Eutanásia: entre demanda e desejo1
Araceli Teixidó
Psicanalista, membro da Escuela Lacaniana de Psicoanálisis/AMP
Professora do Instituto do Campo Freudiano da Espanha
Coordenadora da Rede Psicanálise e Medicina
araceliteixido@gmail.com
Resumo: A nova lei de regulamentação da eutanásia na Espanha nos faz trabalhar a diferença entre demanda e desejo, bem como a relevância do ato do profissional ao dar sua resposta. Na prática, a resposta negativa tem sido considerada como objeção de consciência do médico e supõe o fim do relacionamento com o paciente. Este trabalho propõe que possa ser dada uma resposta negativa sem pressupor o fim do relacionamento com o paciente. Discute-se também a aceitação literal das demandas: quando a decisão do paciente é tida como um dado e o trabalho do médico como a verificação dos requisitos para acesso ao procedimento.
Palavras-chave: eutanásia; demanda; desejo; ato; objeção de consciência.
EUTHANASIA: BETWEEN DEMAND AND DESIRE
Abstract: The new euthanasia regulation law in Spain prompts us to explore the distinction between demand and desire, as well as the relevance of the professional’s actions when giving their response. In practice, a negative response has been considered a conscientious objection by the physician, leading to the termination of the relationship with the patient. This study suggests that a negative response can be given without presupposing the end of the relationship with the patient. The literal acceptance of demands is also discussed: when the patient’s decision is taken as given and the doctor’s work as verifying the requirements for access to the procedure.
Keywords: euthanasia; demand; desire; act; conscientious objection.
Introdução
Este texto realiza-se a partir de minhas próprias elaborações, mas não seria possível sem as elaborações de outros que pesquisaram comigo, especialmente psicanalistas da ELP e da AMP, mas também médicos e outros profissionais da área da saúde que caminham conosco neste terreno incerto que é a fronteira entre a psicanálise e a medicina.
A ciência alcançou avanços que levam a vida mais além do que seria desejável, mesmo para vidas que podem não ser desejáveis. Isso abre para a decisão de ter que frear a deriva, parar o processo terapêutico, para não chegar a esses extremos em que prolongar a vida não faz sentido. Isso tem sido trabalhado pelo Estado espanhol há anos e algumas fórmulas foram alcançadas para limitar a violência terapêutica. Essas vias eram legais, porque a morte era causada pela doença, mesmo quando ocorria por recusa do paciente em receber a medicação eficaz. Tanto a eutanásia, quanto o suicídio assistido, eram puníveis. Os casos que foram regulamentados com a nova lei são aqueles em que é solicitada a intervenção de um profissional para poder morrer, sem que o paciente se encontre em estado agonizante ou terminal.
Em todos os casos, compete ao médico a decisão de aceitar ou não a demanda e avaliar se a falta de desejo é decorrente de fatores irreversíveis ou se é transitória. Para isso será necessário conversar com o paciente e decidir. No entanto, tal como foi disposto na Espanha, ao médico é solicitado apenas verificar se os requisitos estão preenchidos ou não. Nesse sentido, alguns profissionais tomam a decisão do paciente como um dado objetivo e, portanto, como uma afirmação incontestável.
A eutanásia diz respeito a um real. O médico, formado para procurar o bem do paciente no sentido de melhorar sua saúde ou ajudá-lo a enfrentar os sofrimentos que a doença ou a própria vida podem acarretar, se depara com uma demanda que sai totalmente do roteiro previsto e, mais ainda, o orienta a um ato que contradiz aquilo para o qual se formou e que orientou sua vocação. Acolher a demanda de receber a morte e ser aquele que terá que executá-la se apresenta como um real, como algo que não se pode antecipar simbólica ou imaginariamente, que pode confrontá-lo com uma experiência singular para a qual sente que não dispõe de recursos.
Historicamente, o suicídio foi rejeitado pela legislação e pela moral. Em diversos países e momentos, cometer suicídio foi condenado moralmente e penalizado legalmente. Por exemplo, um suicida poderia perder o direito a ser enterrado em terra sagrada, seu cadáver não era merecedor de cuidados ou poderia legalmente perder todos os seus bens, isto é, não seriam deixados como herança aos seus descendentes.
Embora essas penas tenham desaparecido do código legal espanhol, não desapareceu a criminalização da assistência ao suicídio. O que a legislação atual dispõe não é da legalização, mas, sim, da descriminalização do auxílio a morrer em determinados casos, que são os que a legislação indica.
Considero que essa legislação constitui, então, um avanço jurídico, mas também ético, ao suprimir o juízo moral a respeito do desejo de acabar com a própria vida. Com essa lei, se reduz o juízo moral, e o dilema ético passaria para as mãos do paciente e de seu médico.
O ato de morrer não pode ser reduzido a um procedimento burocrático. Despojar a demanda de morrer de um juízo moral não precisa ser sinônimo de simplesmente aceitá-la porque estão preenchidos os requisitos ou porque o profissional sente empatia com o sofrimento do paciente. Aí está um dos espaços fronteiriços que exploraremos hoje. A clínica nos convoca. Por isso, será necessário observar como se considera e se trata a demanda do paciente.
Questões que definem a lei do estado espanhol
A lei que regulamente e descriminaliza a eutanásia na Espanha, conhecida como Ley Orgánica 3/2021, foi aprovada em março de 2022 e entrou em vigor três meses depois, em junho. A eutanásia é aplicável àquelas situações em que uma pessoa manifesta vontade expressa de pôr fim à sua vida com o objetivo de evitar o “padecimento grave, crônico e incapacitante” provocado por uma “doença grave e incurável”. Um exemplo que está ao alcance de todos é o filme Mar adentro, de Alejandro Amenabar (MAR…, 2004).
Trata-se de um procedimento protocolizado que deixa uma margem de decisão ao profissional, mas que será avaliado, endossado ou não, por outros: na Catalunha, intervêm um médico consultor, e todos os casos passam por um Comitê de Garantia e Avaliação. O procedimento foi desenhado para assegurar um controle anterior à aplicação efetiva da eutanásia.
Finalmente, gostaria de destacar a questão da objeção de consciência. Como sabem, trata-se da possibilidade de não ser convocado a participar nesses casos, em razão das convicções morais contrárias à eutanásia.
A lei não orienta a clínica nem o ato
A lei não orienta a clínica nem o ato, apenas estabelece o marco legal. Os médicos têm se esforçado em conhecer os aspectos legais, tem havido muita formação nesse âmbito, que certamente tem que ser conhecido e constitui um primeiro véu diante do real, mas sabemos que, se o mantivermos somente nesse nível, a angústia do médico pode ficar escondida sob essas questões.
Em um dos espaços convocados pelo Departamento de Saúde do Governo da Catalunha, chamou-me muito a atenção a pergunta que um médico fez ao professor: “posso me opor em um único caso?”. Perguntei-me o que seria opor-se em um único caso. O professor respondeu-lhe em termos legais. A orientação do Departamento de Saúde indica que existem outros mecanismos para recusar-se a intervir em um único caso sem que seja necessário ser objetor, como o conflito de interesses – isto é, a recusa a atuar por outros motivos, tais como a proximidade pessoal com o paciente –, ou, também, coloca-se como exemplo que o médico possa sentir-se desconfortável se considera que pode haver soluções terapêuticas.[2] Há, ali, uma confusão.
Se dizer “não” implica em ser objetor de consciência e retirar-se do caso, colocado assim implica que se faz necessário responder “sim” a todas as solicitações nas quais estejam preenchidos os requisitos, deixando o médico como mero executor da lei. Nessa operação, a demanda é reduzida a um dado objetivo, fechando o acesso ao desejo e ao possível trabalho da demanda. Essa questão me interessou porque me parece que o “não” nos permite pensar no ato do médico com mais clareza.
Minha tese principal para o trabalho de hoje é que o fato de que não se proponha que o médico possa dizer “não” e continuar vinculado ao paciente elimina a dimensão do ato de sua intervenção. Se dizer “não” significa retirar-se do caso, para que serviria o médico? Por isso, considero de máximo interesse estudar aqueles casos em que o médico efetivamente decide que não deve ser praticada a eutanásia e como ele declina a dar continuidade do tratamento com o paciente.
A objeção de consciência ou o ato de dizer não
Dizer “sim” é um ato, mas ao apoiar a demanda do sujeito costuma ser mais fácil esquecer-se disso. Dizer “não” também é um ato, mas, ao se opor à demanda do sujeito, coloca-se em jogo com mais força a posição do profissional e a necessidade de administrar aspectos do caso que comprometem no âmbito da relação entre profissional e paciente.
Um dos limites da decisão do médico é o da lei, mas, nesse marco, a decisão lhe corresponde como agente. Estar diante de uma solicitação de eutanásia não deveria significar realizar um procedimento administrativo ou legal, não se pode reduzir a questão a apenas verificar o preenchimento dos requisitos. Foi dado a esse procedimento o nome de Prestação de Auxílio para Morrer, conferindo ao ato um caráter administrativo, como se fosse da mesma natureza a prestação do auxílio financeiro que se dá a uma pessoa desempregada. Suponho que essa denominação está de acordo com a decisão de não julgar moralmente o desejo de querer acabar com a própria vida, ignorando que qualquer outro significante escolhido também se apoiará sobre uma vertente moral, uma moral vazia própria ao capitalismo, que foraclui o gozo e deixa os sujeitos reduzidos a dados, em consonância com a ideologia autonomista. Supõe-se, assim, eliminar também a angústia do médico quando se afirma que o paciente sabe o que diz e o que quer e o médico apenas deve decidir se aceita ou não sua demanda. Felizmente, o real não se elimina, se desloca. A questão é que esse real possa ser recolhido e trabalhado em algum lugar.
O médico que se responsabiliza por seu ato escuta ou procura escutar cada demanda em sua singularidade e avalia com o paciente o pedido, podendo dizer “sim” ou “não”, ou propor outras soluções ao paciente: podem ser oferecidos cuidados paliativos, mas também pode-se adiar a conclusão oferecendo uma nova sessão, tal como os psicanalistas.
É importante ver como declinam-se as negativas, como se chega a elas. Se o médico considera que não se deve dar continuidade ao pedido, ele irá se retirar do caso? Se ficar, qual sentido terá esse “não”? Tornar-se-á um ato?
Também tenho a impressão, pelas conversas tidas com diversos colegas, de que, quando o médico diz “não” e o paciente o aceita, o caso não entra na consideração de solicitação de eutanásia. Deveriam ser incluídos? Não sei, porque se não é incluído, não se contabiliza, mas, por outro lado, evita-se fixar algo dessa solicitação que certamente não convém fixar. A meu ver, acredito que é especialmente importante trabalhar esses casos, isto é, levá-los em consideração.
Estou prestes a iniciar um pequeno grupo de trabalho sobre esses casos com médicos e enfermeiros que participam do processo de eutanásia em Barcelona. Espero que nos sirva para aprender a partir da experiência.
O ideal da autonomia do sujeito esconde o fracasso da comunicação
O discurso autonomista choca-se com a psicanálise de orientação lacaniana, pela qual operamos a partir do lugar daquele a quem se dirige a palavra, partindo da premissa de um sujeito não tão autônomo, pois é dependente do corpo e do Outro (FREUD, 1930 [1929]/1986, p. 66-67).
A pergunta é a matéria-prima da psicanálise. Contudo, no delírio autonomista, a palavra não se pensa dependente de um desejo, mas sim que o discurso pertence a cada sujeito e que ele tem o direito a que ninguém o intérprete. Qualquer interferência será vivida como uma intromissão paternalista.
Assim, o discurso fica desvinculado do Outro e ao médico não é dado nenhum poder de interpretar o dito. Perguntar geralmente supõe uma dúvida a respeito do juízo de quem fala, seja este o paciente ou o médico. Por isso, se o paciente disse que sente dor, não é necessário questionar: ou acredita-se nele e atua-se em consequência, prescrevendo uma analgesia, ou bem não se acredita nele e abandona-se ele na suposição de quem mente e “apenas” quer chamar a atenção.
A deriva autonomista impede uma verdadeira conversação e, portanto, impede o acesso ao desejo. Se a dor é recebida como um dado, a respeito do qual o médico dirá “verdadeiro ou falso”, elide-se toda a dimensão do gozo, esquece-se que dor é um nome do gozo e que às vezes une à vida, mesmo que seja de uma maneira ruim, pois há ali nela uma forma de elaboração.
Pensa-se uma divisão entre sofrimento físico e sofrimento psíquico – dividem-se as demandas de eutanásia entre aquelas que correspondem a doenças físicas e as de saúde mental –, sendo o físico o verdadeiro e o psíquico, o duvidoso. Esquece-se que, no ser falante, tal distinção é, em certo sentido, arbitrária. De acordo com a lei, um sofrimento físico ou um diagnóstico concreto não são motivo para aceitar a demanda da eutanásia: deve ser irreversível ou insuportável. Essas dimensões não têm sentido a não ser no domínio do falasser, como gozo. Parece-me muito importante distinguir essa dimensão na demanda de eutanásia. Não se trata do insuportável para qualquer um, mas, sim, do insuportável para um. Nem todos os pacientes com a mesma doença no mesmo estágio demandam a morte. Nunca é a mesma dor. Caso contrário, bastará, como acontece com o profissional que considere que tal sofrimento é insuportável, que aceite a demanda sem mais delongas.
Lembro-me da expressão do médico Marc Broggi (2011, p. 156) a respeito do que acontece quando se recolhe uma demanda em sua literalidade, por estar de acordo com o texto da lei. Ele diz que isso é “abandonar o paciente aos seus direitos”.
As demandas recolhem e encobrem o sofrimento e com elas pede-se uma solução. Por isso, nem sempre são claras, nem sempre são exatamente o que se pretendia dizer, inclusive quando são formuladas com clareza. Por isso é necessário questioná-las, para que possam ser ditas de uma maneira melhor.
Como pontua Hoornaert (2003, p. 96), na realidade a qualificação de insuportável não se baseia apenas na avaliação do indivíduo autônomo, mas está contaminada de paternalismo, tendo em vista que é o médico quem decide sobre o insuportável. Mas quando o médico se limita a verificar os requisitos, supõe-se que, ao dizer “sim”, nada do seu desejo está em jogo, porque a operação da medicina atual tenta eliminar da equação o desejo do médico. Por esse motivo, todo ato que não se limite a considerar exclusivamente o juízo do paciente é habitado por uma sombra de liberticídio (HOORNAERT, 2023, p. 96). Um atentado à liberdade do sujeito.
De fato, poderíamos concordar, pois qual ferramenta tem o médico não analisado para evitar sugestionar o paciente? Os psicanalistas também acreditam que o paciente deve tomar sua decisão não influenciado por nós.
É assim que na medicina as decisões dos pacientes são tidas como dados que entram em um algoritmo, e não como manifestações de dor, de medo, de angústia. Já a psicanálise considera que todos esses afetos influenciam na decisão do paciente e o deixam em uma situação de falta de autonomia e de vulnerabilidade que fazem imprescindível não o deixar sozinho no processo de decidir.
Em decorrência dessa maneira de agir, a decisão de morrer pode ser entendida como a firme decisão de morrer quando o próprio médico tem a convicção de que a dor do paciente é insuportável. A psicanálise considera quão insuportável pode ser para um sujeito, e também para o médico, suportar a dor do outro, especialmente quando se é o destinatário da demanda. A obrigação de viver bem, que determina nossa época, deixa no esquecimento que viver é difícil, que há quem não consiga fazê-lo e que é condenado a não ser mais do que um resto se não lhe for permitido falar bem. A obrigação de viver bem dá as costas à obrigação do bem dizer (LACAN, 1973/2012, p. 558) que promovemos, o que supõe deixar o sujeito sozinho com seu gozo.
Na ideologia autonomista, fazer falar, perguntar, é duvidar da palavra, é duvidar da capacidade do paciente. Paradoxalmente, isso deixa o pacienta à mercê de uma decisão que o exclui. Ao contrário, no discurso do analista, perguntar é devolver ao sujeito sua capacidade de responder e fazer-se responsável por suas palavras.
Dizer não, introduzir a conversação
Freud (1915/1984, p. 301), com suas palavras “se quiseres suportar a vida, prepara-te para a morte”, nos encoraja a entender que a demanda de receber a morte deve ser considerada pelo real que contém em seu seio.
Leonora Troianovski, colega da ELP, me contou o caso em que uma mulher pedia a eutanásia depois da morte de sua pequena filha em um acidente. A médica disse rapidamente que não procederia essa demanda, mas, ao mesmo tempo, acolheu o real que emergia dessas palavras: a morte de um filho – como viver depois disso? Cada um deverá encontrar seu caminho, em solidão, mas acompanhado de alguém que possa acolher seu sofrimento e suas palavras. Alguém que possa esperar e dar tempo. Até que se produzam ou se reconheçam outras âncoras para a vida.
Da minha parte, assisti a um caso no qual propor a eutanásia como horizonte surgiu como remédio para acalmar o sofrimento de um paciente bem idoso em um momento de perda do controle transitório das funções corporais, à qual sucedeu uma tentativa de suicídio. Contudo, o paciente não pode dialetizar sua experiência naquele momento e passou ao ato suicida. Já no hospital, a escuta o tranquilizou, revelando as dificuldades sofridas, mas também seus laços com a vida. Não proponho sugerir a eutanásia como possibilidade futura como a melhor solução no caso de se chegar a uma situação irreversível, mas foi a que pode ser realizada naquele momento e que tranquilizou o paciente no sentido de dar-lhe um sentimento de controle, que lhe permitia continuar vivendo.
Durante esse trabalho, outro profissional interpretou esse desejo de morrer como uma demanda de morrer e já se disponibilizava a processar a solicitação de eutanásia. Não teve seguimento, mas é uma demonstração do enlouquecimento extremo que às vezes se produz na situação de uma leitura literal da passagem ao ato. Oferecer a eutanásia a uma pessoa suicida não é uma indicação a ser considerada (JOVELET, 2023). Cada vez há mais suicídios entre pessoas idosas, o que nos confronta com questões a respeito da qualidade dos nossos cuidados.
Por outro lado, e em relação à demanda de eutanásia, também deve ser considerado que tal demanda de pedir pela morte e sua aceitação podem introduzir um limite ao sofrimento que permita situar-se novamente na vida (ANSERMET, 2023, p. 91). Não é rara a proposta que alguns pacientes fazem de adiar a realização da eutanásia depois de já ter sido aprovada. Nesse caso, eles mesmo pronunciam o “não”, uma vez que já foi aprovada sua demanda. Saber que é possível ter certo controle sobre o sofrimento ajuda a suportá-lo.
A posição do médico
Por fim, e no cerne da questão, a clínica da eutanásia também atinge o próprio médico em sua posição ética. Assim, para abordar os aspectos clínicos e éticos, aspectos que dizem respeito à relação entre profissional e paciente, no ano passado propusemos dois espaços na Rede Psicanálise e Medicina,[3] aos quais se juntaram muitos profissionais da saúde. Um primeiro espaço, em junho de 2022, no qual trabalhamos a partir de um texto de referência,[4] e uma jornada, em dezembro de 2022, a partir de uma conversa entre alguns médicos e psicanalistas que introduziram suas reflexões, dúvidas e medos a respeito dos primeiros casos recebidos.[5]
Em um desses espaços, um médico questiona-se a respeito da influência que pode haver para o paciente se for oferecida a eutanásia como uma das possibilidades diante da situação que o acomete, pois nem todos os pacientes estão informados de que esse benefício existe na carteira de serviços.
Parece-me uma boa questão que deve ser esclarecida, como esclarece-se a incógnita nas equações matemáticas. Na demanda de eutanásia, está em jogo a questão da pergunta pelo desejo do outro. Atualmente, se pensa a vida em termos de utilidade, e muitos pacientes, ao ver chegar a fase final de sua vida, dizem para si e para nós: “não sirvo para nada”. Isso pode ter sido dito também em outras épocas, mas, no contexto atual, o paciente pode ver-se reduzido a não ser mais do que uma despesa, questão que se agrava pela falta de tempo das famílias para estarem ao seu lado.
Portanto, às vezes, o pedido de eutanásia pode ser a verificação do desejo do outro, uma pergunta a respeito sobre se, apesar da dependência, ainda se é amado. Por isso, me parece extremamente importante que não seja considerado objetor quem considera que deve dizer que não autoriza a prática da eutanásia. Não deve se ver obrigado a se retirar do caso, mas deve poder continuar para sustentar seu ato.
Para concluir, da mesma maneira que não consideraríamos o desejo de matar o outro levianamente nem como algo a ser discutido, convém não se colocar inteiramente à disposição diante da demanda de receber a morte. Hoornaet (2023, p. 99) sugere, inclusive, não aprofundar o assunto, pois se trata de uma tendência a ser contida. Ou seja, às vezes não se trata de fazer falar sobre isso, mas sim do contrário, de fazer calar.
Acontece que, na psiquiatria, o diagnóstico de incurabilidade levaria a poder praticar a eutanásia de maneira absolutamente louca. Repensar a psicose como uma posição pessoal, e não como doença, dá outra dimensão ao seu tratamento. Também dá espaço a repensar o papel do psiquiatra que, hoje, em muitos casos, está alinhado com a promessa terapêutica e pode esquecer o papel testemunhal e de acompanhamento que lhe cabe (DEWAMBRECHIES-LA SAGNA, 2018, p. 11).
Da minha parte, e considerando que minha área é a saúde física e não a saúde mental, parece-me importante que o paciente possa sentir sempre que sua demanda é acolhida por aquilo que nela circula do sofrimento, do mal-estar de viver, portanto, do gozo, e que está ligado a uma palavra. Acredito que é o que se obtém das vinhetas aqui apresentadas.
Como sempre, o trabalho que fazemos na intersecção entre a psicanálise e a medicina nos leva a questionar a respeito da função do médico. O impulso a curar tudo leva ao ponto de limite da impotência da medicina equiparada à ciência onipotente e elimina o resto que permitiria continuar trabalhando.
Na ética médica, a reflexão somente deve surgir diante dos casos também nos processos de eutanásia. Como na psicanálise, a revisão do ato deveria ser posterior. Do contrário, sustentaremos que é possível controlar o ato antes, que é possível eliminar o real da morte.
Até aqui chegam as elaborações que consegui articular para trabalhar hoje. É difícil estar à fronteira do processo de atender solicitações de eutanásia, há um real em jogo.
O incalculável está sempre presente, para o profissional, para o paciente e para sua família. Não se pode prever os efeitos que o ato terá sobre si mesmo. E me parece que é aconselhável deixar permanentemente em aberto algo a esse respeito, impedindo que se feche precipitadamente. O trabalho sobre o próprio inconsciente e sobre a clínica dos casos é o caminho.