facilidade, pois os peixes saltavam após a água baixar de nível. Isso é muito estranho, pois, ao mesmo tempo em que pegavam os peixes, aguardavam algum familiar, amigo, algo que pudesse ser trazido pela enchente. E também corriam o risco de serem levados, caso a enchente aumentasse. E foram muitas pessoas que fizeram isso.
É um movimento dúbio que aparece também em relação à Vale. Muitas pessoas estão recebendo dinheiro, muito dinheiro, o que nos leva a refletir que isso suspendeu o luto não de quem teve a perda do familiar, mas do resto da comunidade que não teve a perda direta mas estava em luto pelos amigos, pelos vizinhos, pelo crime, pelo chocante da tragédia…
A: Quais são as outras percepções sobre esse primeiro tempo, pós rompimento da barragem?
RC: Tivemos também uma invasão de imagens – dos tratores, da lama, dos bombeiros, mas não se viam pessoas sendo resgatadas. A cada minuto que passava, ficava mais difícil disso acontecer. Me parece que, após as primeiras setenta e duas horas, os bombeiros falaram que não tinham mais expectativa de encontrar pessoas com vida. Depois de alguns dias, eles anunciaram que iriam entrar com maquinário pesado, e isso estraçalhou as famílias, estraçalhou as pessoas. A compreensão de que os corpos já haviam sido dilacerados no momento da chegada da lama ainda não era corrente. Esperava-se ainda pelos corpos dos familiares, e não fragmentos. O uso de máquinas jogava por terra mais essa esperança.
Essas pessoas foram muito invadidas. A cidade foi invadida, foi invadida por voluntários, por serviços de saúde de todas as espécies, por gente fazendo pesquisa, por tudo o que vocês imaginarem. Chegavam ônibus de psicólogo, um ônibus de assistente social… Colocavam a plaquinha e saiam. Invadiram a cidade inteira. Independentemente de como a pessoa tinha sido atingida, eles batiam na porta da casa o dia inteiro. Não tinha um espaço para o sofrimento, não tinha um espaço para que a família pudesse sentir a dor da perda.
A: Qual é a perspectiva de passagem do tempo para essa população?
RC: A missa de sétimo dia, celebrada pelo arcebispo de Belo Horizonte, me parece que não estava muito cheia. Poderia ter sido uma marcação temporal para essa tragédia, mas algumas pessoas disseram “eu não vou à missa para quem eu não sepultei”, “eu não reconheço a morte”, “eu não sepultei ninguém”. Na missa de trigésimo dia, tivemos as mesmas falas. Uma pessoa que tinha perdido os familiares deu um testemunho em uma rádio, e quando o repórter perguntou para ele “e agora? como é começar do zero?”, ele respondeu “eu não sei onde é o zero, eu não achei o zero ainda”.
Então, para alguns, o tempo não começou a contar ainda.
A: Isso afeta a elaboração do luto…
RC: Sim, há um tamponamento, uma suspensão do luto. Inclusive isso aparece muito em relação à Vale. Escutamos no CAPS falas como “eu ouvi lá no supermercado pessoas comentando que foi bom que aconteceu, porque a vida está mais fácil agora”. Porque eles estão recebendo dinheiro, muitos estão recebendo dinheiro, então as pessoas estão podendo fazer a compra do mês e muitas outras compras não habituais. E essa cidade, que é bastante solidária, bastante afetuosa, começa a perceber essa divisão de opiniões entre as pessoas que acham que a Vale tem que voltar logo e as pessoas que estão muito magoadas, com muito sofrimento.
Nesse sentido, tem algumas coisas que estão muito diferentes. Essa questão financeira é muito delicada. As crianças! Podemos fazer a mesma comparação com o sentimento das crianças: para elas estão sendo ofertados, lá no Parque da Cachoeira, brinquedos a que elas nunca tiveram acesso ao mesmo tempo em que o irmão está desaparecido na lama. Isso já nos primeiros dias. É aquele sentimento ambivalente: estou feliz, mas estou triste, porque estou aqui brincando, uma coisa superlegal, mas meu irmão não chega.
E muitos são tomados pela culpa, como um paciente que chega procurando ajuda e fala que está insone, que está deprimido, chorando muito e, em seguida fala “não entendo por que isso está acontecendo; eu não perdi ninguém, eu não fui atingido, minha esposa está vindo trabalhar todos os dias, a lama não chegou na minha casa”. E completa “eu não estou sendo homem o suficiente, eu não podia estar desse jeito”.
Ora, todo mundo na cidade foi atingido, é óbvio que cada um vai se impactar de uma maneira. Em uma reunião de equipe, um técnico da área da saúde pergunta “e se todo mundo surtar? como vai ser?”. E a resposta que dei foi “não, isso não vai acontecer”. É claro que, nessas situações, muitos de nós vamos adoecer, inclusive da equipe; já estamos adoecidos. Mas não é assim, nesse processo de adoecimento metal, não adoece todo mundo.
Há essa coisa do “todo mundo”, da “tragédia coletiva”, mas, na hora que você recebe as pessoas, uma a uma, você percebe como é pessoal; como a vivência é de cada um mesmo. Ela tem esse caráter coletivo, de um crime, de uma tragédia coletiva, social. Fazemos política pública para “todo mundo”, mas, na hora do cuidado, se cuida muito individualmente. Temos casos em que o sofrimento retorna nos sonhos, e o sujeito não para de sonhar com a lama.
A: Isso tem a dimensão do trauma. É uma tentativa de elaborar o que aconteceu?
RC: Sim. Hoje, tem uma parcela da população que eu acho que é das pessoas que estão envolvidas – muito sofridas, mas envolvidas no processo de agrupamento. Eles estão se agrupando, excluem pessoas entendidas como aquelas que estão fazendo política partidária, política de uma determinada associação. Eles querem ser solidários uns com os outros. São grupos de pessoas que perderam familiares e se reúnem para discutir com advogados, com a promotoria, com a própria Vale. Há uma definição de que tudo tem que partir da população, assim como todas as estratégias de cuidado, e nós temos que partilhar isso com eles. Montamos nossa estratégia de trabalho a partir dessa premissa.
Talvez seja do início de uma retomada, uma retomada de reorganização de vida, de volta às ações, mas é uma retomada muito marcada. Não tem perspectiva de fim. Infelizmente eu não vejo assim, de que nós vamos, dentro de três anos, por exemplo, superar isso. É difícil fazer uma elaboração de uma coisa que não se fechou, não tem nada se fechando. As pessoas continuam por sepultar seus mortos, por entender o que aconteceu, e essa coisa de ter um sentimento muito ruim em relação a algo externo, não sei se permite uma elaboração. Quanto isso vai dificultar? Porque a cidade é muito dependente do minério e da Vale, que vai continuar existindo ali.
Hoje a comunidade não tem preocupação de que possa acontecer isso de novo, porque já aconteceu, já não tem mais barragem para romper. Os moradores de Macacos, de Barão de Cocais, estão vivenciando isso. Isso é uma situação absolutamente perversa.
A: Passados poucos meses, quais sintomas podem ser destacados e relacionados com esse crime em acontecimento?
RC: Há indicadores de que os adoecimentos vão aumentar, por exemplo a questão da violência doméstica, a questão do uso de álcool, a questão das tentativas de autoextermínio, quadros de ansiedade severa, a questão da depressão na infância. Estamos percebendo isso agora, com três meses, quase três meses. Esse fluxo está começando a chegar mais efetivamente, antes estava muito disperso.