Cólera (2013), curta-metragem do diretor espanhol Aritz Moreno, revela de forma cruel como a população de uma pequena vila se dispõe a erradicar o mal que ameaça contaminar todos aqueles que vivem naquela comunidade. Armados com paus, pedras e espingardas, os habitantes se dirigem a um pequeno casebre que se encontra isolado no ponto extremo de um campo. Lá se encontra o objeto hostilizado pela população, alguém que, segundo eles, já teria causado “problemas demais”. “Finalmente uma vila limpa!” é bradado pelo líder da comunidade após o linchamento daquele que propaga o mal, ato esse que não será sem consequências.
Nesse sentido, o filme nos revela um duplo contágio ao colocar as duas cóleras frente a frente, num duelo entre a vida e a morte: homofonicamente, a cólera representa o afeto em si, em sua versão epidêmica que mobiliza a população em direção ao linchamento; e o retorno desse ato como doença infecciosa grave, que poderá contaminar toda a população.
A escolha desse curta me permitiu pensar que o significante cólera, como metáfora do contagioso, epidêmico e viral que se exprime por colocar a justiça e a legitimidade ao seu lado, incide sobre o que se recolhe hoje como mal-estar da civilização, vigente no campo político e social. Os linchamentos, o ódio étnico e a intolerância são manifestações do imperativo de gozo, impulsionado pela pulsão de morte, que podem ser qualificadas como irrupções.
Segundo Laurent, na entrevista publicada no livro A violência: sintoma social da época, Lacan dizia que temos que estar atentos às novas formas com as quais uma época vive a pulsão. Mas não somente vive a pulsão no sentido Eros, mas também no sentido Tânatos (2013, p. 41).
Na perspectiva clínica, a cólera, segundo Lacan, se caracteriza pela irrupção do real do gozo que surge quando, numa trama simbólica bem estabelecida, os pinos deixam de entrar em seus furos. “Que quer dizer isso? É quando no nível do Outro, do significante, ou seja, sempre, mais ou menos no nível da fé, da boa-fé, não se joga o jogo” (LACAN, 1962-1963, p. 23).
Para Lacan, a cólera irrompe como uma certa reação, por vezes, violenta, a uma “decepção, ao fracasso de uma correlação esperada entre a ordem simbólica e a reposta do real” (LACAN, 1959-60, p. 127). Sendo assim, para que haja decepção, é preciso que haja crença no Outro, evidenciando uma correlação entre crença e espera (VIEIRA, 2001, p. 215). Então, quanto mais o sujeito estiver firmemente plantado no encadeamento das razões, maior será a possibilidade de que algo inexplicável esteja em ruptura com o universo e mais estará sujeito à cólera.
Segundo Vieira, é preciso esclarecer que nem sempre advém a cólera quando as coisas não funcionam bem. Ela irrompe justamente quando não se consegue atribuir à falha uma razão que a inclua, isto é, no momento da explosão colérica, o sentido aparece obscuro para quem o experimenta (2001, p. 215).
Freud, em “Estudos sobre Histeria” (1893-1895), salienta que todos os afetos intensos restringem a associação – o fluxo de representações. As pessoas ficam “insensatas” com a raiva ou com o pavor. Somente o grupo de representações que provocou o afeto persiste na consciência e o faz com extrema intensidade. Assim, a atividade associativa não consegue aplacar o excitamento (p. 209). Nesse ponto, Lacan concorda inteiramente com Freud ao dizer que “o afeto ele se desprende, fica à deriva. Podemos encontrá-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas ele não é recalcado. O que é recalcado são os significantes que o amarram” (1962-63, p. 23). Portanto, essa ruptura da associação livre e a perda de sentido se caracterizam por uma quebra na articulação entre S1 e S2 (Boletim OCI, n0 0, 2019).
Ainda citando Freud, os afetos que são ativos aplacam a excitação aumentada através da descarga motora. Os gritos, o maior tônus muscular da cólera, as palavras raivosas e as ações retaliatórias, tudo isso permite que a excitação se escoe em movimentos. A linguagem comprova esse fato com expressões tais como desabafar pelo pranto, desabafar através de um acesso de cólera, esvair-se em cólera.
Que o afeto seja do corpo, Lacan retoma isso também de Freud. Lacan diz que o corpo é o “lugar do Outro”, é o lugar onde o simbólico toma corpo para ali se incorporar, mas esse lugar tem por propriedade o gozo (2003, p. 405).
“Com efeito, Lacan considera que nenhum afeto e nenhuma paixão, da angústia à cólera, pode ser compreendido sem a relação ao significante” (Boletim OCI, n0 0, Argumento, 2019), portanto, será só a partir da língua que poderemos distinguir cólera e ódio, cólera e violência, cólera e indignação, enquanto possíveis inscrições de gozo e de subtração de gozo, no qual a manifestação de cada um deles se insere em uma rede particular e não antecipável de sentidos (VIEIRA, 2001, p. 190/191).
Cólera e violência
Até que ponto a cólera pode se diferenciar da violência?
A cólera pode se manifestar como desejo de vingança: desprezo, querela, insulto, blasfêmia; passagem ao ato. Nesse caso, se tomarmos a diferenciação entre ‘intenção agressiva’ e ‘tendência à agressão’, presentes no texto de Lacan “Agressividade em psicanálise” (1948), a cólera se situa no registro simbólico da “intenção agressiva”, ou seja, supõe um querer dizer, tem a possiblidade de ser interpretada, indicando, assim, a incidência do recalque. Ao contrário, na “tendência agressiva” não há uma articulação significante, a interpretação permanece sem efeito e a pulsão aparece como pura pulsão de morte (LACADÉE, 2018, s/p).
Contudo, a cólera como disrupção do real do gozo e necessariamente vinculada ao significante, ao diferenciá-la da violência, nos leva a constatar que a violência pode ser a consequência da cólera, na medida “em que a separação com o Outro pode levar a um curto circuito onde a palavra falta ao discurso” (Boletim OCI, n0 0, 2019).
Para Laurent (2018), o termo disrupção é um sinônimo da efração, ou seja, o que constitui o gozo na homeostase do corpo, fundamento da repetição do Um. Nos casos aos quais temos acesso pela análise, seu modo de entrada (do gozo) é sempre a efração, a ruptura, “a disrupção em relação a uma ordem preliminar feita da rotina do discurso pelo qual mantêm as significações” (LAURENT, 2018, p. 52).
Cólera e ódio
Se na cólera temos a crença no Outro, o ódio, por sua vez, enquanto uma das três paixões do ser, é estabelecido como rechaço, expulsão do Outro, constituindo o real como o que subsiste fora da simbolização. Com efeito, o ódio, tanto quanto o amor e a ignorância, é uma via na qual o ser pode se ancorar negando o ser do outro, e, entre as três paixões, o ódio é o que se refere ao real de forma mais evidente.
Se o amor aspira ao desenvolvimento do ser do outro, o ódio quer o contrário, seja o seu rebaixamento, seja a sua desorientação, seu desvio, seu delírio, sua negação detalhada, sua subversão (LACAN, 1953-1954, p. 360). O ódio, como a forma mais primitiva de afeto, corresponde ao desejo de morte nutrido pelo sujeito em relação ao rival do amor. “Odeia-se no Outro sua maneira particular de gozar, justamente porque não é a minha maneira, ou porque implica na subtração da minha maneira de gozar” (MILLER, 2016, s/p).
Cólera e indignação
Ao dizermos que o sujeito está indignado, não estamos necessariamente dizendo que ele é violento, tampouco tomado pelo ódio ou pela cólera. Diante daquilo que vacila no simbólico, a indignação é um afeto que surge frente a uma situação que parece injusta, inaceitável, impossível para o sujeito suportar.
Se, por um lado, a indignação abala o núcleo do ser diante do rechaço da singularidade do sujeito, por outro lado, a dignidade irá consistir em um princípio ético orientador de uma psicanálise. Nesse sentido, poderíamos pensar na indignação como um tratamento para a cólera?
Assim, no contexto dos afetos, sabemos que não é possível supor qualquer distinção fenomênica para cada um deles. O ódio, a cólera e a indignação não se manifestam puramente por um ou outro correlativo orgânico ou fisiológico, nem por meio de um sentimento ou outro. O ódio, a cólera e a indignação, como três significantes e como modo de gozo do corpo desvinculado do simbólico quando a palavra vacila, se traduzem em atos nos quais “os seres falantes tentam escrever com seus corpos” (PACHECO, 2019, s/p).