Ram Mandil
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME) pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail: rmandil.bhe@terra.com.br
O tema desta atividade – “O corpo, esse Outro”, a partir de uma sugestão de Sérgio Laia – se articula ao tema do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, que irá acontecer em São Paulo entre os dias 08 e 10 de novembro. O tema do Encontro, “Corpos aprisionados pelo discurso… e seus restos”, foi inspirado no último capítulo do Seminário 19, de Lacan (1971-72/2012), …ou pior. Nesse Seminário, Lacan apresenta aspectos fundamentais que irão desembocar nisso que designamos como sendo o seu último ensino. É nesse Seminário, por exemplo, que ele constrói a tese do “Há Um” (Y´a de l´Un), em que assinala a existência de um gozo – gozo do corpo, gozo da fala, ou, ainda, gozo do sinthoma – não articulado ao Outro. Trata-se de um desdobramento e consequência da sua tese de que “Não há relação sexual”.
Como muitos de vocês puderam acompanhar, uma discussão foi iniciada a partir de um comentário de Jésus Santiago a respeito da tradução para o português do termo “aprisionado”, que está presente no tema do Encontro – corpos aprisionados pelo discurso –, uma vez que a palavra attrapés, no original em francês, indica uma relação entre corpo e discurso que não necessariamente se expressa na ideia de aprisionamento. Contribuições de colegas da EBP a esse respeito estão disponíveis no site do Encontro, dando uma dimensão da sutileza do debate a respeito das relações entre corpo e discurso no ensino de Lacan.
O estatuto do corpo
Sabemos que um dos passos inaugurais de Freud se deu na direção da interrogação sobre o estatuto do corpo a partir da clínica da histeria, uma vez que essa clínica obriga a considerar o corpo para além de suas vertentes anatômica, fisiológica ou biológica. Costumamos não dar a devida atenção aos esforços de Freud, no início de seu percurso, em procurar convencer os médicos a incluírem os efeitos da palavra em sua prática, efeitos esses que participam, e muitas vezes determinam – por exemplo, em sua dimensão traumática –, o modo como um sujeito faz a sua experiência de corpo. Em “O tratamento psíquico (ou anímico)”, Freud (1896/1996, p. 298) observa que uma “atitude unilateral da medicina” tende a ver com desconfiança qualquer autonomia conferida à vida mental na determinação de efeitos corporais, desconsiderando inclusive o poder das palavras no tratamento das “perturbações patológicas” tanto da psyché, quanto do corpo. É surpreendente ver Freud responder às acusações de que qualquer intervenção médica que não derive dos aspectos anatômicos e fisiológicos deveria ser considerada como sendo da ordem da magia. Ainda hoje, em nosso contexto, surgem acusações dessa ordem por parte de personagens midiáticos que se arvoram a falar em nome da ciência e oferecer um antídoto contra o chamado “pensamento mágico”. Freud (1896/1996, p. 297) assume que será necessário, para uma ampla compreensão do que se passa na experiência de corpo, que se possa “restituir às palavras, pelo menos em parte, o seu antigo poder mágico”. Nesse aspecto, ele chama a atenção para os efeitos sugestivos da palavra e para o modo como esses efeitos dependem da “personalidade do médico”. Essas considerações podem ser vistas como ponto de partida para as suas elaborações posteriores a respeito da interpretação analítica e também da transferência.
É o que Lacan (1971-72/2012, p. 217) irá assinalar em seu Seminário 19 – mas não apenas ali –, de que “o que se produz ao nível do corpo tem a ver com o que se articula pelo discurso”. Em “Considerações sobre a histeria”, conferência pronunciada após o Seminário O sinthoma, Lacan (1977/2007, p. 20) irá mais adiante, ao afirmar que não apenas “as palavras fazem corpo”, mas que “o uso das palavras numa espécie que tem as palavras à disposição” impacta sobre “a sexualidade que reina nessa espécie”, com consequências sobre sua própria reprodução, uma vez que a sexualidade “está inteiramente tomada nessas palavras”.
O estatuto da palavra
Não será apenas o estatuto do corpo que será interrogado a partir da psicanálise, mas também o estatuto da palavra. A menção, por Freud, de um “poder mágico” das palavras é o ponto de partida para uma série de considerações sobre os seus efeitos sobre o ser falante. Se, no início, o destaque recai sobre os efeitos de sugestão, será na dimensão simbólica do sentido que Freud irá apoiar não apenas sua noção de inconsciente, como também de interpretação. Sabemos que, por meio do recurso à linguística, Lacan irá aprofundar e reorientar a investigação sobre os efeitos da palavra, na perspectiva de localizar sua incidência na clínica, sobretudo em relação a uma confluência entre o gozo e o sentido (j´oui sense). Mas será a partir do que a clínica revela de uma satisfação pulsional que não conflui com o sentido e nem se dissolve a partir da interpretação semântica que Lacan irá considerar os efeitos da palavra sobre os corpos para além da dimensão da significação. É por essa via que surgem as referências de Lacan à palavra não tanto como efeito da combinatória de significantes, mas em relação à sua materialidade. É nesse novo contexto que a palavra, ou a fala, são tomadas, por exemplo, como um “parasita” que assola o falasser. Cito: “A questão é antes saber por que um homem dito ‘normal’ não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (1975-76/2007, p. 92). Esse caráter parasitário da fala a desloca de seu aspecto puramente linguístico para conferir-lhe substância de ser vivo que interage – por exemplo, como hospedeiro – com outro ser vivo. Encontramos aqui uma inflexão em relação à ideia de um corpo tomado pelo discurso, uma vez que, entre corpo e discurso, há uma relação material e vivente. É o que justifica o neologismo lacaniano – motérialisme, um materialismo da palavra – mencionado na “Conferência em Genebra sobre o sintoma”, materialismo esse que está implicado na própria constituição do sintoma:
É, se me permitem empregar, pela primeira vez, esse termo, nesse motérialisme que reside a tomada do inconsciente [la prise de l´inconscient] – quero dizer, que o que faz com que cada um não tenha encontrado outros modos de se sustentar a não ser através do que chamei há pouco de sintoma. (LACAN, 1975/1998, p. 8)
O corpo como Outro
É possível acompanhar o longo e sinuoso percurso de Lacan visando conferir um estatuto do corpo para além da referência ao organismo, referência essa insuficiente para se considerar o que se revela na clínica. Um ponto em comum em todas as elaborações de Lacan a esse respeito é que, para ele, o corpo, enquanto unidade, é sempre da ordem do outro, nunca algo imanente ao ser falante. O ponto de partida, como sabemos, é a apreensão do corpo como imagem do Estádio do Espelho, através do qual o sujeito encontraria um suporte para ter uma ideia de si como unidade corporal. Trata-se, aqui, do corpo tomado fundamentalmente como forma, de onde deriva um gozo de sua imagem especular. Essa unidade corporal – sempre problemática – será ressignificada a partir da introdução da noção de objeto a. O corpo fragmentado – ponto de partida de toda consideração sobre o corpo – será lido na perspectiva de uma “desordem dos pequenos a” (LACAN, 1962-63/2005, p. 132) e será por meio de artifícios que uma unidade corporal poderá ser concebida. Lembramos aqui a referência ao Esquema Ótico como um desses aparatos, constituído de espelhos planos e convexos, vasos e flores, de modo a situar o olhar numa posição precisa para que se possa ter uma imagem do corpo como unidade aparentemente homogênea. Toda dificuldade se funda sobre o fato de que, como dirá Lacan (1962-63/2005, p. 134), “é a própria estrutura desses objetos, que os torna impróprios para a egoização (moïsation)”. Em outras palavras, toda ideia de si como corpo apoiada sobre a imagem especular deixará uma opacidade, deixará um resto não representável na imagem refletida, e que será passível de reativar-se nos encontros com o real.
Nesse sentido, o último ensino de Lacan convoca uma nova referência para se pensar o estatuto do corpo, ou seja, a de se considerar o corpo a partir do gozo, mais precisamente como substância de gozo. Não se trata aqui do corpo pensado a partir de uma relação, o que implicaria um Outro, seja ele imagem ou símbolo, mas um corpo considerado a partir de sua própria existência enquanto substância. Trata-se aqui de um corpo que goza de si próprio, como “uma boca que pudesse beijar a si mesma”, para evocar uma imagem freudiana dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Em outras palavras, trata-se de um corpo de gozo que não se produz a partir de uma relação, que não está referido ao Outro, nem mesmo ao Outro sexual. O paradigma clínico dessa modalidade de gozo é o que Freud designou como sendo os restos sintomáticos – restos pois não se dissolvem por meio da interpretação analítica quando esta opera pela via do sentido. É uma modalidade de gozo não sensível ao sentido das palavras ou, como dirá Lacan, trata-se de um gozo opaco ao sentido. Tomando-se esse gozo como referência, não se trata de procurar dissolvê-lo em nome de uma suposta homeostase, mas de reduzi-lo, de localizá-lo, de depurá-lo de seu suporte fantasmático para que novas formas de se haver com ele sejam possíveis.
Dar corpo ao gozo
Se, por um lado, o ponto de partida é um corpo que goza de si mesmo, quais seriam as condições para esse gozo? Há aqui uma inversão de perspectiva, quando nos perguntamos sobre o que dá corpo ao gozo. Se, em Freud, a satisfação pulsional estaria associada a uma mensagem cifrada, e mesmo se, em Lacan, num primeiro momento, as relações entre o gozo e o sentido podem ser inscritas em termos de significação, uma outra leitura vem à tona quando se constata que o gozo é impensável sem algo que lhe dê corpo. Lacan, a certa altura de seu ensino, considera o falo como paradigma do que dá corpo ao gozo, ou seja, de um corpo que goza, na medida em que é corporificado pelo significante. No Seminário 23, Lacan (1975-76/2007, p. 16) nos apresenta uma outra perspectiva sobre o gozo fálico. O falo é aqui referido como sendo a conjunção entre o corpo – desse “pedacinho de pau” – e a função da fala. O “gozo dito fálico” – a expressão é de Lacan, e sabemos que todas as vezes que ele adjetiva um termo com o “dito”, ele expressa alguma reserva em relação ao seu uso corrente – enfim, o gozo dito fálico se define a partir do enlace entre o simbólico e o real. Trata-se de um gozo negativado pelo significante, distinto, por exemplo, do gozo peniano, que, para Lacan, provém do Imaginário, do gozo da imagem especular do corpo. No entanto, uma nova relação entre o falo e o real é apresentada nesse Seminário, a partir, inclusive, da questão levantada por Lacan (1975-76/2007, p. 134) sobre a possibilidade de o falo ser um suporte suficiente para o gozo. Será a partir dessa interrogação – antecipada em outros momentos do seu ensino – que suas considerações sobre gozo feminino ganham uma nova leitura e reorientam a prática analítica. Como, por exemplo, considerar uma outra função para o falo, não a da significação, mas a da verificação, como o que permite dar valor de verdade ao que emerge do real.
O corpo como superfície de inscrição
Se consideramos o corpo como aquilo que goza de si mesmo, é preciso levar em consideração, antes de mais nada, que se trata de um corpo marcado pelo significante. Em outras palavras, só haveria gozo do corpo, propriamente dito, a partir da incidência do significante. É o que, a meu ver, justifica as elaborações de Lacan sobre o corpo como superfície de inscrição. Caberia perguntar se, numa era em que se evidencia cada vez mais a inexistência do Outro, as marcas, as cicatrizes, as perfurações, as tatuagens, ou mesmo os procedimentos cirúrgicos de toda ordem, inclusive os de redesignação sexual, não teriam por horizonte fazer do corpo um corpo de gozo. Todos esses procedimentos (obviamente a serem considerados caso a caso) parecem vir em suplência a um modo específico de inscrição corporal, ao qual Freud deu o nome de castração – entendida aqui como marca de uma subtração, com valor de delimitação do gozo do corpo, ao mesmo tempo em que se produz um excedente de gozo referido justamente a essa marca.
A realidade dos transplantes
Gostaria de fazer uma referência a um procedimento que vem se instaurando como uma realidade da vida contemporânea. Me refiro aqui a um momento em que, com o recurso da ciência e das novas técnicas da medicina, inaugura-se a era dos transplantes. A noção de transplante pode ser entendida num sentido amplo, a saber: aquilo que, como ser vivo, estava num lugar e é transplantado para outro lugar. Em sua dimensão corporal, os transplantes dizem respeito não apenas aos órgãos do corpo, mas também aos seus produtos e materiais, como o sangue, por exemplo.
As elaborações de Lacan a respeito do objeto a no Seminário 10 nos permitem fazer uma leitura do que se passa ao nível dos transplantes. Se, num primeiro momento, o objeto a é referido aos objetos naturais do corpo (como, por exemplo, o seio), Lacan observa que esses objetos também podem ser objetos fabricados (como, por exemplo, a mamadeira). Nesse último caso, são objetos passíveis de serem estocados, armazenados, e mesmo colocados em circulação. Um aspecto determinante dos objetos a, sejam os naturais, sejam os fabricados, é o seu caráter de objeto cedível, passíveis portanto de serem separados, destacados do corpo. Para Lacan, a partir da prática dos transplantes, a presença desses objetos do corpo, enquanto objetos capazes de serem cedidos, sinalizam um novo período da história humana e de seus produtos. Cito aqui uma passagem do Seminário 10, que compreende os anos de 1962 e 63, portanto ainda nos primórdios dos primeiros transplantes de órgãos:
não me é possível deixar de evocar, neste momento, no extremo dessas manifestações, os problemas que nos serão colocados, inclusive na mais radical essencialidade do sujeito, pela ampliação iminente, provável, já iniciada […] da realidade dos transplantes [greffe, “enxertos”] de órgãos. (LACAN, 1962-63/2005, p. 341)
Se hoje essa realidade não nos surpreende, Lacan, àquela altura de seu ensino, não deixa de manifestar sua perplexidade e mesmo seu assombro, chegando a se perguntar até que ponto convém consentir, por exemplo, com a perspectiva de uma “manutenção artificial de alguns sujeitos num estado que já não saberemos se é vida ou se é morte” (LACAN, 1962-63/2005, p. 341). Para Lacan (1962-63/2005, p. 342), essa nova realidade sinaliza a emergência “no real” de algo próprio para “despertar, em termos totalmente novos, a questão da essencialidade da pessoa e daquilo a que ela se prende”. Vemos claramente se produzir uma perturbação na ordem simbólica e a necessidade de uma completa redefinição jurídica no momento em que “o antigo suporte somático da identidade”, como, por exemplo, a noção de “pessoa física”, é questionado a partir de sua base somática.
A dimensão subjetiva dessa nova realidade se manifesta na forma de diversos testemunhos. A meu ver, dois deles se destacam, ambos de pessoas que passaram por transplantes do coração. De um lado, o filósofo Jean-Luc Nancy (2006), que em seu livro O intruso resume a sua experiência com o transplante como a “passagem de uma nova estranheza”. A presença, em seu corpo, do órgão de uma outra pessoa dá lugar à formação de “um ego estranho, ao mesmo tempo aberto e fechado”. De outro lado, o escritor José Maria Cançado, professor da PUC-MG, autor de O transplante é um baião de dois, no qual faz a opção de dar o seu testemunho em verso, mais apropriado, segundo ele, para lidar com o desconhecido e com o que não tem sentido. Ele captura assim a experiência pela qual iniciou a travessia: “Nome nenhum… nenhum nome / nem o meu… nem o seu/ neste coração/ nem desinência… nasceu / nessa composição/ É uma trupe desconhecida/ que se formou nessa migração” (CANÇADO, 2005, p. 9).
A evaporação dos corpos
Nos perguntamos os efeitos da “evaporação do pai” no mundo contemporâneo, conforme a leitura de Miller (2024a), também não estariam sendo acompanhados por uma reconfiguração da consistência dos corpos, não apenas em relação aos laços sociais – interagimos hoje mais com pessoas cujos corpos não estão presentes – mas também em sua dimensão clínica. Esse aspecto foi examinado por Didier Sicard, que, em seu livro A medicina sem o corpo (La médecine sans le corps), chama a atenção para o fato de o médico hoje estar se convertendo cada vez mais num leitor de imagens do corpo, deixando em segundo plano, quando não ignorando, o exame clínico a partir do encontro dos corpos. Nesse contexto, ganha toda relevância o modo como Lacan (1971-72/2012, p. 220), na última lição do Seminário 19, evoca a escansão das entrevistas preliminares como sendo um momento de “confrontação de corpos”, como um dado preliminar à entrada no discurso analítico. E será justamente a partir do discurso analítico que será possível aferir o modo como o discurso do mestre molda e afeta os corpos.
O corpo considerado a partir de sua consistência e de suas bordas
Dois aspectos fundamentais surgem aqui, a meu ver, na consideração do corpo a partir do discurso analítico.
De um lado, diante do caráter problemático da unidade corporal – que Lacan assinala, no Seminário 23, como a tendência do corpo em sair fora – surge a questão relativa à consistência corporal, a saber, sobre o que manteria juntos os elementos do corpo, diante do caráter dispersivo do corpo libidinal. Uma primeira resposta de Lacan é que essa consistência se apoia sobre a relação com a imagem do próprio corpo, ou do corpo de um outro, o que confere a esse corpo a sua “unidade mental” (MILLER, 2012, p. 131). Por outro lado, essa consistência também pode ser pensada ao nível do simbólico, do corpo como máquina, sistema, organismo articulado. É, inclusive, pela via de uma consistência simbólica do corpo que E. Kantorowicz, em seu livro O corpo duplo do rei, apresenta a distinção na teologia política medieval entre o corpo físico e o corpo místico do rei, o primeiro como corpo limitado, perecível, e o segundo como corpo “imortal” que se propaga pela eternidade e que se transmite ao longo das gerações. Essa distinção simbólica não deixa de ser o fundamento para todo funcionamento institucional.
As elaborações de Lacan ao final do Seminário 23 a respeito do ego de Joyce também podem ser lidas na perspectiva de uma investigação sobre a consistência corporal. A definição de ego ali presente – como a ideia que alguém faz de si como corpo – interroga a consistência corporal em situações, como a de Joyce, nas quais essa consistência não parece apoiar-se sobre uma relação com a imagem do próprio corpo. Para se ter uma ideia de si como corpo, é necessário que esse corpo tenha, antes de mais nada, uma consistência, consistência mental, dirá Lacan, que é o que, no fundo, permite a alguém ter relação com o próprio corpo. E, para se ter uma relação com o próprio corpo, ele deve ser experimentado como alteridade. Para Lacan, seguindo a pista do Seminário 23, o paradigma dessa relação com o corpo é a sua adoração, adoração essa que pode adquirir formas variadas, mas invariavelmente associada a uma relação com a imagem do próprio corpo.
Bordas do corpo
Em meio às considerações sobre os aspectos implicados na constituição da consistência corporal – incluindo-se aí o sintoma como um elemento determinante dessa consistência –, Lacan irá assinalar que a consistência é algo a ser pensado em termos de superfície. Nesse Seminário, ele define a superfície como sendo a forma “a mais desprovida de sentido do que, entretanto, se imagina” (LACAN, 1975-76/2007, p. 63). Esse aspecto será determinante para se considerar o corpo como referência de onde procede nossa relação com o imaginário. Em “O fenômeno lacaniano”, conferência dada por Lacan em 1974, ao comentar a expressão “ama a ti mesmo”, presente no mandamento “ama a teu próximo como a ti mesmo”, ele afirma:
o homem – e foi aí que tentei fazer meu primeiro trilhamento – ama a sua imagem como aquilo que lhe é mais próximo, isto é, seu corpo. Simplesmente, de seu corpo, ele não tem estritamente nenhuma ideia. Ele crê que seja “eu” [moi]. Cada um crê ser ele mesmo. É um furo [trou]. E depois, do lado de fora, há a imagem. E com essa imagem, ele faz o mundo. (LACAN, 1974/2014, p. 18)
Vemos aqui que o corpo é pensado em termos de superfície e furo, o que justifica o recurso à topologia uma vez constatada a insuficiência de se considerar o corpo a partir de sua imagem no espelho.
Tomar o corpo como cruzamento espacial de furos e superfícies no qual o gozo encontraria suporte não é da mesma ordem que o pensar como forma, silhueta ou sombra.
É por essa via topológica que surge a figura da borda, como o que designa a possibilidade de diferentes conformações a partir da zona limite entre o furo e a superfície. Sabemos da importância da consideração pela borda, por exemplo, na clínica do autismo. Éric Laurent (2014, p. 80) propõe, inclusive, a hipótese de uma “foraclusão do furo” para indicar o que, em alguns casos, se revela como consequência da ausência de delimitação de uma borda para conferir consistência ao furo.
Sem entrar na vertente do diagnóstico, há algo de um tratamento da relação com o corpo em termos de borda que encontramos na vida e na obra de Santos Dumont. É como se para ele houvesse uma necessidade de se liberar do peso do seu corpo. O sujeito construtor de balões, aquele que conseguiu torna-los dirigíveis, que foi capaz de fazer uma máquina mais pesada que o ar levantar voo, não por acaso inclui seu corpo em todos esses inventos. É seu corpo que está presente em cada um deles, é ele quem se levanta do chão junto com suas invenções – como se estivesse movido pela necessidade de traçar uma borda para incluir um vazio, traçar um furo na relação entre seu corpo e o mundo. Sua primeira invenção, como ele mesmo relata, foi a de dependurar um triciclo a petróleo nos galhos de uma árvore, suspendendo-o a alguns centímetros do chão. Cito: “É difícil explicar meu contentamento ao verificar que, ao contrário do que se dava em terra, o motor do meu triciclo vibrava tão agradavelmente que quase parecia parado. Nesse dia começou minha vida de inventor” (SANTOS-DUMONT, 1918/2015, p. 7). Em outro momento, justificando a construção de mesas e cadeiras de sua casa com pernas de 2 m de altura, ele assim irá justificar: “Adoro as alturas. Necessito sentir-me no ar. […] Não faço nada, não valho nada, nem posso fazer nada quando estou no chão.”[2]
Do Outro como discurso ao Outro como corpo
Um momento significativo do ensino de Lacan pode ser localizado no Seminário 14, A lógica do fantasma, em que o estatuto do Outro como tesouro dos significantes, do Outro articulado como discurso, esse Outro começa a ter a sua natureza interrogada. No capítulo XVI desse Seminário – “O Outro é o corpo” –, Lacan faz uma pergunta que parece demarcar uma nova perspectiva. Não se trata de uma pergunta sobre o lugar do Outro, mas sobre sua substância. O que seria considerar o Outro como substância, como corpo e, por consequência, pensado a partir do volume, submetido às leis do movimento e, fundamentalmente, como superfície de inscrição? Cito: “o corpo, nossa presença de corpo animal, é o primeiro lugar onde colocar as inscrições” (LACAN, 1966-67/2023, p. 328, tradução nossa). Se, mais adiante, a superfície corporal será pensada em termos de consistência e furo, aqui o corpo enquanto substância é, antes de tudo, um corpo marcado. A marca corporal, como efeito do primeiro significante sobre esse corpo, não é a ferida produzida, mas o que daí se produz como cicatriz, como metáfora de um corpo marcado.
Um testemunho de passe
Essa perspectiva de um corpo como Outro, marcado pela incidência do significante, será o fundamento, a meu ver, para o que Lacan assinala como sendo um “acontecimento de corpo”, que seria, em última análise, o núcleo do sinthoma.
A incidência da língua sobre o corpo, experimentada como evento traumático, inscreve uma descontinuidade, define um antes e um depois e é o que permite a constituição do falasser. Trata-se de um acontecimento no qual, para usar uma imagem evocada por Lacan, a língua morde o corpo, fixando aí um gozo de uma vez por todas. O significante aqui não é causa do sujeito do discurso, mas causa de gozo, experimentado ao nível do corpo como “instante de encarnação” (MILLER, 2011, p. 103).
Um testemunho de passe de nossa colega Carolina Koretzky (2024), da ECF, seguido dos comentários de Deborah Gutermann-Jacquet (2024) e de Jacques-Alain Miller (2024b), nos ajudam a esclarecer a noção de acontecimento de corpo e sua passagem ao sinthoma, bem como a sua relação com o desejo do analista. Em seu testemunho, Carolina faz referência a um sintoma corporal persistente, um eczema nas mãos, que sempre resistiu às análises anteriores. Esse sintoma aparece na adolescência, por ocasião da separação dos seus pais. No conflito entre os pais, o eczema é a justificativa da qual ela se serve para não “dar uma mão ao pai”, num momento de sua falência. Será a partir de uma interpretação do analista que esse sintoma irá desaparecer, dirá ela, “radical e definitivamente”. Podemos pensar que o desaparecimento “radical e definitivo” do sintoma é o sonho de qualquer analisante no momento em que busca uma análise. A remissão do sintoma pode, inclusive, ser para um analisante um critério de final de análise, ou seja, de só considerar sua análise concluída quando o seu sintoma cessar. Ainda que eventualmente isso possa acontecer, chama a atenção, nos comentários de Miller, a ênfase que ele dá, no caso de Carolina, sobre um outro sintoma, não menos corporal, produzido a partir de uma frase de sua mãe a respeito do seu nascimento. Num momento de urgência que antecedeu o seu parto, sua mãe lhe conta o que ocorreu: “Eu fiquei falando com você a noite toda e você quis viver”. É daqui que procede o seu sintoma analítico, a saber, o de ser uma pessoa determinada, obstinada [s´acharner] na relação com o Outro, sobretudo quando se trata de fazer o Outro falar. Essa determinação, essa obstinação, se manifesta em sua vida em diversas situações. No início, está associada a uma hiperatividade, fonte inclusive de problemas escolares, ou seja, a sua impossibilidade de ficar sentada, de deixar seu corpo permanecer num único lugar. Por outro lado, essa determinação a colocava num estado de estar sempre pronta para partir diante do que lhe soasse como uma ameaça, inclusive em relação às demandas amorosas. Isso também se refletia em sua prática analítica, como em sua obstinação em fazer os analisantes saírem de seu eventual silêncio, que ela traduz em termos de uma voracidade em provocar uma palavra.
Em seu comentário, Miller observa que, numa experiência analítica, a visada não é a de provocar uma possível cessação do sintoma – motivo para todos os excessos de um furor curandis –, mas de se considerar o que, do sintoma, numa análise, está em relação com o que não cessa de não se escrever. Sabemos que a expressão “restos sintomáticos” provém de Freud, como aquilo que, ao final da análise, permanece como elemento ativo do sintoma, como o que dele não se dissolve uma vez encontrados seus circuitos e suas razões. A noção de resto, como iteração do gozo, pode dar uma conotação de fracasso da análise, como se só restasse ao analisante a resignação ou o protesto. É aqui que uma análise revela que, no trato com o real, o que se exige está para além da terapêutica, uma vez tendo sido franqueadas as identificações e criadas as condições para que o falasser possa destacar-se do seu fantasma fundamental.
A pergunta de uma análise é a de saber como esse resto, num primeiro momento associado a um tormento, pode elevar-se à dignidade de um sinthoma. Como a prática analítica permite a alguém, tomado por uma hiperatividade – como no caso de Carolina, que não conseguia fazer seu corpo ficar parado num único local –, consentir, como analista, a ficar no seu lugar? Como estabelecer uma nova aliança entre sua determinação e o silêncio do Outro, quando esse silêncio deixa de ter uma conotação mortífera?
Vemos aqui como o desejo do analista não é algo que surge de forma desconectada do sintoma, mas que corresponde a um outro modo de se haver com ele, no mais das vezes como condição vital para aquele que escolheu tornar-se analista. Não deixa de ser surpreendente a observação de Miller de que, ao menos no caso de Carolina, praticar a psicanálise segue sendo uma forma de tratar seu sintoma, de lidar com o que, em sua experiência, se revelou como um gozo que se reitera e que não é passível de negativar. E, podemos pensar que o estilo, como marca própria de um analista, decorre exatamente dos modos que ele encontra para lidar com o real, modos esses orientados pelo que ele pode extrair de sua experiência como analisante.
Miller finaliza seu comentário com um verso do poeta Paul Verlaine, extraído do poema “Meu sonho de família”, que me permito retomar aqui, como figura do que eu chamaria de “modéstia analítica”, quando, ao final da experiência de análise, podemos reconhecer que “não se sai exatamente o mesmo, mas também não se sai completamente outro”.
Referências
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SANTOS-DUMONT, A. O que eu vi, o que nós veremos. 2015. (Trabalho original publicado em 1918). Disponível em: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/santos_dumond.pdf. Acesso em : 01 set. 2024.
[1] Conferência pronunciada em 12 de agosto de 2024, ocasião da Aula Inaugural do IPSM-MG e da Abertura das atividades da EBP-MG, e em preparação para o XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.
[2] Conforme registro indicativo desse mobiliário no Museu Casa de Santos Dumont, Petrópolis, RJ.