Corpos (des) amarrados
Silvia Coutinho Souza Lima
Psicanalista
Ex-aluna do Curso de Psicanálise do IPSM/MG
silviacslpsi@gmail.com
Resumo: Interroga-se, neste artigo, o que faz o sujeito eleger a via das intervenções estéticas no corpo de maneira radical e ininterrupta. A autora traz possíveis elementos que podem contribuir para esse modo de vida e cita a história de uma influenciadora digital que é um exemplo para pensar qual corpo estaria aí em jogo.
Palavras-chave: corpo; intervenções estéticas; excesso.
(UN) TIED BODIES
Abstract: In this article, the question is raised about what leads individuals to choose the path of radical and uninterrupted aesthetic interventions on the body. The author presents possible elements that may contribute to this lifestyle and cites the story of a digital influencer as an example to contemplate which body might be at stake.
Keywords: body; aesthetics interventions; excess.
Circulando em um shopping center, notei a instalação de uma clínica de estética. Na entrada, observo a seguinte pergunta: “o que te incomoda hoje?” – uma interrogação que convida as pessoas a se depararem com seus incômodos no corpo e se dirigirem a esse local que faz a oferta das supostas soluções. Dessa forma, esse estabelecimento, estruturado para a venda de bens materiais ou serviços como cinema, atrações de lazer, agência de viagem e loja de câmbio, amplia a oferta em relação ao corpo, para além das vestimentas. As academias já são vistas, há muitos anos, como local de prática de exercícios e espaço de saúde. Agora, as portas são abertas para essas clínicas de estética, que instigam o olhar do sujeito para sua imagem, sua adequação em relação ao império da beleza e ofertam seus serviços enquanto as pessoas circulam nesse ambiente, já que, na lógica do mercado de consumo, não há espaço para pensar, refletir, fazer escolhas, prescindir.
Nas redes sociais, predominam imagens e vídeos curtos, denominados shorts, com explicações de demonstrações das mais variadas intervenções para se obter um corpo esculpido sem nenhuma lacuna para a vida real. Gordura, flacidez, cicatriz, estria e celulite são vilões que precisam ser combatidos, seja através de procedimentos estéticos e cirurgias plásticas, seja através de exercícios físicos intensos ou medicamentos para emagrecer. Respostas rápidas e universais para resolver os incômodos relativos ao corpo, sem espaço para a solução do um a um, para o long way de lidar com impossível de cada corpo falante.
Outra prática que chama a atenção é o uso do phármakon da moda: Ozempic. Esse medicamento é aprovado pela Anvisa para o tratamento de diabetes tipo 2, mas está sendo amplamente utilizado para fins de emagrecimento, de maneira off-label. A perda de peso significativa é alcançada em poucos dias a partir do estímulo da produção de insulina e a consequente diminuição de apetite. Trata-se, portanto, de uma saída radical para diminuir a fome, em vez de o sujeito se implicar com sua fome, seja ela qual for. O consumo está tão significativo que, em junho de 2023, a mídia divulgou o comunicado do fabricante sobre a provável ausência de disponibilidade do medicamento até o final do ano, devido à demanda maior do que o previsto.
O mercado de cirurgias plásticas também cresce exponencialmente. Em 2019, O Brasil foi o país com o maior número de cirurgias plásticas no mundo. No ano seguinte, o país ficou em segundo lugar, seguindo o campeão Estados Unidos. Um dado importante é que cresceu muito o uso das redes sociais para a divulgação do trabalho dos cirurgiões e do depoimento das influencers, que fazem uso dessa mídia para divulgar produtos e serviços que propõem alterações corporais.
Diante desse cenário de excessos de intervenções estéticas, medicamentosas e de cirurgias plásticas, fico com as seguintes questões: o que conduz os sujeitos para essas escolhas?; ainda que a amarração de cada corpo seja tecida de forma radicalmente singular para cada falasser, pode-se pensar em algum estatuto comum que contribua para essa via?; esse modo de vida investido de forma exacerbada no corpo aponta para uma defesa?
Lacan (1975-76/2007, p. 64), no Seminário 23, afirma que “o falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante”. Dessa forma, Lacan fala da crença desse pertencimento do corpo, do amor-próprio que estabelece fatos na mentalidade do falasser e opera no imaginário operando uma borda, um suporte. O sujeito então se apoia nessa ilusão da unidade do corpo e cria suas representações, seja sobre sua imagem ou sobre mundo.
Outro aspecto importante para se pensar o estatuto do corpo refere-se às zonas erógenas, que estão abertas no organismo e permitem a integração da imagem do corpo e do corpo fragmentado. Assim, as experiências de gozo marcadas na boca, ânus, falo, ouvidos e olhos atuam como grampos, objetos a que ancoram a relação do sujeito com o corpo. Brousse (2014, p. 10) comenta que “os objetos a são objetos que, quando estão inseridos no vaso, que é a nossa imagem do corpo, florescem, mas quando estão fora dela, provocam angústia ou horror”. A autora aponta o lugar da beleza na relação do sujeito com o corpo. Os objetos a, localizados na singularidade da imagem do sujeito, possuem um valor fálico, e o belo opera como suporte para integrá-los e não se reduzirem ao caos do organismo.
Interessante pensar então que a ilusão da unidade, a apropriação, o movimento da busca pela beleza são fundamentais para que o sujeito contorne sua imagem corporal e tenha uma consistência para imprimir suas experiências de gozo e uma borda para se relacionar com outros corpos. A questão norteadora aqui é o que faz com que esse ponto, que é necessário para fazer um véu ao real do corpo, tome o sujeito de tal forma que ele faz uma tentativa de se organizar a partir das constantes alterações no corpo.
E o que pensar sobre os corpos nos tempos contemporâneos? Tempo do saber científico, em que as palavras da família, da religião e da tradição – que ofertavam ideais, significantes, ancoragem e olhar para esses corpos – não operam mais? Brousse (2014, p. 13) faz um paralelo do avanço científico com o avanço da angústia, da substituição do Ideal do Eu para o eu ideal :
“existe uma espécie de extensão do império das imagens que não são tão reguladas pelo mundo do discurso […] mas sim pelo império da escritura científica, nos processos para modificar o eu ideal, como por exemplo operar o nariz, aumentar ou diminuir os seios, modificar as rugas, etc.”.
Essa decadência do Ideal do Eu implica então na decadência da linguagem sobre o corpo e sobre o gozo do corpo, o corpo não é visto e desvela-se de maneira fragmentada, a unidade corporal não opera.
O sujeito encontraria, assim, nas ofertas das redes sociais, clínicas, academias e medicamentos, uma maneira de se apropriar desse corpo? Ficaria na busca da beleza constante como anteparo para o caos do corpo? O corpo que sai fora a todo instante, conforme postulado por Lacan, nesse cenário contemporâneo de menos consistência, sairia ainda mais, e o falasser buscaria então incessantemente essas saídas para não se deparar com sua fragmentação?
Essas intervenções constantes de modificações corporais podem ser pensadas, portanto, como uma defesa dos sujeitos diante do corpo, que é esburacado e caótico, não garante a relação sexual e é marcado por modos de gozo. Além disso, é interessante pensar na particularidade do corpo nos tempos atuais da ciência e da falha do Ideal, com o impasse na articulação do corpo que está fora com o corpo imaginário.
E como pensar o estatuto do corpo nas diferentes estruturas clínicas? Miller (2010), no texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, fala da tripla externalidade que configura a desordem na junção mais íntima do sentimento de vida e, portanto, a categoria clínica da psicose ordinária. A externalidade social, que se define pela impotência na relação com a função social, a externalidade subjetiva, marcada pela fixidez no índice de vazio, e, por fim, a externalidade corporal. Nessa última, o sujeito vive a iminência do corpo se desfazer e inventa laços artificias que possam prender seu corpo a ele mesmo. A pista fundamental para diferenciar do corpo da neurose seria a infinitização da falha presente na relação com o corpo. O neurótico tem uma estranheza com o corpo, mas está submetido à restrição, ao limite. Dessa forma, o fato de alguns sujeitos que recorrerem à prática ininterrupta de intervenções no corpo pode apontar para essa externalidade do corpo na psicose ordinária? Nesse contexto contemporâneo, o limite e a restrição citados por Miller como pontos de diferença do corpo da neurose estariam mais embaçados e menos nítidos? Essa tentativa infinita do falasser de prender seu corpo estaria presente de maneira mais expressiva?
Tive conhecimento de uma influenciadora canadense que ficou famosa nas redes sociais por suas escolhas contínuas e extremas de cirurgias plásticas. Essa mulher aponta em sua história aspectos que podem ser interrogados como paradigmáticos desses questionamentos. Ela se nomeia Mary Magdalene, tal como a personagem bíblica, que segundo ela é uma prostituta. Está com 25 anos, seu corpo é completamente tatuado e a lista de procedimentos estéticos é imensa: seios pesando 5kg cada, nádegas enormes, cintura e nariz finíssimos, lábios super grossos e a tentativa de ter a vagina mais gorda do mundo. Suas imagens causam espanto, é um exemplo muito extremo de uma falha na apropriação do corpo e na tentativa de tê-lo a partir das modificações, sem um ponto de basta. Neste ano, após uma prótese de seio explodir, ela opta por reduzir o tamanho e relata que vai retirar um pouco de seus preenchimentos estéticos. Atualmente, possui três contas de Instagram, sendo que em uma se apresenta com o nome Denise (que parece ser seu nome verdadeiro) e outra, com foco artístico, na qual expõe suas produções e utiliza a frase “a arte me salvou”. Trago aqui alguns trechos retirados e traduzidos de sua entrevista no podcast “No Jumper” em setembro de 2021:
Minha família era missionária e mudava muito, já morei em acampamento, trailer e floresta. Por isso minha personalidade é muito estranha. Não me sinto canadense, mexicana nem americana, sou apenas Mary[…] eu posso continuar crescendo, vou continuar crescendo até eu morrer. Eu não me importo, para mim não há um ponto final […] meu estilo é sempre aleatório, confuso, depende do dia […] ninguém sabe quem eu sou, tenho uma vida dupla… quando estou em casa sou como a Madre Teresa, pintando e com os meus animais, quando estou viajando estou sempre bêbada… vocês só veem esse lado […] gosto da estética das cirurgias e de parecer sexy… gosto de parecer slutty, trashy , cheap, shit […] Sou uma fake slut, não saio por aí transando […] preciso morar lá, isolada, para descobrir quem eu sou, se eu morar aqui (referindo-se ao local da entrevista, Los Angeles) tenho medo de me perder […] para mim é como cortar o cabelo (falando sobre as cirurgias), tenho dores na coluna mas acostumei… Eu gosto e não preciso que ninguém entenda… sou lógica, é muito simples, faço porque adoro e posso pagar… se eu não gostar mais é só tirar… não é tão sério, as pessoas complicam demais… apenas faça o que você quer […] sou apenas Mary e eu faço que a Mary quer fazer.
Mary relata que é a única filha mulher e tem três irmãos mais velhos. Sua família era missionária, muito religiosa e extremamente rígida. Fala que esse contexto contribuiu para ela se rebelar. Iniciou com as modificações aos 21 anos, época em que trabalhava como stripper e acompanhante sexual. Relata que estava em uma fase depressiva e pensava que iria ficar presa a essa vida para sempre. A via das cirurgias plásticas lhe possibilitou uma nova vida e ela se diz muito grata por isso. Ao ser questionada sobre seus objetivos, responde que quer viver da sua arte (inclusive seu site atual fala que em breve sua loja de arte estará aberta), ter um santuário de animais (com os animais vivos, pois é vegetariana e tem um apego muito grande a eles) e continuar famosa na plataforma Only Fans, de conteúdo adulto. Afirma várias vezes que as pessoas a julgam pela sua imagem, mas ela é muito mais do que suas cirurgias.
Mary sinaliza assim para uma tentativa desenfreada de fazer um corpo? Suas escolhas de aumentar de maneira extrema suas zonas erógenas, como seio, bunda, boca e vagina, dizem de uma busca extrema de servir ao gozo do corpo que está mais fora do que dentro? Sua divisão entre Maria Madalena e Madre Teresa, puta e beata, pode indicar a divisão do corpo real e corpo imaginário? Morar isolada com sua arte e seus animais opera como uma tentativa de solução para sua estranheza com ela mesma e com o Outro? Fazer “o que a Mary quer” aponta para a externalidade de um corpo que opera com o imperativo do gozo? Ao falar do seu estado depressivo antes de suas mudanças no corpo e de como esse novo momento lhe trouxe certa organização, pode-se pensar que a radicalidade das cirurgias plásticas, até certo ponto tiveram um efeito de amarrar seu corpo? Seu “corpo Mary”, que lhe define, foi a solução do momento? Seu outro corpo, que antes servia ao Outro, agora passa a servir a seu gozo? Se antes ela era uma prostituta, com o novo corpo ela suporta então parecer uma?
Pode-se pensar então que o falasser, ao operar de maneira extrema essas intervenções no corpo, seja através de medicamentos e atividades físicas, seja através de procedimentos cirúrgicos e estéticos, aponta para uma maior fragilidade no trabalho de amarração de seu corpo? Essa via da busca incessante por um corpo que supostamente seja uma unidade consistente aponta para a hipótese de corpos cada vez mais desamarrados e imersos no gozo, rechaçados da palavra e operando no gozo do Um?
Cabe ao analista escutar como cada sujeito poderá tratar da elaboração do seu corpo, que, ao lhe pertencer, em alguma medida possibilita uma borda para se situar com seu gozo e não ficar totalmente submetido aos objetos a que estão fora. A orientação da psicanálise é acompanhar esses sujeitos na invenção do saber fazer com o real, considerando as amarrações singulares da clínica borromeana. Mary quase perdeu a vida em procedimentos cirúrgicos e seguiu até quase literalmente explodir. Parece que está iniciando um novo caminho de amarrar um corpo que seja diferente, corpo da Denise que é artista e que pode expressar em suas produções os buracos, o horror, os fragmentos, o impossível.