SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA
Analista praticante, membro da EBP/AMP
sandra_espinha@uol.com.br
Resumo: O texto é um comentário do trabalho apresentado por Suzana Faleiro Barroso no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças do IPSM-MG. Ele faz parte da pesquisa desenvolvida em torno do tema “O falasser político: a criança e seus pais” e discorre sobre o que se revela nas novas configurações familiares como sendo a parte que retorna a cada falasser para fazer existir a função significante da família no lugar onde se impõe sua função de gozo. Trata-se de abordar a família a partir do real — a partir do Um do gozo no qual a civilização atual está imersa — e demonstrar com fragmentos clínicos como a psicanálise permite à criança separar-se do lugar de objeto para reinventar sua família frente à desordem simbólica que caracteriza a época atual e em oposição aos discursos de remediação cognitiva e comportamental que não levam em conta esse real.
Palavras-chave: famílias contemporâneas; o real da família; criança-objeto a liberado; equívoco.
“It’s all backwards”: the child, his parents and the way of misunderstanding – commentary
Abstracts: This text is a commentary on the work presented by Suzana Faleiro Barroso at the Center for Research in Psychoanalysis with Children at IPSM-MG and it is part of the research developed on the theme “The political parlêtre: the child and its parents”. It discusses that what is revealed in the new family configurations is what returns to each parlêtre in an attempt to make the signifier function of the family exist where the function of jouissance is imposed. It is about approaching the family from the real — from the One of jouissance in which current civilization is immersed — and demonstrating with clinical fragments how psychoanalysis allows the child to separate from the place of object to reinvent their family in face of the symbolic disorder that characterizes the current era and in opposition to cognitive and behavioral remediation discourses that do not take this real into account.
Keywords: contemporary families; the real of the family; child-liberated object a; misunderstanding.
O inconsciente provém do laço social
Sobre a proposição lacaniana “o inconsciente é a política”, Miller esclarece que o inconsciente provém do laço social porque a relação sexual não existe (MILLER, 2011, p. 5). Segundo ele, o que se antecipa nessa proposição é a noção de discurso como laço social, como o que ordena a impossível simbolização do gozo humano. E é porque a psicanálise é um laço social, um tratamento do gozo, que ela se encontra necessariamente implicada na dimensão do político. Nela, a separação entre o individual e o coletivo deixa de existir como oposição, tratando-se não de sair do campo do privado para o público, mas de “localizar o político no campo do privado” (BARROS, 2018, p. 36).
A cada época, “a máquina original que coloca em cena o sujeito da civilização no momento atual (…) também condiciona a experiência analítica” (MILLER, 2011, p. 3). Aqui, nosso interesse é examinar, a partir dos fundamentos da psicanálise, o lugar da criança nas novas configurações familiares para buscar responder à pergunta que fizemos: o que pode a psicanálise?
O real da família
Para Éric Laurent, a parentalidade, neologismo introduzido no final do século XX para se referir a todas as classes de família, e não falar de pai e de mãe, designa algo que concerne ao lado real da família. “A família atual — diz ele — é muito mais real do que simbólica” (LAURENT, 2018, p. 9, tradução nossa). Esse caráter real da família, “extremamente opaco e misterioso”, que hoje não deixa evidente quem é o pai e quem é a mãe, é também o que nos impede de reduzi-la a pai e mãe (BROWN, 2021).
Em sua intervenção nas Jornadas da École de la Cause Freudienne, de 2005, Miller destaca a lucidez de Lacan que, em “Nota sobre a criança”, constata “o fracasso das utopias comunitárias” (LACAN, 1969/2003, p. 369), em sua pretensão de prescindir da família, e a função de resíduo que esta tem na evolução das sociedades. Lacan diz que é precisamente por se encontrar no estado de resíduo, no estado de pequeno a, que a família conjugal vai se manter, devendo-se sua resistência ao caráter irredutível da transmissão de um desejo não anônimo, que é constituinte para o sujeito.
As utopias da época não impediram a existência de algo de irredutível, de real, nas posições de pai e de mãe (LAURENT, 2007, p. 41). Lacan distingue o realismo da estrutura da família como resíduo irredutível dos semblantes que o revestem, ou seja, “da incrível diversidade sociológica das famílias atuais” (ROY, 2021, p. 2). Os marcos estruturais que Lacan identificou desde os “Complexos familiares” guardam seu valor no sentido do Desejo da mãe e da função do pai, dois princípios que não se superpõem à diferença dos sexos.
Nenhuma nostalgia em Lacan, que diz não se afligir com o afrouxamento dos laços de família (LACAN, 1938/2003, p. 66) nem ter fascinação pelo múltiplo dos costumes, mas “a consideração da família como matriz do laço social” (ALBERTI, 2021, p. 17, tradução nossa). Miller afirma que o laço familiar é uma forma particular de laço social, podendo-se dizer que é o único laço que se inscreve em uma relação sonhada como natural, embora seja completamente desnaturalizada (MILLER, 2005, n.p.). A família é um modo de tratamento do gozo.
Unidos pelo mal-entendido do gozo
O declínio do Pai e a ascensão do objeto a ao Zênite social caracteriza a nossa época pela generalização do não-todo cujo corolário é a inexistência do Outro, visto que esse regime implica a impossibilidade da construção de um universal. O reino do gozo não favorece a relação com o Outro, mas a sua ruptura. Ele não favorece a dimensão da filiação e da transmissão, mas o exercício do gozo pulsional do Um.
A família atual entrou em uma lógica do não-todo.
“Mais do que nunca, as famílias se reorganizam hoje seguindo as derivas do real da não relação sexual e de uma economia do gozo que não se subordina a um significante em particular, seja ao do Nome do Pai ou a qualquer outro que quisesse substituí-lo” (BASSOLS, 2016, n.p.).
Elas seguem a lógica da equivalência entre significantes mestres que variam de acordo com as condições de gozo e que, como afirma Roy, “fundam uma relação direta e sem mediação da criança com os pais, na medida em que (…) realizam um aglomerado de corpos em presença e concentram a atenção e a libido de todos” (ROY, 2021, p. 1). Os vínculos familiares, em suas múltiplas formas atuais de união, são baseados na liberdade do gozo, liberados da diferença sexual e constituídos segundo formas singulares de gozo sintomático que não respondem ao modelo edipiano. Aqui, é o além do Édipo que dá uma forma lógica a essas novas configurações familiares.
Lacan colocou no coração do casal não uma diferença, mas o mal-entendido entre os sexos e a solidão do gozo de cada um. O que se revela na variedade das formas da família atual e se encontrava velado nas sociedades patriarcais, permanecendo irredutível, é o traumatismo do gozo que está no cerne de toda formação humana (LAURENT, 2007, p. 37). O segredo de toda família reside no campo do gozo, seja ela organizada ou não pelas leis clássicas do parentesco. Para Lacan, a família tem sua origem no mal-entendido e está essencialmente unida por um segredo sobre o gozo (MILLER, 2007, n.p.). A família é uma resposta à inexistência da relação sexual e constitui-se como um sistema de semblantes que tentam ordenar o gozo, refreá-lo, velá-lo.
É no segredo do gozo familiar que se encontra o fundamento da família e se revela o que há de indissociável entre família e crise, no que Daniel Roy nos convida para mergulhar ao fazer da crise “o novo princípio da família pós-moderna” (ROY, 2021, p. 1). Trata-se de um convite para abordar a família a partir do real, a partir do Um do gozo no qual a civilização atual está imersa e na qual, provindos da tecnologia, “os objetos mais-de-gozar assumiram a autoridade e fundam a lei para todas as formas de ideal” (ROY, 2001, p. 2).
“Tá tudo ao contrário” — a criança como objeto a liberado
Miller diz que, na contemporaneidade, “a ordem simbólica é reconhecida como um sistema de semblantes que não comanda o real, mas lhe é subordinada” (MILLER, 2016, p. 31). O mesmo se revela na família atual, que se apresenta como “um artifício subordinado ao real da inexistência da relação entre os sexos. (…) Os termos se inverteram: se antes a família tentava ordenar o real do gozo, o real do gozo reordena hoje a família” (BASSOLS, 2016, n.p.).
O que se revela nas novas configurações familiares é que a inscrição da família no simbólico “é a parte que retorna a cada um dos falasseres, na medida em que eles fazem — ou não — existir a função significante da família, ali onde se impõe sua função de gozo” (ROY, 2021, p. 3). Hoje, o que prevalece não são os significantes pai e mãe, mas o objeto criança.
Segundo Éric Laurent, a partir da “Nota sobre a criança”, quando Lacan formula que a criança realiza a presença do objeto a na fantasia materna, o ponto de partida para ler a clínica da criança nos laços familiares não é mais a relação da criança com a mãe ou com o casal parental, organizada em torno da falta e do desejo, mas aquela da criança “capturada não em um Ideal, mas no gozo, no seu e no de seus pais” (LAURENT, 2007, p. 44). Laurent esclarece que a presença da criança satura a falta da mãe e há realização não do objeto que responde à angústia de castração como operação simbólica, mas do objeto que responde à angústia ligada à privação como operação real, objeto que aparece no real e que designa o ser do sujeito no ponto em que ele é ausência de representação (LAURENT, 2018, p. 55).
É a partir desse ponto que, em RSI, as funções do pai e da mãe no laço com o objeto a passarão a ser referidas por Lacan ao gozo em jogo no encontro sexual. O drama familiar será retomado a partir do lugar de tampão do objeto a “liberado” pelo significante do Ⱥ, isto é, liberado pela estrutura. A criança ocupa por excelência esse lugar. “A criança é o objeto a, vem no lugar do objeto a, e é a partir disso que a família se estrutura” (LAURENT, 2007, p. 44). A família passa a ser pensada não mais a partir das estruturas edípicas da metáfora paterna, não mais a partir do Outro, mas do Um. O que passa a importar é a criança diante desse furo no real e a relação da criança com o corpo. Que o Outro não exista, isso não impede que ele tenha um corpo, corpo falante e substância gozante. Nos sintomas atuais das crianças, trata-se de ler sua dificuldade “para se separar do lugar de resto de um discurso do mestre ou do gozo que a produziu” (DRUMMOND, 2007, p. 4).
Os fragmentos clínicos
Os fragmentos de caso apresentados por Suzana Barroso evidenciam a insistência do real do qual Lacan diz que depende o analista, que tem por missão contrariá-lo (LACAN, 1974/2011, p.19). O real do qual as novas utopias da família tentam dar conta através da ciência e do direito retorna, como nos lembra Roy, na “criança terrível”, cujo corpo se recusa a ser mortificado por esses saberes. Observou-se, na maioria dos casos, a colocação em jogo do corpo da criança: na agitação de Antônio, na agressividade incontida de Fernando, no sintoma somático do caso citado por Maleval.
A agitação de Antônio e sua “resistência à autoridade” respondem ao sintomático da estrutura familiar revelando a verdade do casal, da qual seus pais nada querem saber. Ao aludir a essa verdade, a partir da fala da criança, a analista recebe dela a sua revelação: “Tá tudo ao contrário”. A chance de tomar a palavra e ser escutada, de separar-se do lugar de objeto do gozo, seu e de seus pais, e de surgir como sujeito foi-lhe, no entanto, retirada. Sua mãe preferiu trocar a fenda aberta pelo real do sintoma da criança pela crença na suposta “autoridade da ciência”, que, ao contrário da psicanálise, foraclui o sujeito, fazendo-o se calar.
A sigla TOD (transtorno opositor do desenvolvimento), recebida do psiquiatra, é um entre os nomes que se proliferam neste mundo do Outro que não existe e transforma o sintoma em um transtorno para cujo tratamento é indicada a prática da fala autoritária e protocolar das TCCs. Para a psicanálise, os sintomas não são transtornos, não são distúrbios ou desordens, eles são signos da não-relação sexual, são signos de um real sem lei e, pois, de um impossível que faz objeção à onipotência do discurso da ciência (MILLER, 2005, p. 16), para a qual a escrita do real pela letra é possível. Se a psicanálise, como a ciência, trabalha com a materialidade da letra, excluindo o sentido, a escrita do real está nela presente sob a forma do impossível (BROUSSE, 2018, p. 86). A prática lacaniana tem como princípio o “isso falha”, que manifesta a relação com um impossível que a contingência demonstra. O objeto a comanda o “isso falha” na ordem sexual, e é nesse lugar de objeto real das ficções atuais da família que a criança faz obstáculo a elas (LAURENT, 2018, p. 76).
“Tá tudo ao contrário” revela o que é de estrutura para todos, ou seja, que é o sujeito que tem o ônus de construir sua família, verdade recalcada pela estrutura tradicional da experiência humana. O segredo do gozo dos pais sempre fez enigma para o sujeito e é desse real que provêm as ficções que a criança tecerá para fazer borda a esse buraco da estrutura. “A família é (…) uma criação que se edifica do recalque” (VINCIGUERRA, 2016, p. 3).
É ainda com sua “resistência às autoridades” que Antônio faz objeção a esse afã contemporâneo de tomar a criança como objeto de cuidados, desconsiderando suas particularidades. Ao tentar igualar-se ao seu filho para lhe explicar o que não se deve fazer, a atitude de seu pai reflete uma tendência atual de ignorar as particularidades do mundo da infância e apagar as diferenças entre adultos e crianças. Essa falsa igualdade substitui a hierarquia implicada no desejo. Ao definir o pai como vetor da encarnação da Lei no desejo, o pai é concebido por Lacan como uma função que põe um freio ao gozo, não apenas estabelecendo uma proibição, mas autorizando uma via alternativa ao empuxo ao gozo mortífero, uma relação confiável com o gozo distinta da permissividade e do hedonismo contemporâneos (COCCOZ, 2015, n.p.). A autoridade se funda inicialmente sobre o que é autorizado, e não sobre o proibido (LAURENT, 2007, p. 43).
Esse caso revela ainda as consequências do novo estatuto da psicanálise no campo cultural atual que implica o manejo de uma transferência que não está mais estabelecida de entrada, como antes, e onde a destituição do saber e o mal-entendido do gozo encontram-se imediatamente em jogo. A transferência passa a ser o pivô da suposição de saber, uma vez que é o amor que pode fazer mediação entre os Uns-sozinhos e fazer existir o inconsciente como saber (MILLER, 2005, p. 18).
Fernando, por sua vez, também nos remete a uma clínica da criança da era pós-patriarcal. A “agressividade incontida” da criança, em casa e na escola, também revela a verdade do drama familiar: a insuficiência da função paterna para separá-la do gozo opaco de sua mãe, “que se esmera em protegê-la da agressividade paterna”. A mãe chora junto com o filho quando se trata de se separar dele. O que a exaspera nessa “criança terrível” é o ato ao qual seu filho recorre para aí introduzir uma falta e denunciar o quanto ela se protege ao protegê-lo.
Miller, ao abordar a violência na criança como uma satisfação da própria pulsão de morte, como um gozo em si mesma, esclarece que é apenas em um segundo momento que se buscará a causa ou o mais-de-gozar que é o fundamento do desejo de destruir e que “se encontra, de um modo geral, numa falha do processo de recalcamento ou, em termos edípicos, num defeito da metáfora paterna” (MILLER, 2017, p. 28).
Já em seu primeiro encontro, a analista abre para Fernando a possibilidade de essa criança “decifrar as coordenadas do lugar que ela ocupa para seus pais (…) com os significantes que ela recolhe [e] que assumem o valor singular de gozo pulsional que os lastreia” (ROY, 2021, p. 3). Sem atacá-la de frente, como nas TCCs, a violência da criança é acolhida pela analista “por meio da suavidade — como aconselha Miller — sem renunciar a manejar (…) uma contra violência simbólica” (MILLER, 2017, p. 30). Atenta ao acontecimento de corpo na criança e levando em conta o corpo do Outro, seu regime de gozo, a analista sustenta a palavra como operadora essencial do recalque e propõe, à “poção de loucura” feita pelo pai, que a criança diz ter ingerido, uma “poção contra-loucura”, um S2 que faz surgir o efeito-sujeito e mostra que a violência dessa criança é uma violência simbolizável.
A entrada da criança no discurso analítico faz da analista uma presença que não é da família, mas que possibilita à criança a construção de uma, uma vez que partimos do ponto de vista de que “não existe ser falante que não seja de uma família” (ROY, 2021, p. 4). O efeito da entrada nesse novo discurso é a organização do campo da metáfora, que localiza o gozo fora do corpo com os recursos de que a criança dispõe. A aposta da analista no inconsciente mostra o efeito surpreendente da significação fálica que surge de uma construção espontânea da criança: a substituição da “poção de loucura” pela “poção de bravura” do pai, com cujo semblante ela busca se identificar para escapar da voracidade do Outro materno. “Não há família tão bizarra, constelação familiar tão desregulada, tão distante do paradigma pequeno burguês, que o gênio do inconsciente não possa retificar pelo símbolo, pela imagem, pelo escrito. (…) O pai da palavra suplanta o pai de família” (COTTET, 2006, n.p., tradução nossa).
Para colocar um pouco de ordem na desordem familiar que invade seu corpo e contra a qual ele se revolta, Fernando voltará a recorrer à “poção-contra” oferecida pela analista para tomar distância do significante “agressivo” que, em suas encenações, ele mostra à analista como lhe é injetado goela abaixo pelo Outro.
O sintoma fóbico, presente nos fragmentos dos casos conduzidos por Maleval e Mariage, é também um sintoma relacionado à carência paterna frente ao encontro com a castração do Outro materno. Lacan o analisa como uma suplência significante à carência paterna, mas também na vertente do objeto a e dos seus efeitos de intrusão no campo do imaginário.
Se o caso apresentado por Maleval demonstra a intrusão do gozo no imaginário do corpo pelo sintoma somático como resposta à rejeição do simbólico promovida pelas TCCs, no caso analisado por Véronique Mariage, o efeito retorna no nível significante da “fala TCC” da criança. Na perspectiva das TCCs, a escuta protocolar e de puro semblante implica uma recusa do sintoma, seja como sentido, seja como gozo. Do lado do sentido, há uma acolhida, mas também sua homogeneização; do lado do real do gozo, o sintoma é suprimido por sua redução ao “distúrbio”. Como diz Suzana Barroso, os diagnósticos catalogados pelas TCCs resultam no congelamento da lógica binária do significante e no incentivo ao império do Um (BARROSO, 22/06/2022).
Uma análise, ao contrário, se inaugura pela instalação do inconsciente transferencial, pelo laço associativo de dois significantes S1 → S2 a fim de percorrer os labirintos do gozo no qual o sintoma está enlaçado e chegar às relações do sujeito com os objetos de seu gozo. O caso de Florette, conduzido por Mariage, mostra como a oferta da palavra se faz passar do gozo ao desejo. O medo da mordida do cachorro acaba por revelar a marca do desejo do sujeito. Como em Hans, o encontro com a analista ofereceu-lhe a possibilidade de aceder ao saber inconsciente. O encontro com Freud, que comunica a Hans o que seu inconsciente já havia interpretado, traduzindo “medo de cavalo” por “medo do pai”, permite a invenção de uma ficção excepcional por meio da qual ele constrói um objeto destacável do corpo que o dispensa de sua fobia. Hans se separa do gozo veiculado pelo significante cavalo, que iterava sem o representar e o aprisionava nos limites estreitos impostos pelo sintoma. Em torno desse significante, Hans desenvolve “todas as permutações possíveis de um número limitado de significantes”, pelas quais a conversão da mordida do cavalo em desmontagem da banheira representa o declínio da mãe como uma potência opaca, ameaçante e sem lei. Essa ficção dá um lugar a Hans e constitui uma solução que o separa do gozo mortífero de sua fobia.
Supor um sentido ao sintoma sob a forma de um saber alojado no analista não é uma escuta de puro semblante, mas leva em conta que o sintoma é uma resposta ao encontro traumático do sujeito com um real excluído do sentido: o real do sexo. O sintoma inclui a relação a um furo no saber e a invenção de saber que tenta preenchê-lo.
Esses fragmentos clínicos nos remetem ao “infamiliar” no interior da família, isto é, a um além do Édipo, além do falo, além do recalque: ao não-todo do gozo feminino, que não é fora do corpo, mas que se produz no corpo sem fazer Todo e faz do corpo o Outro para o falasser, testemunho da inquietante estranheza de um gozo que habita o corpo (MILLER, 1998, p. 108). Daniel Roy nos esclarece a respeito do poder de angústia do objeto a quando ele se encarna na “criança-terrível”, cujas manifestações sintomáticas questionam cada um dos pais sobre “a verdade do par parental” e exasperam o lugar que um filho pode ocupar como objeto a na fantasia de cada um. Ele diz que a família como um tratamento do gozo dos corpos falantes não responde a nenhum ideal, mas é da ordem de uma “religião-privada” que ignoramos e da qual “temos tudo a aprender sobre as regras que ali se aplicam, os ritos que ali se celebram, os pequenos deuses que ali reinam” (ROY, 2021, p.4).
Para concluir
A desvalorização do pai, mais do que na crise da sociedade atual que a revela, está inscrita na própria estrutura do simbólico. No final de seu ensino, Lacan “dirá que o pai é um sinthoma e que o Édipo não poderia dar conta da sexualidade feminina” (MILLER, 2013, p. 9). A partir do Seminário 10, a angústia não é mais vinculada por Lacan ao falo ameaçado, mas à maneira como os objetos se separam do corpo. Laurent diz que essa separação é que o permite que se estabeleça uma significação fálica sem passar pela metáfora paterna e indica uma mudança no horizonte clínico do que se faz com uma criança que tem que elaborar a significação fálica quando ela é instável, inexistente ou pouco existente. O que determina o valor fálico, esclarece Laurent, é o estabelecimento das versões do objeto a que a criança tem, as separações que ela pôde fazer de seus objetos e o valor de objeto a que ela tem para a mãe (LAURENT, 2018, p. 11).
Os fragmentos de caso mostram a dificuldade da criança — frente aos delírios familiares da hipermodernidade, que sonham com a universalização do gozo — para se separar do lugar de resto do gozo que a produziu. Eles são também testemunhos do trabalho do analista para desalojar a criança desse lugar de condensador do gozo da família e fazer surgir o sujeito.
A psicanálise permite à criança reinventar sua família. Sua aposta no saber inconsciente demonstra que ele se mostra capaz de reparar as disfunções presentes nas novas formas de fazer família. O inconsciente retifica, inventa famílias fictícias, simboliza um real sem lei. Sua eficácia simbólica, porém, só se evidencia com a condição de que o analista intervenha a partir do que se desnuda na desordem simbólica que caracteriza nossa época: o real de lalíngua, a partir do qual uma ordem simbólica pode se restabelecer. A entrada da criança no discurso analítico organiza o campo da metáfora para restabelecer, a partir do que lalíngua recolhe da parte elaborável do gozo dos pais, as funções simbólicas que permitem localizar o gozo fora do corpo e se “opor a que seja o corpo da criança que corresponda ao objeto a” (LACAN, 1967/2003, p. 366). A metaforização do gozo na língua permite uma variedade de soluções que prescindem da função paterna e se fazem com os recursos do sintoma em uma articulação direta entre significante e gozo.
Frente à hipermodernidade e seus efeitos, Laurent nos orienta a navegar com a bússola do objeto a, que leva em conta a reconfiguração da família e separa todas as tentativas de restabelecer as crenças no pai. A posição do analista, diz Laurent, é a de proteger a criança dos delírios familiares, das paixões que habitam os novos laços familiares (LAURENT, 2018, p. 79).