Cinco teses sobre as núpcias do dico e do neuro1,2
Hervé Castanet
Psicanalista, A.M.E. da École de la Cause freudienne/AMP
castanet.herve@wanadoo.fr
Resumo: Hervé Castanet localiza alguns pressupostos epistêmicos da tese neuro, uma tese que invade hoje a discussão científica e pretende reduzir o mental ao neuronal. Por sua vez, a tese dico, isolada por J.-A. Miller, vem confirmar o procedimento neuro: “Eu sou o que eu digo”, terreno em que o ‘eu’ faz existir sua verdade. Se a tese neuro toma a materialidade cerebral como real, o autor sinaliza, em seu texto, o papel dos analistas no combate a isso: “O combate que temos que travar contra a tese neuro, como dico naturalizado, gira em torno do conceito de real”.
Palavras-chave: neurociência; psicanálise; inconsciente; real.
FIVE THESES ON THE NUPTIALS OF THE DICO AND THE NEURO
Abstract: Hervé Castanet locates some epistemic assumptions of the “neuro thesis”, a thesis that invades scientific discussion today and aims to reduce the mental to the neuronal. In turn, the “dico thesis”, isolated by J.-A. Miller, confirms the neuro procedure: “I am what I say”, the terrain in which the ‘I’ makes its truth exist. If the “neuro thesis” takes cerebral materiality as real, the author highlights in his text the role of analysts in this fight: “The fight we have to fight against the ‘neuro thesis’, as dico naturalized, revolves around the concept of real”.
Keywords: neuroscience; psychoanalysis; unconscious; real.
Uma tese invade hoje a episteme e pretende fazer a separação entre o que é clínico e o que não é. Orientados pela psicanálise, é necessário esfregar os olhos para perceber o que tem sido bombardeado: o cérebro é uma máquina – à maneira sofisticada de Turing – de processar informações. É o órgão no qual reside toda causalidade dita mental.
O mental aí se reduz ao neuronal, e o inconsciente, que nada tem a ver com aquele de Freud e de Lacan, pode ser aceito com a condição de que seja provido de córtex.[3] Querer enlaçar traço sináptico e traço psíquico, ainda que se referindo ao primeiro Freud, participa desse mesmo empreendimento de naturalização: o inconsciente, sim, mas não sem o neocórtex.
A tese não é nova e a frase frequentemente citada de Cabanis, datada de 1802, recupera seu lugar de bússola: “O cérebro secreta o pensamento, assim como o fígado secreta a bile”. Assim, essas velharias neomaterialistas do tempo das técnicas conquistadoras recuperariam seus direitos! A Universidade, os dispositivos hospitalares, os investimentos de pesquisa etc., deveriam se curvar aos avanços da ciência para pôr fim à teologia que, segundo essa tese, legitimaria os dispositivos da fala.
Falar? Você está brincando! A transferência? Mostre-nos os traços neuronais! Essa tese tem um nome: é a tese neuro que, em sua vontade hegemônica, se torna a tese do tudo neuro. Ela é a negação do inconsciente no sentido que lhe dá Lacan: “A novidade revelada pela psicanálise é um saber não sabido por ele mesmo” (LACAN, 1971/2011, p. 23). O dizer não sabido não o equipara ao caos – ao contrário: “O saber não-sabido de que se trata na psicanálise é um saber que efetivamente se articula, que é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1971/2011, p. 23). Lacan insiste nisso em O Sinthome:
“Sou isso que digo”.
“O inconsciente é inteiramente redutível a um saber. É o mínimo que supõe o fato de ele poder ser interpretado.” (LACAN, 1975-76/2007, p. 127).
Tese 2
A ciência dos cálculos não se ocupa de tal saber, porque alojá-lo neuronalmente revela-se vão. Para a tese neuro, esse saber não sabido é estúpido, a psicanálise é metafísica. Apenas o cérebro é verdadeiro, uma vez que se interessa pelas imagens cerebrais, em que o mental é um processo materialista: este é o reino do homem neuronal (CHANGEUX, 1983).
A tese dico, “Eu sou o que eu digo”, isolada por Jacques-Alain Miller, contrariamente ao que se poderia acreditar não se opõe à tese neuro, mas confirma o procedimento: o Eu digo equivale à verdade e cada um se torna o conhecedor de sua vida. Isso é verdade, já que Eu o digo. Desde que o cirurgião pode adequar as formas do corpo com as afirmações do Eu digo, nada mais se opõe a que o neurocirurgião, ele mesmo, intervenha na arquitetura neuronal para que cada um experimente em seu corpo e em seu pensamento isso que ele diz que é. Em tal contexto, neuro e dico não são incompatíveis. O dicionário é naturalizado: “Eu sou isso que os traços escrevem em meu cérebro”. Ficção científica? Talvez não…
Tese 3
Estaremos presentes nesse “Eu sou isso que digo”, reciclado pela tese neuro, para a produção de um novo cogito? Certamente que sim, na condição de acrescentarmos, como faz Lacan (1966/1998, p. 60) em 1966, que aí se trata de um “falso cogito” dito psicológico.
É falso porque ele “representa o eu do cogito” (LACAN, 1966/1998, p. 60) que exclui a dúvida e a certeza antecipada que Descartes constrói como tensão temporal. Exclusão da escansão temporal que o exemplo dado por Lacan desse falso cogito verifica: “eu penso quando sou aquele que se veste de mulher” (LACAN, 1966/1998, p. 60), como mostram as Memórias do abade de Choisy.
Tese 4
Se existe o falso cogito, existe também o… verdadeiro.
É com este último que Lacan dialoga para subvertê-lo. Os leitores de Lacan sabem: subversão e revolução se opõem. O termo “revolução” associado à descoberta freudiana é inadequado, pois ele designa um retorno à origem. O termo “subversão” é preferível: “O que não se aceita, com ou sem revolução, é uma subversão que se produz na função, na estrutura do saber” (LACAN, 1971/2011, p. 23). Com a psicanálise, a reflexividade do “sabe-se que se sabe” perde sua base.
Em “A Terceira”, de 1974, Lacan retoma a fórmula do cogito. Um gozo sem sujeito define o ser de uma nova maneira: o ser do sujeito não deve ser buscado no pensamento, mas no gozo: “Eu sou lá onde isso goza”. O Eu é localizado lá onde há o gozo inconsciente. O cogito, subvertido pelo isso goza, assume uma nova forma: “Penso, logo Se goza” (LACAN, 1974/2022, p. 13) Criando um neologismo: Eu sou (verbo ser) + eu gozo (verbo gozar) = Eu go(z)sou.[4] Lacan (1974/2022, p. 13) acrescenta: “Isso rejeita o ‘logo’ usual, aquele que diz Eu go(z)sou. […] ‘Rejeitar’ deve ser entendido aqui como o que eu disse acerca da foraclusão – rejeitado, o go(z)sou reaparece no real”.
Qual a relação disso com a psicanálise, pergunta o cético? “Que sentido tem isso, seu go(z)sou? Exatamente o meu tema específico, o Eu [Je] da psicanálise” (LACAN, 1974/2022, p. 13). Como todo mundo, Descartes “tem um inconsciente, e é miserável” (LACAN, 1974/2022, p. 14). Assim vai o cogito do parlêtre (sujeito + o gozo): “Penso, logo go(z)sou” (LACAN, 1974/2022, p. 14).
A conjugação do verbo go(z)sar[5] escreve que existe “um saber impossível de ser reintegrado pelo sujeito” (LACAN, 1974/2022, p. 14), que seja esse o cogito próprio da psicanálise.
Tese 5
O combate que temos que travar contra a tese neuro, como dico naturalizado gira em torno do conceito de real. Caberá a nós afirmar que o biológico não é o real, segundo a afirmação de J.-A. Miller (2018a, p. 126 -127), que acrescenta: “O real tornou-se o neuro-real; é este neuro-real que é chamado a dominar nos próximos anos” (MILLER, 2018b, p. 117).
Nesse aspecto, o real dito neuronal, apesar das inúmeras provas da sua realidade material, é uma ficção, com sua “filosofia espontânea”, segundo a expressão de Althusser (1974). É, portanto, sua ideologia do tipo truque de mágica que temos de combater, por meio da qual querem nos calar. O real do go(z)sou jamais nos deixará tranquilos… Tanto pior para os fãs do cérebro!