Giselle Moreira
Caros leitores,
Apresentamos a 31ª edição da revista Almanaque On-line, que tem como eixo temático “A clínica universal do delírio”, em consonância com o argumento da próxima Jornada da EBP-MG – O que há de novo nas psicoses… ainda – e do Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que acontecerá em fevereiro de 2024 sob o título Todo mundo é louco.
Os textos que compõem esta edição marcam um contraponto a uma perspectiva despatologizante que busca eliminar o real do sinthoma. A clínica universal do delírio configura, por sua vez, uma orientação política da psicanálise e parte da leitura lacaniana de que os discursos não são mais que defesas contra o real, o que permite deduzir que, nesse caso, de perto ninguém é normal[1]: “todo mundo é louco, ou seja, delirante” (LACAN, 1978/2010, p. 31).
O universal se coloca no centro da nossa temática, mas seria essa orientação um falso universal a ser lido à luz da lógica do não-todo, ou seja, do um a um?
Abrimos a revista com Trilhamentos, rubrica composta por textos que traçam uma orientação epistêmica para essas questões. De início, contamos com a aula inaugural, proferida por Sérgio Laia, que abriu as atividades do IPSM-MG neste último semestre. Seu texto procura demonstrar a contemporaneidade do relato publicado por Schreber sobre sua “doença dos nervos”, ao passo que localiza como a fraturada Ordem do Mundo por ele experimentada se realiza, em nossos dias, para todos.
Na sequência, Frederico Feu desdobra, passo a passo, como a clínica universal do delírio está sob o regime de S(Ⱥ), matema lacaniano que condensa a falta de um significante na linguagem capaz de nomear o gozo. A partir desse ponto, o autor lê o aforismo “todo mundo é louco” como concernente a uma política da psicanálise, a uma orientação geral quanto aos princípios e limites da prática analítica. Dominique Laurent localiza que a norma neurótica, constituída pela lei do pai, prevaleceu por muito tempo, mas que hoje as normas se multiplicam. A autora pondera que a metáfora paterna nunca é inteiramente realizada, o que leva a uma “subversão” das diferenças feitas até então entre neurose e psicose. Nesse sentido, o troumatisme é correlativo de uma nova definição do sintoma que constitui um avanço em uma clínica do inclassificável. O texto de Pascale Fari advém de uma discussão de caso em uma instituição e parte do silêncio embaraçado da equipe após a sua intervenção: “Ele está completamente louco nesse momento”. Fari interpreta esse silêncio localizando que a “loucura” não era mais admissível, nem mesmo no discurso psiquiátrico. O significante se tornara um tabu e, portanto, a autora se interroga quais seriam as consequências desse apagamento da loucura. Finalizando Trilhamentos, Laurent Dupont parte das considerações freudianas sobre o delírio no caso Schreber e, ao longo do texto, propõe ler o “todo mundo é louco” lacaniano como uma tentativa de cura diante do real: “tudo o que o homem constrói, inventa, pensa é uma forma de lidar, de compensar este furo fundamental da não relação sexual”.
Na rubrica Encontros, Francesca Biagi Chai opera uma oposição entre o que nomeia ser uma “despatologização selvagem”, que desconhece a loucura, e a “despatologização lacaniana”. Despatologizar, no sentido lacaniano, não consistiria em aplanar a clínica, mas, ao contrário, em dar ao gozo o seu valor, na medida em que ele sempre possa ser interrogado. Após o texto de Francesca, segue a conversação que ocorreu entre a autora, Jacques-Alain Miller, La Sagna e Anaëlle. Por sua vez, Philippe La Sagna irá abordar as consequências da crise do DSM-V e o advento do sistema RDoC, projeto norte-americano que visa formalizar um novo sistema diagnóstico que alinha suas classificações às descobertas em genômica e neurociências. Ao texto também segue a conversação, desta vez entre o autor, Hervé Castanet e Angèle Terrier
Como uma novidade, a partir desta edição a Almanaque On-line contará com a rubrica Pólis, destinada a, eventualmente, divulgar artigos concernentes às questões éticas e políticas que se impõem às instituições psicanalíticas a serviço do discurso analítico. Inaugurando essa proposta, contamos com a conferência proferida por Jésus Santiago no IPSM-MG na qual ele parte da ideia de que o princípio de orientação de uma prática institucional dedicada à formação do analista é o mesmo da prática clínica: trata-se do princípio de que não há uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de acolher a experiência. Portanto, nos alerta sobre o risco de se assumir um viés especulativo e de incorporar de forma apressada os significantes-mestres que circulam como resposta ao mal-estar da civilização. Jésus encerra sua fala diferenciando a Escola em relação ao Instituto, ao passo que sustenta, para ambos, a “ética das consequências” em contraposição a uma “ética da boa intenção”.
O entrevistado desta edição é Sérgio de Campos, que nos traz direcionamentos sobre a política e a clínica das psicoses, após recente publicação dos dois volumes de seu livro Investigações lacanianas sobre a psicose. A partir das questões a ele endereçadas, Sérgio localiza como a despatologização – sob uma ótica que espera que todo mundo possa ser normal – serve também para recobrir a experiência da segregação. No que toca à clínica das psicoses, recomenda a prudência e localiza como a prática da “ajuda-contra” tem a finalidade de fazer vacilar a consistência do delírio sem a pretensão de erradicá-lo. Por fim, o paradigma da esquizofrenia é abordado para lançar luz à ética irônica que permeia a clínica universal do delírio: “há algo a aprender com o esquizofrênico para que a psicanálise possa se situar para além do Édipo”.
Na rubrica Prelúdios, dedicada a publicar os textos advindos das 59ª Lições Introdutórias, podemos percorrer o trabalho de uma leitura lacaniana e milleriana em torno dos fundamentos clínicos de Freud. Aqui, as autoras recorrem a vinhetas clínicas e, assim, conferem atualidade aos textos freudianos que lhes servem de base para as apresentações. Iniciando a rubrica, Paula Pimenta propõe uma interlocução entre o texto freudiano “O método psicanalítico”, de 1905, e as conferências de Miller de título homônimo proferidas em Curitiba em 1987, apresentando pontos comuns e outros díspares, demarcados pela inserção temporal própria a cada um. O texto de Cristiana Pittella sustenta vivamente a questão: o que é um psicanalista? A autora trata do ato de leitura em jogo na interpretação analítica, assim como do trabalho de reescrita que compete ao analisante. Márcia Mezêncio aborda questões relacionadas ao começo de uma análise e, em um movimento de detalhar a técnica, esclarece a ética concernente à prática analítica. Renata Mendonça faz, em seu texto, um percurso sobre a transferência, destacando que “o amor está presente, não foi rechaçado ou refutado, mas incluído no tratamento”. Lúcia Melo remete os três verbos que dão título ao texto freudiano – “Lembrar, repetir, perlaborar” – aos conceitos fundamentais formalizados por Lacan no Seminário 11, em uma leitura permeada pelas três consistências: Simbólico, Imaginário, Real. Kátia Mariás percorre o caminho do sentido dos sintomas à satisfação, trajeto que revela a íntima conexão entre gozo e defesa. Finalizando a rubrica, Luciana Silviano Brandão retoma a noção freudiana de “verdade histórica” para introduzir dois conceitos presentes na psicanálise lacaniana – a reminiscência e a rememoração – e, assim, faz avançar questões pertinentes à alucinação.
Em Incursões, apresentamos os trabalhos dos núcleos de nossa Seção Clínica. Sérgio de Castro apresenta, com clareza, elementos da primeira clínica de Lacan, em que se destaca o ordenamento simbólico sustentado pelo Nome-do-Pai. É, então, a partir das mutações desse ordenamento e do advento de uma “ordem de ferro”, que Castro irá indicar questões relativas à “norma psicótica” em sua extensão contemporânea. Alexandra Glaze pondera que se, por um lado, sempre houve algo de delirante nos assuntos familiares, por outro, recorta uma especificidade atual: um delírio ligado a um imaginário desenfreado. Considerando as modificações da ordem familiar, a autora faz uma aposta clínica: “construir um novo laço que aloje aquilo que se apresenta como heterogêneo a esse mesmo laço”. Em consonância, Tereza Facury demarca qual o lugar da criança numa organização social atravessada por normas que se ampliam com a progressão da ciência, e coloca a questão de saber como nós psicanalistas responderemos, então, à segregação trazida à ordem do dia como efeito da universalização. Suzana Barroso trata sobre a repercussão do último ensino de Lacan, condensado no aforismo “todo mundo é louco”, para a clínica da psicose infantil. A partir de uma vinheta clínica, a autora demarca orientações para uma prática que priorize intervenções destinadas a promover alguma negativização do gozo, para que se possibilite o laço social. Encerrando essa rubrica, Miguel Antunes aborda a clínica da toxicomania, transformando a famosa frase “o supereu alcoólico é solúvel no álcool” em interrogação. Para desdobrar essa questão, o autor fará um percurso sobre a noção de supereu de Freud a Lacan, destacando, para além de sua face reguladora, sua vertente voraz e de imperativo de gozo.
De uma nova geração traz os artigos de três alunos do Curso de Psicanálise. Paulo Rocha faz avançar aspectos pertinentes à clínica da neurose obsessiva e sua “falsa normalidade” a partir do texto literário O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli, obra que também foi adaptada para o cinema. Edwiges Neves localiza mudanças que se verificam na prática analítica no que concerne à transferência e coloca como pergunta se a psicose ordinária poderia ser tomada como modelo paradigmático da clínica contemporânea. Fechando os textos que compõem esta edição da Almanaque, Laydiane de Matos aborda o conceito de dom na obra do antropólogo Marcel Mauss, articulando à noção de objeto em Freud e Lacan, para tratar a função do assentimento no que concerne à hiância entre o gozo e a lei do Outro. A autora, por fim, abre a questão sobre como podemos ler os modos de subjetividade nos tempos atuais em que o assentimento se declina, o Outro não existe e o aparecimento do sujeito vacila frente ao excesso de objetos ofertados.
Esta edição foi composta com as belas imagens cedidas pelas artistas Sofia Nabuco e Renata Laguardia, que não apenas ilustram, mas reverberam algo entre os textos, a quem muito agradecemos.
Renata Laguárdia vive e trabalha em São Paulo. É graduada em Artes Visuais com habilitação em pintura pela UFMG e tem mestrado na École Européenne Supérieure de l’Image. Já participou de diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Renata faz formação em psicanálise no Corpo Freudiano, em São Paulo.
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Sofia Nabuco é técnica em Artes Visuais, ilustradora e tatuadora. Residente da capital mineira há 10 anos, trabalha com aquarela e ilustrações digitais. Tem publicações nas revistas Laudelinas e OuroCanibal, além dos livros Aleatórias, em coautoria com Constança Guimarães, e O passeio da Larissa, de Diogo Rufatto.
https://www.sofianabuco.com/
Por fim, agradecemos aos autores que contribuíram com esta edição e à equipe de publicação, pela alegre parceria e pelo cuidado na pesquisa, tradução e revisão dos trabalhos.
Aos nossos leitores, fica o convite para a apreciação dos textos!