O lugar do analista na interpretação
Ana Paula Menezes de Souza
Graduada em Psicologia (UFMG)
Aluna do Curso de Psicanálise do IPSM/MG
psi.anamenezes@gmail.com
Resumo: Entre discursos e terapias vigentes que se alinham a ideais normativos do “eu consciente de si”, do “controle de emoções” e de outros imperativos contemporâneos, perguntamo-nos no presente texto pelo lugar radicalmente distinto ocupado pelo analista em relação à interpretação, tomada a partir da ruptura que propõe em relação às lógicas intersubjetiva e dialógica, tão presentes na atualidade. Nesse sentido, tentaremos discutir o conceito de interpretação, visando explorar as ressonâncias que incidem sobre ele na medida em que transitamos, no ensino de Lacan, entre o inconsciente estruturado como uma linguagem e o inconsciente que se faz presente quando o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido. Apostamos que pensar o lugar do analista no que toca a intepretação nesses tempos é subverter a lógica hegemônica de uma psicoeducação prescritiva cada vez mais presente.
Palavras-chave: inconsciente transferencial; inconsciente real; analista; intepretação.
THE PSYCHOANALYST’S PLACE IN INTERPRETATION
Abstract: Between current discourses and therapies aligned with normative ideals of the “self-conscious self”, “control of emotions” and other contemporary imperatives, we ask ourselves in this text about the radically different place occupied by the psychoanalyst in relation to interpretation, taken as a starting from the rupture it proposes in relation to intersubjective and dialogical logics, so present today. In this direction, we will try to discuss the concept of interpretation aiming to explore the resonances that affect it as we move, in Lacan’s teaching, between the unconscious structured as a language and the unconscious that is present when the space of a lapse has no impact of meaning. Our hypothesis is that the function of the psychoanalyst when it comes to interpretation in these times subvert the hegemonic logic of an increasingly present prescriptive psychoeducation.
Keywords: transferential unconscious; real unconscious; psychoanalyst; interpretation.
Quem é este si/consigo (soi), este si que sabe que isso não tem nem pé nem cabeça, nem sentido, nem interpretação? (MILLER, 2009, p. 15)
Na atualidade, somos confrontados de forma massiva com terapias que se alinham a noções como as de um “eu consciente de si”, de “controle de emoções” e de outros ideais que se centram na pretensão da reeducação de comportamentos. Esses imperativos, aliados ao discurso capitalista, lançam sobre a relação “terapeuta-cliente”, como é nomeada, lógicas que se remetem à intersubjetividade e à dialogicidade, sustentadas pela crença em uma comunicação inequívoca: ao ensinar, se aprende; ao escutar, se entende.
Em outra via, radicalmente distinta, recolhemos desde Freud as reverberações que o descentramento inconsciente provoca e que é fundante de uma ruptura, na releitura de Lacan, entre o ser e o pensamento: “Ali onde penso não me reconheço, não sou – é o inconsciente. Ali onde sou, é mais do que evidente que me perco (LACAN, 1969-1970/1992, p. 96). Tomamos, neste artigo, essa inversão que o inconsciente promove para pensar o lugar do analista quando está em questão a interpretação, sua “tática” (LACAN, 1958/1998). Quais seriam os efeitos sobre a noção de interpretação quando tomamos a modificação da noção de inconsciente presente ao longo da obra de Lacan, isto é, nos termos de Miller (2009), de um inconsciente transferencial ao inconsciente real? Nesse deslocamento, como podemos situar o lugar do analista? Tentaremos tocar essas questões impulsionados pela aposta no caráter subversivo da interpretação e do discurso analítico em relação ao discurso do atual tempo histórico, permeado por terapias que se propõem a, de forma normativa, “psicoeducar.”
Inconsciente e interpretação: estruturalismo e além
O termo “inconsciente”, elevado a conceito por Freud, foi posteriormente tomado por Lacan, em seu Seminário 11, como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Enquanto termo presente desde a criação da psicanálise, ele sofreu alterações já nesse período inicial, especialmente se considerarmos as modificações que incidiram sobre a teoria em 1920, com o texto “Além do princípio de prazer”. Nesse trabalho, Freud (1920/2006) se confronta de modo mais direto com a dimensão do inconsciente que resta intraduzível e que se apresenta por sua insistência como compulsão à repetição. Estão ali presentes coordenadas fundamentais ao conceito de gozo – posteriormente elaborado por Lacan – e, ainda, a uma leitura do inconsciente lido além das contenções simbólicas, que encontrará desenvolvimentos persistentes ao longo de todo o ensino lacaniano, especialmente em sua última década.
Antes desse derradeiro momento, contudo, observamos outras características nos momentos prévios do ensino de Lacan. A década de 1950, por exemplo, foi especialmente marcada pela influência do estruturalismo. Sob essa perspectiva, o inconsciente é lido como estruturado como uma linguagem, o que quer dizer, em outras palavras, que ele opera como um sistema do qual se decantam os mesmos elementos da linguagem, como o significante e o significado (MILLER, 2012). Nos termos de Miller (2009), podemos pensar essa leitura sobre o inconsciente em sua dimensão transferencial, diante da qual nos remetemos à ligação entre S1 e S2 que constituem as cadeias significantes. Nesse sistema, há de forma central a dimensão do endereçamento, de algo a ser decifrado e que vai ser lançado à figura do analista, tomado na posição de sujeito suposto saber.
No que se refere à interpretação, Miller (2012, p. 5) dirá que, sob essas coordenadas estruturalistas, a interpretação não constituiria “um problema”, estaria remetida de maneira direta às operações com o significante: “A questão é saber qual significante deve ser acrescentado, trazido, injetado pelo interlocutor-analista, para provocar um efeito de sentido”. Esse lugar do analista e da interpretação parecem dar continuidade a uma posição colocada por Freud (1896/1996) desde sua “Carta 52”, texto em que o inconsciente é situado como uma escrita a partir da qual o que se inscreve deve não ser somente lido, mas traduzido, decifrado. Há desde esse princípio a dimensão de um endereçamento que convoca uma posição presente do analista: “pela transferência […] tornamos presente, mobilizamos e lemos o inconsciente” (MILLER, 2009, p. 5).
De modo interessante, contudo, Laurent (2021, p. 176) nomeia o inconsciente, tal como estabelecido por Freud, como uma “ilusão estrutural”, apontando para os limites dessa operação tradutiva que convocaria uma leitura do analista a partir da transferência, conforme trazido anteriormente. A partir disso, perguntamo-nos então: o que há para além dessa ilusão? E, nesse além, onde se situa o analista? Entendemos caminhar com essas questões em direção à noção de inconsciente real: “Associamos, eventualmente, à injunção do analista. Mas, aqui, onde ele está? Não o encontramos. Só o encontramos quando nos pomos a prestar atenção. E, de fato, nesse momento, há sentido e há interpretação” (MILLER, 2009, p. 6).
O inconsciente real, de modo distinto ao inconsciente transferencial, coloca em cena a exterioridade do sujeito suposto saber e da máquina significante, evidenciando a dimensão que lalíngua convoca da materialidade da linguagem, alheia ao sentido. Miller (2009) situará o inconsciente real como homólogo ao traumatismo, como um limite que não convoca sentido ou transferência, mas uma centralidade do corpo como aparelho de gozo: goza-se à revelia do sentido.
Esses dois conceitos formulados por Miller – inconsciente transferencial e inconsciente real – interessam-nos na medida em que tentamos percorrer desde uma interpretação-tradução, que se associa ao sentido e ao sujeito suposto saber, até uma interpretação-corte, ligada à “matéria sonora equívoca” (LAURENT, 2022, s/p), que se afasta do sentido, oferecendo outros contornos à interpretação.
Como afirma Laurent (2022, s/p).
Ao introduzir essa modalidade que rompe com a associação livre da fala, ao estabelecer um certo isto não quer dizer nada, a interpretação que passa pela fala passa para o lado da escrita, única capaz de se encarregar do furo do sentido e do impossível.
De uma à outra, entendemos partir da interpretação que joga com o sentido, referida à estrutura da linguagem, em direção a um hiato que se remete mais aos efeitos de sentido real que “dispensa[m] o imaginário da significação” (LAURENT, 2022, s/p). Estamos, nesta última, mais distantes da linguagem e mais próximos de lalíngua.
Nesse terreno, Miller (2012, p. 16) dirá que, no que diz respeito à lalíngua, o fenômeno essencial que ela convoca remete não ao sentido, mas ao gozo: “e o que se pode fazer com a interpretação quando se trata de apparola, quando é o gozo que fala? Interpretar a verdade, certamente. Interpretar o gozo!”.
O lugar do analista
No texto “A interpretação pelo avesso”, Miller (1996, p. 96) afirma:
Fazer ressoar, fazer alusão, subentender, silenciar, fazer oráculo, citar, fazer enigma, meio-dizer, revelar – quem faz isso? Quem o faz melhor? Quem maneja essa retórica desde nascença, enquanto você se esforça por aprender os rudimentos dela? Quem? – a não ser o próprio inconsciente.
Ainda no referido texto, Miller (1996), recuperando Lacan, situará a interpretação junto ao conceito de inconsciente, estabelecendo que a interpretação é primordialmente operação do inconsciente, cabendo à interpretação analítica um segundo tempo.
Partindo desse ponto, localizamos uma presença do analista que não toma o inconsciente como uma linguagem-objeto a ser decifrada por uma metalinguagem, que seria a interpretação (MILLER, 2009), mas a situa de modo correlato a essas próprias operações. Há aí a subversão que o discurso analítico promove. Desse ponto de vista, estabelecemos para a interpretação um lugar próprio, não sendo ela pedagógica, didática, sugestiva ou explicativa, imperativa (SIQUEIRA; GORSKI, 2018).
Se, no começo do ensino lacaniano, a interpretação analítica consistia na ideia de fazer revelar uma verdade oculta do sujeito do inconsciente, com o passar dos anos, e uma permeação mais presente do conceito de gozo, avança-se em direção ao falasser, entendendo a interpretação cada vez mais como ferramenta de perturbar a defesa ao “tentar tocar esse real do corpo que se goza” (SEYNHAEVE, 2021, s/p). Nesse sentido, o próprio inconsciente transferencial poderia ser tomado como uma defesa contra o gozo fora do sentido:
o ponto de vista do sinthoma consiste em pensar o inconsciente a partir do gozo. Pois bem, isso tem consequências para a prática, especialmente para a prática da interpretação. A interpretação não é apenas a decifração de um saber, é fazer ver, é elucidar a natureza de defesa do inconsciente” (MILLER apud SEYNHAEVE, 2021, s/p).
A interpretação que visa perturbar a defesa, pois, mobiliza o corpo e convoca do analista “o tom, a voz, o sotaque. Até o gesto e o olhar” (MILLER apud SEYNHAEVE, 2021, s/p). De Seynhaeve (2020) extraímos o testemunho de Bernard Porcheret, que sintetiza esse outro lugar da interpretação:
No caminho em direção à porta de saída, eu tiro meu casaco do cabide. Silêncio, nenhum barulho de maçaneta para ir chamar o analisante seguinte. Viro-me, o analista, contingência da interpretação, neste dia, está vestido com um terno escuro […]. Na penumbra do corredor, atrás da porta da sala de espera, ele fica de frente para a parede, congelado, imitando o agente funerário […]. Na rua, a alguns metros de distância, leve, eu rio. Um dizer surgiu: fôlego. […]. A interpretação fez cair o significante mestre agente funerário, sob o qual eu estava esmagado. Imitando-o, em silêncio e sem olhar, o analista me separa dele. (PORCHERET apud SEYNHAEVE, 2020, s/p)
O analista perturba o silêncio com sua interpretação.