VÉRONIQUE VORUZ
Psicanalista, AE da NLS e da ECF /AMP
verovoruz@me.com
Resumo: A autora correlaciona o estatuto do falasser, reduzido a material humano, e a interpretação analítica, na medida em que, alienado ao imperativo capitalista de consumo, o sujeito se deixa desabonar de sua honra. A autora sublinha que é sobre isso que a interpretação deve intervir, a fim de lhe restituir sua dignidade de sujeito barrado.
Palavras-chave: material humano; interpretação; vergonha; dignidade.
Interpret the human material
Abstract: The author makes a connection between the parlêtre reduced to human material, and analytical interpretation. Trapped in the capitalist condition of unbridled consumption, the subject allows to be discredited of its honor, and this is where the analyst intervenes in order to restore the subject to its dignity as a barred subject.
Keywords: human material; interpretation; honor; dignity..
Keywords: human material; interpretation; honor; dignity.
Meu título, interpretar o “material humano”, resume, a meu ver, a alternativa que Lacan oferece a “revolução”, no Seminário XVII, “O avesso da psicanálise”, desde que se dê à palavra “interpretar” o sentido de intervenções, e não o sentido de dizer aquilo que significa o que o falante ou escritor diz. A expressão “material humano” é apontada por Lacan na aula II desse seminário nos seguintes termos:
“O sinal da verdade está agora em outro lugar. Ele deve ser produzido pelos que substituem o antigo escravo, isto é, pelos que são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis tanto quanto os outros. Sociedade de consumo, dizem por aí. Material humano, como se enunciou um tempo — sob os aplausos de alguns que ali viram ternura” (LACAN,1969-1970/1992, p. 30).
Sem dúvida, o termo se refere a uma certa leitura[2] do século XX, um século confrontado com a questão da gestão das populações, dos seres vivos, numa escala sem precedentes. É isso que dará origem, a partir do final do século XIX, às práticas que Foucault reunirá sob o nome de “biopoder” ao final de seu curso de 1976, “É preciso defender a sociedade”. Lembremos que esse é um curso que termina com uma análise crítica dos racismos de estado no coração dos totalitarismos do século XX.
Quanto à metaforização do termo “interpretação” pelo de “intervenção”, é Lacan quem a opera na mesma página, quando se prepara para formalizar na lógica as “intervenções do analista” e, certamente, não é por acaso que, na página 30, ele oporá o nome de Lacan ao de Paul Ricœur, filósofo da hermenêutica. Tanto para o título, que encontrará múltiplas ressonâncias ao longo deste texto — e sobre o qual concluirei com referência ao último capítulo do mesmo seminário, “O poder dos impossíveis” — quanto para o novo significante que Lacan introduz ali, o da vergonha, a vergonha de viver uma vida reduzida ao primum vivere, que a sociedade de consumo oferece como único “ideal”.
Uma descontinuidade epistêmica
Ao reler “O avesso da psicanálise” no último verão, depois de um ano fazendo um seminário sobre “Radiofonia”, eu disse a mim mesma que se tratava realmente de um seminário sobre a interpretação. De fato, mesmo que, para Lacan, a interpretação nunca tivesse consistido em postular uma linguagem-objeto (aquela do analisante) que pudesse ser traduzida por meio de uma chave de decodificação — a lecton[3] dos estoicos, de quem ele faz pouco caso em “Radiofonia” — ou de uma metalinguagem, por acréscimo de significação, o Seminário XVII introduz uma descontinuidade epistêmica. É a partir desse Seminário que a ênfase será realmente colocada por Lacan, de um lado, no tratamento do gozo e, de outro, na estrutura como distinta do sentido.
É, aliás, nesse ponto que, em “Radiofonia”, Lacan se distanciará de Lévi-Strauss e da corrente estruturalista, para a qual o sentido é efeito do conjunto da rede significante e que desconhece a incidência do objeto a. Os pontos de apoio de Lacan passarão então a ser Malinowski e Marx, dois autores que têm um lugar conceitual; o primeiro, com relação ao búzio, uma concha que só tem valor de troca para os Argonautas do Pacífico, o outro, para a chamada mais-valia “foracluída do discurso capitalista” (LACAN, 1970/2003, p. 423). Esses dois autores abrem, assim, o campo da economia do gozo, e o que interessará a Lacan a partir de agora será intervir na economia do gozo.
Recordemos que o Seminário XVI: “de um Outro ao outro” foi aberto sob a égide desta frase: “a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala” (LACAN, 1968-69/2008, p. 11). Dizer que a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala é dizer adeus à verdade que, supostamente, se revela pela palavra através das formações do inconsciente e reorientar a teoria analítica no discurso como estrutura, máquina ou matriz, tendo um produto (encontra-se aí, portanto, o termo usado por Lacan na citação inicial, os seres humanos sendo “produtos consumíveis como quaisquer outros”).
Aqui está o terreno pronto para se ouvir a intervenção radical que Lacan propõe ao seu público em “O avesso da psicanálise”: interpretar não é dizer o que alguém ou alguma coisa quer dizer — esta é a degradação aflitiva a que as práticas psicoterapêuticas submeteram a invenção freudiana e que se encontra a cada passo da vida contemporânea — nem mesmo substituir uma verdade por uma outra, um princípio alternativo de inteligibilidade que permite outra leitura que não aquela anteriormente hegemônica (pensemos, por exemplo, nas interpretações mais conhecidas de Foucault: as prisões não são uma humanização de castigo, mas uma disciplinarização dos corpos; as proibições sexuais não são uma censura, mas uma incitação a falar de sexo, etc.). A partir de então, interpretar visará, sobretudo, a extrair o ser falante do registro da verdade: “é tentador sugar o leite da verdade, mas é tóxico” (LACAN, 1969–70/1992, p. 175): intervir, portanto.
Cartografia da intervenção
A partir dos elementos trazidos a título de introdução, várias modalidades de intervenção se articulam, se desdobram, se ampliam no seminário, bem como no texto “Radiofonia”, que Lacan escreveu durante aquele ano de seu ensino em resposta a diversas questões, muito informadas pelo Lacan dos Escritos, de um jornalista da RTB, Robert Georgin. Vou, portanto, desenvolver uma série de pontos, que apresento aqui brevemente, antes de entrar em mais detalhes:
- Ato analítico
Em primeiro lugar, gostaria de fazer a ligação entre o ato analítico tal como Lacan o havia elaborado em “O ato analítico”, “A lógica da fantasia” e a “Proposição de 67”, e o ato analítico tal como ele especifica no Seminário XVII.
- Interpretação-deslocamento
O deslocamento é destacado por Lacan em oposição à dialética, movimento da negatividade da linguagem formalizado por Hegel visando à realização do real por sua incorporação dialética ao pensamento (Aufhebung). A dialética pertence ao registro da verdade, ou mesmo em seu horizonte, ao da coincidência entre saber e verdade, enquanto o deslocamento é a maneira que Lacan escolhe, a partir do Seminário XVI, para operar com a linguagem a fim de produzir um efeito de interpretação que não esteja no registro da verdade.
- Interpretação e semi-dizer
No início do Seminário XVII, Lacan situa a modalidade de intervenção do analista como o agente do discurso analítico no registro do semi-dizer. Ele dá dois exemplos: a citação e o enigma, duas técnicas que se baseiam na dissociação entre enunciação e enunciado e que têm a vantagem de colocar o analisante numa posição de implicação subjetiva.
- Da metáfora e da metonímia como operações sobre o gozo
Em “Radiofonia” Lacan desloca o sentido dado a esses termos da linguística para torná-los operações, não mais sobre o sentido, mas sobre o gozo:
“É que não metaforizo a metáfora nem metonimizo a metonímia para dizer que elas equivalem à condensação e à transposição no inconsciente. Mas desloco-me com o deslocamento do real no simbólico, e me condenso para dar peso a meus símbolos no real, corno convém para seguir o inconsciente em sua pista” (LACAN, 1970/2003, p. 418).
Observamos aqui a falta de referência ao imaginário na formulação de Lacan: trata-se de operações sobre a estrutura.
- O seixo na poça[4] na vergonha de viver
O último capítulo do Seminário XVII propõe uma nova modalidade de interpretação: a interpretação pela introdução de um significante novo; não o lecton que permite grampear significante e significado segundo os usos em vigor, ou seja, o ponto de basta entendido sem a determinação que Lacan lhe pretendia dar, mas um significante que, como o medo em Athalie, desenvolvido no Seminário III, é “seixo na poça” que perturba o senso comum.
O ato analítico no Avesso
Nos seminários que precederam a “Proposição”, o ato analítico era tratado ao nível da passagem a analista, passagem que deveria ser demonstrada no dispositivo do passe. Na aula II de “O avesso da psicanálise”, após sua referência ao material humano, Lacan passa, imediatamente, a dizer que o que nos concerne agora é “interrogar do que se trata no ato psicanalítico” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 30). Há uma ligação, portanto, entre o estatuto dos seres falantes reduzidos ao estatuto de material humano e o ato analítico: o analista deve intervir sobre esse material humano, restituir-lhe sua dignidade de sujeito barrado, desagregá-lo da lógica de massa na qual está preso, governado pela burocracia que Éric Laurent chama, com Hegel, de “nova clericatura dos funcionários do universal”[5] (LAURENT, 2003, tradução nossa).
A referência implícita de Lacan nesse capítulo é Alexandre Kojève, para quem “é a extensão da forma ‘burocracia’ que é o elemento essencial da civilização” (LAURENT, 2003, tradução nossa) no pós-guerra. É o que Lacan vai traduzir em termos da passagem do discurso do mestre para o discurso universitário, ou seja, o advento do saber no lugar de agente para fins de gestão do material humano. Reconhecemos aqui também o que Foucault denominou biopolítica em seus cursos no Collège de France na década de 1970, isto é, o governo da espécie humana apreendida pelo viés de suas características biológicas, e não mais como indivíduos especificados, senão pelas categorias que os ordenam. Esse governo se dá pelo viés de um saber estatístico e de cálculos de probabilidade respaldados pela norma. De fato, se o indivíduo é ingovernável, as massas não o são: a imprevisibilidade do comportamento de um determinado humano se desvanece diante da previsibilidade estatística dos comportamentos de massa (por exemplo, não sabemos qual indivíduo vai se divorciar, mas sabemos que um em cada dois casamentos resulta em divórcio).
Eis aqui, portanto, o contexto no qual Lacan visa intervir, e não interpretar, fazendo uma análise crítica de seus recursos ou desvelando a verdade de opressão ou de relações de dominação, como os marxistas faziam sem grande efeito. É por isso que, em “Radiofonia”, Lacan ironizará o termo revolução, útil ou fútil, que é sem efeito sobre a estrutura, ao contrário das rotações de discurso identificadas por Lacan e às quais acrescenta a rotação realizada pelo discurso analítico.
É, portanto, com essa finalidade de operar sobre a estrutura (cf. resposta à pergunta IV de “Radiofonia”) que vem à tona uma nova acepção do ato analítico. Cito Lacan em “O avesso da psicanálise”:
“Não vou considerá-lo no nível onde eu esperara, há dois anos, poder fechar o circuito — que ficou interrompido — do ato em que se fundamenta[6], em que se institui como tal o psicanalista. Vou considerá-lo no nível das intervenções do analista, uma vez instituída a experiência em seus limites precisos” (LACAN, 1969-70/1992, p. 30).
O primeiro ato do analista é, portanto, “instituir a experiência em seus limites precisos”, antes mesmo de poder intervir. Aqui encontramos uma bela metáfora de Lacan sobre o S2, saber que não se sabe, em relação com a necessidade que o analista institui a experiência:
“Esse ventre é aquele que dá, como um cavalo de Tróia monstruoso, as bases para a fantasia de um saber-totalidade. É claro, porém, que sua função implica que de fora venha alguma coisa bater à porta, sem o que jamais sairá nada dali. E Tróia jamais será tomada” (LACAN, 1969-70/ 1992, p. 31).
Com essa metáfora imaginada, Lacan introduz o agente-analista do discurso analítico. Seu primeiro ato, sua primeira intervenção, é, portanto, vir “bater à porta”. Em que isso consiste? Nesse capítulo, Lacan se inspira na filosofia, no qual ele acabara de dizer que ela fez com que o Discurso do Mestre fosse permutado no Discurso da Universidade: nisso ele ensina sobre que um agente pode não revelar uma verdade, mas introduzir uma rotação dos discursos e, portanto, operar não no sentido, mas na estrutura. Isso nos permite fazer a ligação com meu segundo ponto, a interpretação-deslocamento.
Interpretação-deslocamento
Lacan não explica, ele opera mostrando. O que o Seminário XVII demonstra não é uma interpretação do momento presente, mas o efeito do deslocamento, essa Entstellung freudiana à qual Lacan dá todo o peso ao sentido do deslocamento em “Radiofonia”:
“Pena que, por um retorno a Freud em que gostariam de se mostrar superiores a mim, eles ignoram a passagem do Moisés em que Freud deixa claro ser assim que entende o Entstellung, a saber, como deslocamento, porque, apesar de arcaico, é esse, no dizer dele, seu sentido inicial” (LACAN, 1970/2003, p. 418).
Voltarei mais tarde à frase que se segue à passagem de “Radiofonia” — “Fazer o gozo passar para o inconsciente, isto é, para a contabilidade, é, de fato, um deslocamento danado” (LACAN, 1970/2003, p. 418) —, no meu ponto 4. Procuro aqui fazer a ligação entre o deslocamento e o ato do analista instituindo a experiência. Recordemos aqui o que todos em nossa comunidade sabemos: “O avesso da psicanálise” é o seminário em que Lacan formaliza seus quatro discursos a partir dos três impossíveis freudianos: governar, educar, psicanalisar, aos quais ele acrescenta o feminismo. Divididos entre impotência (Discurso Universitário e Discurso Histérico) e impossível (Discurso do Mestre e Discurso Analítico), eles dão conta da linguagem como estrutura que inclui um efeito mais-de-gozar específico a cada um. O sentido não tem lugar aí, ou melhor, só tem seu lugar aí como sentido gozado.
Dois pontos aqui:
- Deve-se notar que à Questão VII, de Georgin, sobre os três impossíveis freudianos, Lacan responde distinguindo analisar e curar: “Governar, educar, curar, portanto, quem sabe? (LACAN, 1970/2003, p. 444). No que diz respeito ao Discurso Analítico, seu objetivo, de fato, não é a cura.
- O analista como agente do discurso tem a função de efetuar um deslocamento, ou seja, introduzir uma permutação que Lacan chama de “a histerização do discurso” (LACAN, 1969-70/1992, p. 31). Por que essa histerização é necessária? Lacan continua: “a histérica fabrica como pode, um homem — um homem que seria animado pelo desejo de saber” (LACAN, 1969-70/1992, p. 31). Essa frase enigmática da página 31 pode ser esclarecida à luz do que disse Lacan em Vincennes, que se encontra no “Analyticon”, na página 193: “Quero um homem que saiba fazer amor”, frase que pode ser distribuída nos respectivos lugares do Discurso Histérico: $ = eu quero; S1 = um homem; S2 = que sabe; a = fazer amor. Ou ainda, a histérica quer que o outro produza um saber sobre aquilo que causa seu desejo. E Lacan acrescenta:
“Não estará aí, afinal, o próprio fundamento da experiência analítica? Pois digo que ela dá ao outro, como sujeito, o lugar dominante no discurso da histérica, histeriza seu discurso, faz dele um sujeito a quem se solicita que abandone qualquer referência que não seja a das quatro paredes que o envolvem, e que produzam significantes que constituam a associação livre soberana, em suma, do campo” (LACAN, 1969-70/1992, p. 32).
Eis, então, o efeito da permutação operada pelo analista no lugar de agente no Discurso Analítico, no início da experiência analítica: bater de fora sobre o ventre do Outro para que surjam os significantes-mestres, mestres do destino do sujeito sem que ele saiba.
Mas outras interpretações-deslocamentos estão em jogo nesse seminário e no escrito contemporâneo que é “Radiofonia”:
- Deslocamento radicalizado da psicanálise do imaginário em direção ao simbólico, esse deslocamento sendo modelado na passagem da ciência-conhecimento (intuição, imaginação, a priori) para a ciência-saber (fórmulas que só podem ser verificadas a partir de seus produtos, como o LEM[7] do pouso lunar e as leis de Newton). A referência de Lacan aqui é ao trabalho do epistemólogo Alexandre Koyré, Do mundo fechado ao Universo infinito;
- Deslocamento das referências e disciplinas conectadas à psicanálise das ciências humanas (etnologia, antropologia, linguística) em direção às ciências duras e à poesia, ou seja, em direção à estrutura e seu produto, por um lado, e em direção à materialidade da linguagem, por outro — assim, a frase de “Radiofonia”: “pois o poeta se produz por ser… devorado pelos versos/vermes [vers] que encontram entre si o seu arranjo, sem se incomodar. Isso é patente” (LACAN, 1970/2003, p. 420);
- Deslocamento do estatuto do corpo em direção à sua forma lógica, ou seja, superfície de inscrição dos significantes do Outro, corpse, correlacionado aos instrumentos do gozo;
- Deslocamento do inconsciente-verdade (inconsciente como dispositivo hermenêutico para todos os propósitos) para modos de gozar formalizados pelos discursos;
- Deslocamento de Freud e sua crença no Pai em direção a um tratamento da matéria linguageira e do efeito de sentido, etc.
A interpretação por deslocamento está, portanto, no cerne desse momento do ensino de Lacan. Talvez já possamos ver o rastro disso na escolha que Lacan fez de associar o desejo à metonímia, e não ao Nome-do-Pai, como Miller pôde comentar em um de seus comentários sobre o Seminário VI, “Mais além do Édipo”[8]. No entanto, a máquina dos discursos, os quadrípodes, como Lacan às vezes os chama, permite estreitar justamente a função do analista-agente, ocupando como objeto-causa o lugar que é o do mestre no DM — “Ele, o analista, é que é o mestre. Sob que forma? (…). Por que sob a forma de a?” (LACAN, 1969–70/1992, p. 33).
Interpretação e semi-dizer
Tendo introduzido o primeiro ato do analista como sendo o de produzir a rotação dos termos do discurso em Discurso Histérico nessa bela aula II, Lacan propõe dois tipos de interpretação sustentáveis analiticamente, o enigma e a citação, que são duas formas do semi-dizer. Ele introduz o enigma com muito humor, com as seguintes frases: “O que é a verdade como saber? (lembremos que, no Discurso do Analista, o saber é produzido no lugar da verdade) Seria o caso de dizê-lo: — Como saber sem saber? É um enigma. Esta é a resposta — é um enigma” (LACAN, 1969-70/1992, p. 34).
Enigma e citação têm em comum o fato de serem ditos apenas pela metade, o que é “o próprio da verdade”. Lacan retoma então o enigma que a Quimera coloca ao Édipo. Não resisto em citar algumas frases do texto de Lacan:
“E a Quimera propõe um enigma ao homem Édipo, que talvez já tivesse um complexo, mas não certamente aquele ao qual haveria de dar seu nome. Ele lhe responde de uma certa maneira, e é assim que se toma Édipo. À pergunta da Quimera, poderia ter dado muitas outras respostas. Por exemplo, poderia ter dito: — Duas patas, três patas, quatro patas, é o esquema de Lacan. Isto teria dado um resultado completamente diferente. Também poderia ter dito: — É um homem, um homem quando criança de peito. Aí, começou com quatro patas. Prossegue com duas, retoma uma terceira e, no mesmo movimento, sai correndo como uma bala, direto para o ventre de sua mãe. Isto é o que de fato se chama, com bons motivos, complexo de Édipo. reio que vocês vêem o que aqui quer dizer a função do enigma — é um semi-dizer, como a Quimera faz aparecer um meio-corpo, pronto a desaparecer completamente quando se deu a solução” (LACAN, 1969-70/1992, p. 34).
Essa passagem muito engraçada de Lacan indica claramente a disciplina à qual o analista deve se atentar para não virar sugestão, para deixar para o analisante a responsabilidade de seu enunciado, para deixar o campo livre para sua implicação subjetiva. Com efeito, no enigma colocado ao Édipo, não é a Quimera quem interpreta, mas Édipo: “O enigma é provavelmente isso, uma enunciação. Encarrego vocês de convertê-lo em enunciado. Virem-se como puderem — como fez Édipo —, vocês sofrerão suas consequências” (LACAN, 1969-70/1992, p. 34).
E Lacan esculpe uma definição de interpretação adaptada a esse momento de seu ensino: “Um saber como verdade — isto define o que deve ser a estrutura do que se chama uma interpretação” (LACAN, 1969-70/1992, p. 34). Não vou retomar aqui o segundo exemplo, o da citação, a não ser para dizer que, se no caso do enigma, a enunciação está do lado do analista, no caso da citação, ela está do lado do analisante, e aposta “na participação em um discurso pelo leitor suposto” (LACAN, 1969-70/1992, p. 35). Esses dois registros têm em comum o fato de colocar o analisante na posição de ter que completar o semi-dizer por meio dos significantes produzidos por associação livre, dos quais sabemos que “(…) no surgimento ao acaso dos significantes — pelo próprio fato de tratar-se de significantes — não há nada que não se reporte àquele saber que não se sabe (…)” (LACAN, 1969-70/1992, p. 32).
Metáfora e metonímia
Uma das questões que Georgin faz a Lacan visa assimilar psicanálise e linguística em vista do privilégio concedido pelas duas disciplinas à metáfora e à metonímia. Com sua habitual má-fé, Lacan se distancia de Jakobson ao retomar as definições das duas operações significantes:
“(…) substituição de um significante por outro em uma e seleção de um significante em sua sequência, na outra. Daí resulta (e somente com Jakobson, nesse aspecto; para mim, o resultado é outro) que a substituição é feita de semelhanças, e a seleção, de contiguidades” (LACAN, 1970/2003, p. 413).
Lembramos que metáfora e metonímia foram localizadas por Lacan no princípio das formações do inconsciente: a combinação significante permitindo a decifração do inconsciente.
Ora, em “Radiofonia”, em outro deslocamento operado por Lacan, os termos se relacionam com as operações freudianas de condensação e deslocamento, mas na medida em que elas são operações linguageiras sobre o gozo. Assim, vou reler para vocês esta frase já citada anteriormente:
“É que não metaforizo a metáfora nem metonimizo a metonímia para dizer que elas equivalem à condensação e à transposição no inconsciente. Mas desloco-me com o deslocamento do real no simbólico, e me condenso para dar peso a meus símbolos no real, corno convém para seguir o inconsciente em sua pista” (LACAN, 1970/2003, p. 413).
Portanto, não é uma metáfora dizer que a metáfora é condensação, nem uma metonímia dizer que a metonímia equivale a passar o gozo à contabilidade. Por que Lacan insiste em eliminar esses termos da linguística para fazê-los à sua maneira? Porque a psicanálise é uma prática linguageira, ainda que a significação não tenha mais voz no capítulo e que o sentido esteja reduzido a esse efeito de sentido gozado, que é o objeto a. Esta é a definição contemporânea do Seminário XVII: “objeto a, esse grande incorpóreo dos estóicos” (LACAN, 1970/2003, p. 399). É por essa redução do sentido ao sentido gozado, ao mais-de-gozar, que é importante preservar a possibilidade de operações linguageiras sobre o gozo. Assim, a metonímia é redefinida na p. 416 como metabolismo do gozo, enquanto a metáfora “obtém um efeito de sentido (não de significação) a partir de um significante que faz-se de seixo lançado na poça do significa”.
A vergonha de viver
É nessa nova definição da metáfora como pedra na poça do significado que Lacan se apoia, por analogia com o temor de Deus evocado por Racine em Athalie, e que ele havia utilizado para introduzir o ponto de basta[9] em “As psicoses”, para lançar a pedra da vergonha na poça da agitação de maio. O ponto de basta não é a significação que permite decifrar a cadeia significante, mas o que Lacan “condensa para dar peso a meus símbolos no real” (LACAN, 1970/2003, p. 418).
De fato, o capítulo 13 do Seminário XVII começa com as palavras “morrer de vergonha”, depois correlaciona a vergonha não a um significado, mas a um signo: “(…) morrer de vergonha (…). Contudo, é o único signo cuja genealogia se pode assegurar, ou seja, ele descende de um significante” (LACAN, 1969-70/1992, p. 172).
Se lermos bem o que diz Lacan, o signo é definido pela degeneração de um significante. Para compreender essa proposição, volto a me referir a “Radiofonia”, em que o signo é definido como signo do gozo de um ser falante (na p. 411, Lacan fala também do significante que recai no signo). Leio, então, essa proposição de Lacan da seguinte forma: ele impõe, com todo seu peso, um peso que espera ser equivalente ao do temor de Deus, a vergonha que há de viver quando somente o signo de nosso gozo nos representa, e não mais os significantes que governam nosso destino. É a vergonha de viver do material humano animado pelo mais-de-gozar que o capitalismo lhe imprime, preocupado unicamente com sua própria sobrevivência. O primum vivere, única promessa da biopolítica, que se tornou bioeconomia no século XXI, dá origem ao que Lacan chama de “uma fenomenal vergonha de viver” (LACAN, 1969-70/1992, p. 174). A constatação arrepiante do Seminário XVII é que não só as burocracias sanitárias reduziram os seres humanos a material humano, mas que esse material humano é, além disso, excessivo, sem outra função social que a de consumir para que torne sem freios o discurso capitalista, em detrimento da honra de uma vida que assumiria sua dependência em relação aos significantes que a representam.
Se Lacan joga a pedra da vergonha na poça do marasmo contemporâneo, não é para fazer ressurgir a honra, pois só pode haver vergonha se houver desonra? E ele está disposto a pagar com sua pessoa, pois se oferece, na última linha desse magnífico seminário, para ser aquele que “acontece provocar-lhes vergonha” (LACAN, 1969-70/1992, p. 184). Aqui, novamente, Lacan indica o que custa estar na posição de agente do discurso analítico: posicionando-se como a, ou seja, como um olhar sob o qual se pode ter vergonha, ele empresta seu corpo ao deslocamento que tenta produzir para desagregar o material humano e restituir suas letras de nobreza a uma singularidade desvinculada de sua servidão ao mais-de-gozar. O analista não pode estar na posição de agente do discurso analítico sem pagar com sua pessoa.
Conclusão
Para concluir, retomo minha tese inicial segundo a qual o seminário “O avesso da psicanálise” é um seminário sobre a interpretação, tomada nos múltiplos sentidos de intervenção. Lacan, como Freud, se confronta com o mal-estar da civilização, com “os crescentes impasses da civilização”[10]. Diante dos acontecimentos de 68, ele não se detém nas interpretações marxistas que atribuem o mal-estar à opressão ou à dominação, mas problematiza a economia do gozo na era do capitalismo. É ao nível dessa economia que se situa o mal-estar contemporâneo a Lacan, e hoje de forma ainda mais radical. Os seres falantes são cada vez mais produzidos e geridos como objetos, não tendo outro valor além de seu poder de compra; os pobres são excedentários, os ricos são representados apenas pelo sinal de seu mais-de-gozar. O Seminário, livro 17 combina os três tipos de interpretação em psicanálise identificados por Jacques-Alain Miller em “Coisas de Fineza”: interpretação da civilização, interpretação da teoria analítica e interpretação no âmbito do tratamento. O século XX, com seu cortejo de genocídios, sua industrialização da morte, deixou pouca dúvida ao falasser quanto ao seu status obsoleto, substituível. O século XXI não se afasta desta constatação: eutanásia, gestão dos idosos, migrações — climáticas e outras — formam nosso presente, constituirão o nosso futuro próximo. Diante dessa constatação, admiremos a tentativa de Lacan que, com esse significante novo que é a vergonha, tenta devolver a honra às vidas humanas. Verdadeiro fogo de artifício, a teoria analítica se renova com ferramentas operacionais que vão da formalização do discurso analítico ao significante novo, passando pelas figuras do semi-dizer, dando todo lugar à implicação subjetiva que, por si só, permite que um ser falante se responsabilize por sua existência, sem a desculpa do destino.