Lilany Pacheco
Diretora Geral do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais (IPSM-MG)
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: lilanypacheco@yahoo.com.br
Escrever o editorial de Almanaque On-line n. 34 não foi tarefa fácil, dada a riqueza desta edição. O pensamento que me ocorreu ao ler a revista foi o de que o leitor pode tomar diferentes trilhas de leitura, tendo em vista seu interesse momentâneo, ou o ponto em que ele se encontra em seu percurso como estudioso da psicanálise. Este editorial oferecerá apenas uma – mas você pode escolher sua trilha e me dizer sobre ela quando nos encontrarmos.
Os textos de Kafka e Ansermet poderiam ser um ponto de partida para aqueles que iniciam agora seu percurso aproximando-se de um acontecimento literário no qual o escritor criativo dá voz às preocupações do pai em relação àquilo que poderia ultrapassá-lo no tempo em relação aos seus filhos e aos filhos de seus filhos. Ocupado a descrever a existência de um objeto que subsiste ao espaço e ao tempo, Kafka permite a Ansermet interpretar:
Até onde se pode voltar quanto a origem? O que precedeu a criança é infinito: toda criança é de fato proveniente das contingências que precederam sua concepção. Ela poderia ter nascido em um outro tempo, em um outro lugar, de uma outra mulher, de um outro homem, de um outro óvulo, de um outro espermatozoide.
Ser falado por um Outro, antes mesmo de seu nascimento, como ensinou Lacan, mostra que o sujeito passará de um exílio a outro, dado que para sempre o sujeito continuará sua tarefa de separar-se da premissa de que o desejo é desejo do Outro.
Voltando ao início, o texto de Ram Mandil, apresentado na Aula Inaugural do IPSM-MG e na Abertura das atividades do semestre da EBP-MG, oferece um percurso rigoroso sobre o corpo do primeiríssimo ao ultimíssimo ensinos de Lacan, destacando o momento privilegiado do lançamento do Seminário 14, A lógica do fantasma, no qual Lacan afirmará que “o Outro é o corpo”, passando assim de uma concepção do Outro como tesouro dos significantes ao Outro como substância, ponto de partida para as concepções do corpo como superfície e furo. Destaca-se, do texto de Ram Mandil, não apenas o rigor com que nos apresenta esse percurso, mas também a generosidade com a qual mostra que a psicanálise pode ser um guia de leitura para os sintomas contemporâneos e o quanto as contribuições de Lacan para a psicanálise colocam os psicanalistas à altura de nossa época.
Leitores privilegiados de Lacan, os textos de nossos colegas Musso Greco, Samyra Assad e Ilka Ferrari mostram de que modo o tema proposto para Almanaque On-line n. 34 foi apropriado por cada um deles.
Musso Greco, em seu texto, explicita que os restos “de um discurso, letras, traços que desenham o corpo falante, bordas de gozo, sobras das identificações, decantações” tocam o corpo do ser falante.
Samyra Assad, por sua vez, lembra-nos de uma passagem de Graciela Brodsky extremamente esclarecedora: “Quando não sabemos que nome dar a esse sujeito que não se relaciona com os significantes, e sim com o corpo, o chamamos de parlêtre”. Tal percurso pode ser acompanhado na leitura de seu texto, no qual ela recupera, dos relatos de passe, o momento em que, na experiência analítica, cada analista encontrou e formulou a opacidade do corpo próprio que cada um habita.
Ilka Ferrari localiza o marco para a abordagem dos efeitos do encontro do significante com o corpo no que Lacan apresentou no Seminário Mais, ainda e no que Miller ajudou a elucidar, ou seja, o mistério da união da fala com o corpo. Assim, retomando Lacan, Ilka destaca que:
Na impossibilidade de definir o que é a vida, ele se perguntou o que ela quer, ofertando a resposta de que ela quer durar, não acabar, se transmitir. Considerou-a muda, impossibilitando que se saiba o que é estar vivo, mas nela deixando falar o saber de que, na existência, há corpos vivos e gozosos […], mortificados e vivificados pela entrada do significante nesse circuito.
Monica Campos nos oferece o testemunho privilegiado da 30ª Conversação Clínica do IPSM-MG, elucidando que, através dos casos discutidos, percebeu-se que a análise de uma criança permite a experiência de um trabalho com o trauma da linguagem em seu avesso, sobre como se conectar e se separar, talvez vislumbrando o que não tem relação. Ou seja, no tratamento de uma criança, é preciso dar a ela a chance de uma possível construção de seu próprio fantasma.
Por fim, os textos de Patrícia Guimarães e Mariah Casséte, alunas do Curso de Psicanálise do IPSM-MG, causam alegria por demostrarem de que modo o estudioso da psicanálise pode articulá-la a diferentes campos de conhecimento, de modo a enriquecer cada um deles, sem que se perca a fronteira entre ambos. O texto de Maria Casséte recorda que Freud nos convida a buscar, na experiência, na ciência ou na arte, meios de avançar sobre o “enigma da feminilidade”. Assim, ela vê, no filme Persona, de Ingmar Bergman, uma excelente fonte para essa busca, ao apresentar a interação entre uma atriz que se absteve da fala e uma enfermeira que usa a fala como investigação. Já Patrícia Regina Guimarães, médica, assinala a importância e o efeito que a falha epistemo-somática tem para o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo, retomando a seguinte afirmação de Lacan: “Se o médico deve continuar a ser alguma coisa que não a herança da sua função antiga, que era uma função sagrada, é a meu ver, prosseguir e manter em sua própria vida a descoberta de Freud”.
E, se você ainda não sabe do lançamento da Coleção Almanaque Impresso, ou se já sabe e já comprou seus exemplares, vale a pena a leitura do que inspirou a Diretoria do Instituto a criar essa Coleção, cuja edição primorosa ficou a cargo de Luciana Silviano Brandão Lopes, a quem agradeço efusivamente pelo trabalho.
Agradeço ainda aos autores que colaboraram com seus escritos para este número, principalmente a François Ansermet pela gentileza com a qual autorizou imediatamente sua publicação para esta revista. Por fim, sinceros agradecimentos à artista Tatiana Bicalho, cujas fotos escrevem corpos nesta edição de Almanaque On-line n. 34.