Ondina Machado
Psicanalista, membro da EBP-RJ/AMP
E-mail: ondinamrm@gmail.com
Resumo: Em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise? Se A Mãe existe, sob a perspectiva da norma fálica, e A Mulher não existe, conforme formulado por Lacan, o que é um filho para uma mulher? Considerando que uma mulher não pressupõe um filho, fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, excluindo o lado não-todo fálico no qual ela também pode se situar. Uma mulher não pode não querer ser mãe? A criminalização do aborto quer punir essa mulher, desconsiderando que o filho não é solução para todas as mulheres. Assim, a criminalização do aborto compromete a assunção do desejo por um filho. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho?
Palavras-chave: criminalização do aborto; mulher; mãe; desejo.
IMPLICATIONS OF THE CRIMINALIZATION OF ABORTION THROUGH THE LENS OF PSYCHOANALYSIS
Abstract: What would the criminalization of abortion imply from the point of view of psychoanalysis? If The Mother exists, from the perspective of the phallic norm, and The Woman does not exist, as formulated by Lacan, what is a son for a woman? Considering that a woman does not presuppose a son, to make abortion a crime is to make every woman The mother, excluding the not-all phallic side in which she can also find herself. Can a woman not want to be a mother? The criminalization of abortion wants to punish this woman, disregarding that the son is not the solution for all women. Thus, the criminalization of abortion compromises the assumption of desire for a son. How can a woman sign this desire if she is required by law to have a son?
Keywords: criminalization of abortion; woman; mother; desire.
Proponho nos centrarmos na questão da “criminalização” do aborto, e não no aborto em si, porque entendo que a decisão de abortar cabe a cada mulher. Mas gostaria de pensar com vocês em quê implicaria a criminalização do aborto sob o ponto de vista da psicanálise. Sobre isso acho que posso dizer alguma coisa.
O desejo materno:
Supõe-se que o desejo materno é inerente à mulher. Aquela que não deseja um filho entra em um escaninho à parte, é uma aberração. As soluções freudianas do Édipo também levam em conta que mulher e mãe se equivalem ou, pelo menos, que a maternidade tem papel fundamental na vida de uma mulher. Não podemos mais dizer isso nos dias de hoje.
A discussão sobre criminalização do aborto demonstra que filho não é solução para todas as mulheres. A criminalização do aborto pune a mulher que se recusa a ser mãe, pelo menos naquele momento. Como assim? Uma mulher não pode não querer ser mãe, independente das condições em que essa gravidez ocorreu? Ela estaria negando sua vocação natural, biológica e social?
Sabemos que, na criminalização, a questão é que o desejo da mulher não entra nessa discussão. Sabemos também que existem outras “intenções”, como o controle do corpo feminino pelo patriarcado, a manutenção do poder sobre ele e uma misoginia estrutural que Freud chamou de “rechaço à feminilidade”. Assim, gostaria de apresentar a vocês o que seria um filho sob o ponto de vista da psicanálise.
O que é um filho para uma mulher? Reforço a pergunta destacando o “para uma mulher”. Costumamos fazer essa pergunta de outra maneira: o que é um filho para uma mãe? No entanto, quero propor pensar o filho para alguém que ainda não o tem, que ainda não é mãe, que não pretende ser, nesse momento ou mesmo nunca.
Uma mulher não pressupõe um filho; uma mãe, sim, esta pressupõe um filho, mas uma mulher não. O aborto entra na vida de uma mulher exatamente nesse momento, quando ela não quer ser mãe.
Um filho não é um dado natural na vida de uma mulher. Quando uma mulher quer ter um filho é porque ela supõe que ele lhe falta, falta imaginariamente como um complemento. Não ter um filho pode ser entendido, por essa mulher, como uma falta, por muitos motivos. Ou porque ela entende que ser mãe é uma consequência socialmente prevista, ou por querer dar um filho ao seu parceiro, ou, ainda, porque é algo que ela quer viver como uma experiência de cuidado ou da própria gestação.
A relação amorosa não supõe um filho, nem a heteroafetiva, nem a homoafetiva. Mas vamos examinar essa parceria pelo ponto de vista do casal homem e mulher, sabendo que não é o gênero que define as posições no amor, e sim o modo de gozo.
Vamos ao clássico:
Supõe-se que o homem coloca uma mulher como causa de seu desejo, o que faz daquela mulher um sintoma para aquele homem, e faz daquele homem um amante para aquela mulher. Nada a ver com filho. O filho não entra na parceria amorosa, o filho é uma parceria da mãe com o próprio filho.
A fala de Jair Bolsonaro sobre as mães solo como “mães sem marido” mostra o erro sobre o que é um filho para sua mãe. A mãe, em tese, não precisa de marido, e isso se demonstra na multidão de mães que criam seus filhos sozinhas. O pai entra como aquele que, por amor, vai cuidar dos filhos dela. Aqui podemos identificar uma das maneiras pelas quais fica evidente que a relação sexual não existe: não existe como relação porque cada um quer uma coisa diferente; diferente e não complementar.
Chegamos, então, à fórmula lacaniana na qual um filho é o objeto a para uma mãe. Esse é um ponto que considero de suma importância para pensar a criminalização do aborto e suas consequências, pois fazer do aborto um crime é fazer com que toda mulher seja A mãe, é encerrar toda mulher no regime fálico, excluindo o lado nãotodo fálico no qual ela também pode se situar. Mas vejamos isso com calma.
A mãe e a mulher:
No Seminário 20, ao mesmo tempo em que Lacan diz que A Mulher não existe, ou seja, que não há uma representação inconsciente que universalize o ser mulher, ele diz também que “a mulher só existe como mãe” (LACAN, 1972-73/1985, p.133), ou seja, somente A mãe entra como um significante que se representa para outro significante. A Mãe existe, A Mulher não existe.
Dizer que A mãe existe é colocá-la no lado fálico da sexuação, é tomá-la sob a perspectiva da norma fálica, portanto, pela visão do homem, do patriarcado, sobre a mulher. Nada a ver com a mulher. Dá para entender o raciocínio de Lacan, pois, para o homem, como todo alicerçado no falo, existe A mãe, ele sabe o que é uma mãe. O que ele não sabe, nem nós as mulheres sabemos, é o que é uma mulher. Cada uma terá que construir seu ser de mulher na articulação do corpo com o significante.
Pensem isso no macro:
Uma cultura falocêntrica só pode incluir em si A mãe. É sempre como mãe que as mulheres entram no social, nas políticas públicas, por exemplo. É como mãe também que as mulheres são idealizadas, é como mãe que elas são “as rainhas do lar”.
Com as mulheres não se sabe o que fazer, não se sabe lidar com seus corpos sangrantes, sua TPM, sua menopausa, seu destemor, seu “dom de iludir”, enfim. O espaço público é para as mães, para as mulheres só o privado. As políticas e as leis não contemplam o desejo das mulheres, porque dele nada se sabe e, assim, torna-se temerário. Por isso dão uma resposta que aprisiona a mulher: deduzem que toda mulher quer um filho.
Agora voltemos ao micro, ao “a cada mulher”:
A criminalização do aborto, então, recai sobre a mulher, comprometendo a assunção do desejo por um filho pois, se a lei obriga, como saber se se quer, ou não? Assim, as mulheres, efetivamente, não podem decidir, nem tampouco se responsabilizarem pela decisão, afinal foram obrigadas. A criminalização impõe um permanente “sim” como resposta, na medida em que dizer “não” obriga a buscar soluções fora da lei. Leva as mulheres a uma transgressão perigosa que põe suas vidas em risco, em especial a das mulheres pobres que ficam sujeitas a abortos em péssimas condições técnicas e de higiene. A ONG Rede Feminista de Juristas reporta mais de 850 mil abortos ao ano, pelos dados de 2017, a maioria deles sem condições adequadas.
E aqui podemos ver que quem é excluída é a mulher, não a mãe. Somos minoria por essa exclusão, não pela quantidade de nós na população, mas pela exclusão de nosso ser de mulher.
Mas um filho não é só da mãe, vocês me diriam. Sim, um filho é o resultado de uma demanda por um complemento imaginário articulado a uma lei. O resultado dessa articulação é o desejo. A lei à qual Lacan se refere é associada ao pai, à função pai. O que é essa função? Como função, ela se descola da figura do pai. Lacan coloca nesse lugar o pai real, não o pai imaginário, nem o pai simbólico. Como real, ele é contingente, é sem palavras, é um lugar vazio de significação. Como função, pode ser exercido por qualquer um ou por qualquer coisa: o pai da mãe, a mulher da mãe, o trabalho, outros filhos, outros homens. O que importa é que haja uma articulação entre a pulsão e uma ordenação simbólica que inclua o objeto a/filho na subjetividade da mãe como uma promessa de satisfação, ou seja, como um semblante do que lhe falta. Vejam como aqui se separa a mãe da mulher: o filho é um objeto da fantasia da mãe, portanto, está no mesmo lugar do objeto fetiche, objeto de um gozo fixado, pré-determinado na fantasia e independente de suas características, ou seja, o objeto é tomado como um tampão, um simulacro. Já quando pensamos no filho articulado a uma rede simbólica, trata-se de um lugar de objeto que pode deslizar para diferentes formas de satisfação. Se fixado, é gozo e exclui a cadeia significante, exclui o Outro. Quando o objeto ocupa um lugar simbólico, ele cria uma demanda endereçada ao Outro e instaura o desejo que, justamente por ser desejo, não se fixa. É a famosa frase de Lacan: só o amor permite ao gozo condescender ao desejo. É essa dialética que separa o corpo da mãe do corpo do filho, é o que faz com que a mãe assine um desejo pelo filho supondo que ele vá satisfazê-la. O desejo não pode ser anônimo, no sentido de ser o desejo de alguém e não de qualquer um, ou mesmo a obediência a uma lei. Como uma mulher pode assinar esse desejo se for obrigada por lei a ter o filho? É essa assinatura que fará de uma mulher mãe de um filho. Um filho, caso ele saiba fazer semblante de complemento, se torna um sintoma na subjetividade da mãe.
Vejam que o problema da criminalização do aborto recai sobre umas e não outras, pois aquelas que querem ter, podem ter.
Gostaria de encerrar minha participação com uma vinheta clínica que, espero, exemplifique o que falei até aqui.
Vivendo uma vida de muitos excessos, uma mulher descobre que está grávida e, mesmo tendo condições financeiras para abortar, descobre em si um desejo de ser mãe até então inimaginável. Seguiram todas as recomendações médicas durante o pré-natal por perceber que disso dependeria o futuro do filho.
Minha hipótese é que esse filho, concebido em um momento de vida desregrada, funcionou como um ponto de basta na iteração insana de um gozo que colocava sua vida em risco. Quando seu filho pergunta sobre o pai, ela diz não saber quem é, que o que sabe é que o queria como filho.
A maternidade como um desejo, e não uma condição, fica bem clara na definição que Romildo do Rêgo Barros (2003, p. 130) dá sobre o desejo materno: “O que pode definir uma mãe não são as prerrogativas do personagem, nem sequer o lugar na família, mas o fato de ser um desejo”.
Referências