SANDRA MARIA ESPINHA OLIVEIRA
Psicóloga, analista praticante, membro da EBP/AMP.
sandra_espinha@uol.com.br
Resumo: O texto é um comentário da lição XV de O Seminário, livro VI: o desejo e sua interpretação, de Jacques Lacan, que tem como título “O desejo da mãe”. Trata-se de um comentário proferido no âmbito das Lições Introdutórias do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, dedicadas às Sete Lições sobre Hamlet, que compõem a quarta parte do Seminário VI, de Lacan. Após localizar o momento do ensino de Lacan em que esse seminário é proferido, o texto comenta as principais questões contidas em cada uma das três partes da lição XV, na qual Lacan realça o poder de fascinação de Hamlet como uma obra literária que apresenta o drama do desejo humano e cujo valor de estrutura é equivalente ao de Édipo Rei. O texto acompanha as elaborações de Lacan sobre a prevalência do desejo da mãe como o que desregula, em Hamlet, o acordo entre seu desejo e seu ato, levando-o a procrastiná-lo para realizá-lo apenas no e pelo seu próprio desaparecimento. Para Lacan, Hamlet se debate com o desejo de sua mãe, uma vez que esse desejo não encontrou seu lugar no simbólico em uma relação com a castração, ou seja, com a lei paterna e o falo.
Palavras chaves: Desejo, Hamlet, Édipo, desejo da mãe, falo, castração.
Lessons on Hamlet: Mother’s desire
Abstract: This essay is a commentary on Jacques Lacan’s Lesson XV of The Seminar, Book VI: the desire and its Interpretation, entitled “Mother’s desire”. It is a commentary given in the context of the Introductory Lessons of the Institute of Psychoanalysis and Mental Health of Minas Gerais about the Seven Lessons on Hamlet, which make up the fourth part of Lacan’s The Seminar, book VI. After situating the moment in Lacan’s teaching in which this seminar was given, the text comments on the main issues in each of the three parts of Lesson XV, in which Lacan highlights Hamlet’s fascination power as a literary work that presents the drama of human desire and which structure value is equivalent to that of Oedipus king. The text follows Lacan’s elaborations on the prevalence of the mother’s desire as what disrupts, in Hamlet, the agreement between his desire and his act, leading him to procrastinate it in order to fulfill it only in and through his own disappearance. For Lacan, Hamlet struggles with his mother’s desire since this desire did not find its symbolic place in relation with castration, that is, with the paternal law and the phallus.
Keywords: Desire, Hamlet, Oedipus, mother’s desire, phallus, castration.
Introdução ao capítulo XV do Seminário VI, de Lacan
O Seminário VI, proferido no ano letivo de 1958-1959, faz parte do tempo da construção do grafo do desejo, que surge em sua forma definitiva no texto “Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo”, em setembro de 1960. Junto com “A direção da cura e os princípios de seu poder”, pronunciada em julho de 1958, esse seminário reflete as consequências da passagem, ao primeiro plano, da lógica do significante, quando a primazia do simbólico atinge seu ponto máximo no ensino de Lacan. A ênfase, deslocada das leis da palavra para as leis da linguagem, determina um corte com a tese do reconhecimento do desejo pela palavra plena e a palavra passa a ser a prova da falta-a-ser do sujeito, a prova de que nenhuma palavra apagará esse efeito da palavra sobre o sujeito que é o S(Ⱥ).
O sujeito, definido como um efeito do significante, aparece marcado pela barra intransponível do recalque, índice da discordância fundamental entre o significante e o significado. O desejo torna-se o nome do que do significado resiste ao significante. Inarticulável na palavra, ele não deixa de estar a ela articulado para cada sujeito na particularidade dos significantes das demandas que o Outro lhe proferiu, para além das quais surge a pergunta sobre seu desejo, sobre o que o Outro quer: “Que queres?”. O desejo está nas entrelinhas e somente nas entrelinhas, ele é metonímico, não podendo jamais vir à tona. Dele só há interpretação: o desejo é sua interpretação.
O efeito do acento colocado sobre as leis da linguagem é a concepção da sexualidade como vinculada intrinsecamente ao sistema significante, através de um significante privilegiado: o falo, que se define, nesse momento, como o significante da vida que escapa à mortificação significante do sujeito, vestígio da perda de um gozo primário do corpo que faz deste um corpo humanizado. Como um emblema dessa perda, o falo que tem importância é o falo da mãe, o falo ali onde ele falta. A castração materna é o paradigma da privação que caracteriza a falta feminina como só podendo ser articulada à falta de um objeto simbólico.
Ao partir do fato que a estrutura é o drama do sujeito em relação ao desejo do Outro, vários capítulos desse Seminário serão consagrados às consequências, para todo sujeito, da sexualidade feminina, ou seja, da mãe como mulher. A mãe tem uma relação com o falo e são duas as possibilidades para o sujeito em relação a esse significante: a de sê-lo ou tê-lo. Não se pode sê-lo e tê-lo ao mesmo tempo. Para tê-lo, é preciso a renúncia a sê-lo. Entre a identificação ao falo e a repartição dos papéis sexuais, temos a assunção da castração: para o homem, ele não é sem tê-lo; para a mulher, ela é sem tê-lo.
A introdução do sujeito na dialética do falo supõe a lógica que se desenrola no inconsciente das diversas etapas da identificação, desde a relação primitiva com a mãe até a entrada em jogo do Édipo e da lei. O que se elabora da relação mãe-criança passa, antes, pelo lugar do falo na economia do desejo da mãe, na medida em que a própria mãe o simboliza no falo.
É pela via do desejo da mãe que a criança é confrontada com o falo em sua polaridade imaginária e simbólica. Se, na estrutura pré-edípica, a criança se identifica com o falo imaginário da mãe, a crise propriamente edipiana só se resolve pela castração, pivô da passagem do imaginário à ordem simbólica na qual é o pai que priva a mãe ao dar provas de que o falo é ele quem o tem. Na saída do Édipo, nessa passagem do ser ao ter, o pai faz a lei ao falo imaginário materno, permitindo à criança sair da vacilação infinita entre “ser ou não ser” o falo. De falo imaginário da mãe (φ), o falo passa para o nível significante do desejo do Outro como falo simbólico (Φ), que inscreve a castração no Outro e aparece no imaginário como o que falta à imagem desejada (-φ). No Édipo, o desejo da mãe ganha o sentido sexual de uma orientação em direção ao pai como portador do significante do desejo sexual do Outro materno. Não é mais a criança que oferece seu corpo para ser inteiramente o equivalente fálico do que falta à mãe. O sexual pode, então, se estabilizar fora dela.
Nessa doutrina freudiana clássica, o falocentrismo significa a prevalência de uma ordem simbólica na qual os dois sexos se inscrevem a partir de uma única instância, a fálica, e a partir de dois complexos: o de Édipo e o de castração. O falo é o único símbolo que inscreve no inconsciente o sexual e só conta na diferenciação dos sexos na condição de perder sua naturalidade como órgão.
O capítulo XV, parte 1
A lição XV desse seminário começa com a afirmação de Lacan de que estamos em cheio na clínica, embora ele deixe claro que não fará de Hamlet um caso clínico e tampouco terá como propósito uma análise do inconsciente do autor. Para Lacan, trata-se, antes, de abordar os problemas clínicos e a teoria psicanalítica a partir do extraordinário poder de fascinação de uma obra literária que apresenta o drama do desejo humano. “Se Hamlet tem, para nós, um alcance de primeira ordem, é porque seu valor de estrutura é equivalente ao de Édipo” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 295). O interesse volta-se para o que compõe a estrutura de Hamlet, “em cujo interior pode encontrar lugar a dimensão própria da subjetividade humana (…) o problema da articulação do desejo” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 295-296).
É a partir dessa perspectiva que, antes de apresentá-la, Lacan dá continuidade à leitura das críticas feitas pelos diversos autores sobre Hamlet, destacando as especulações de Ernest Jones e a pertinência do seu comentário de que não se trata de um personagem real. Lacan descarta ou deixa em suspensão algumas críticas, mas também ressalta que seu aspecto inconciliável e contraditório “sugere haver aí algum mistério” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 292). Para Lacan, a existência de tantos Hamlets quanto foram os atores vai além da constatação de uma diversidade e conjuga-se à importância de tudo o que se disse a respeito de Hamlet, mesmo que isso se constitua como “uma ampla gama de opiniões que não se equivalem” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 293) que vão conduzi-lo ao que, para a psicanálise, deve verdadeiramente estar em questão na obra.
O mistério do fascínio por Hamlet é, então, considerado por Lacan a partir dos dois ganchos que ele havia anunciado haver em toda obra de arte:
1- a existência de um fenômeno que é da ordem de uma ilusão, na relação de Hamlet com o leitor ou com o espectador;
2 – o discurso como sendo o que confere ao herói, que é Hamlet, seu mais alto valor dramático.
No primeiro gancho, a articulação da produção do efeito ilusório de Hamlet com a imagem real do espelho côncavo do esquema ótico é uma alusão ao campo do imaginário e aos impasses desse personagem frente à desestabilização que vai sofrer em decorrência da perda de suas coordenadas simbólicas, causada pela revelação do espectro de seu pai, e dos impasses constituídos por suas tentativas de tentar resolver a questão do desejo pelo viés do imaginário.
A imagem real do espelho côncavo representa a porção do corpo que escapa à mortificação significante e que resta inacessível ao sujeito, constituindo-se como algo que não tem imagem e que não passa para o nível especular senão como uma falta. Nesse esquema, o espelho plano representa a matriz simbólica a partir da qual o eu se constitui como totalidade pela forma unitária da imagem do outro que recobre a fragmentação significante do corpo. O corpo é alguma coisa que necessita de um princípio de articulação para sustentar-se, o que Lacan formalizou de diversas maneiras ao longo do seu ensino. Aqui, a imagem do corpo próprio como outro, sustentada pelo enquadramento simbólico do espelho plano, recobre o que concerne à falta, ou seja, à castração. O afeto de jubilação que ela provoca é um desmentido da castração que sustenta o eu em sua função de desconhecimento, podendo vacilar, em sua instabilidade, para a depressão.
A distinção, feita nesse momento, entre o vazio e a ilusão é uma referência à distinção entre o Eu e o Sujeito, entre a ilusão da forma unitária da imagem, que recobre a falta no simbólico, e o que está para além da imagem, como o lugar vazio do sujeito, representado entre um significante e outro.
A aposta de recobrir o vazio pela imagem como uma estratégia do sujeito para não ter que se haver com a castração se traduz, no drama de Hamlet, pelo “lento caminhar em zigue-zague, um lento parto, por vias tortuosas, da castração necessária” (LACAN, 1958-1949/2016, p. 270). Hamlet, “mais capaz que os outros homens de ler o coração e a razão dos outros, é totalmente incapaz de ler os próprios” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 294), diz Trench, citado por Ernest Jones[2]. Preso no circuito especular, ele tenta animar seu desejo dando corpo a algo que passa por sua imagem especular. Na play scene, ele introduz um duplo de si mesmo e o usa como um espelho que se arma, segundo Lacan, não como uma ratoeira para seu tio, mas para ele próprio. Mesmo assim, ele não consegue executar o ato. No lugar deste, a hiperatividade que o invade, e que não deixa de ser uma cobertura de sua inibição, se traduz em uma série de actings outs como resposta ao desejo do Outro.
O espelho, representado pela representação sobre a cena, é insuficiente para desencadear o ato. Ao mobilizar o imaginário e fazer recair a culpa sobre um outro, sobre Claudius, Hamlet permanece de fora, sem se posicionar. Porém, mortificado, ele se recrimina e dirige a si mesmo as injúrias que deveriam designar o seu duplo Claudius: “Vilão, obsceno e sanguinário! Traidor sem remorsos, concupiscente sem coração, vilão baixo e ignóbil!” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 284).
O circuito imaginário das identificações não oferece uma saída para sua inibição, embora mobilize o que nesse campo se constitui como o lugar dos mal-entendidos, das rivalidades imaginárias, do amor e do ódio, das tensões geradas pela pequena diferença e pelo predomínio da agressividade. É o luto do objeto Ofélia que vai articular a falta necessária para estruturar o campo do desejo, constituído pela relação do sujeito com o objeto na fantasia, como uma saída para o enlouquecimento do desejo de Hamlet após a revelação do Ghost.
O segundo gancho refere-se à ordem simbólica, é o gancho do discurso ao qual Lacan faz equivaler o herói e o poeta, como sendo tudo o que escapa ao que se pode dizer sobre a consistência imaginária do personagem. Hamlet torna-se a obra exemplar, pois “o modo como uma obra nos toca (…) da maneira mais profunda, ou seja, no plano do plano do inconsciente, decorre de sua composição” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 295). O que interessa a Lacan é o que compõe a estrutura de Hamlet, na qual “o desejo pode encontrar seu lugar, situado de maneira suficientemente correta, rigorosa, para que ali possam se projetar todos os desejos ou, mais exatamente, todos os problemas suscitados pela relação do sujeito com o desejo” (LACAN, 1958-1958/2016, p. 298). É na medida em que Hamlet nos oferece o lugar do que em nós se esconde como problemático na nossa própria relação com o nosso próprio desejo que o que compõe sua estrutura pode responder por seu efeito.
Para Lacan, que reconhece que a morte do seu pai “marca uma virada manifesta na produção de Shakespeare” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 296), o drama do autor é, todavia, secundário em vista do que compõe a estrutura de Hamlet. Hamlet, diz Lacan, “é o lugar vazio onde podemos situar nossa ignorância” (LACAN, 1958-1958/2016, p. 297). E, uma ignorância situada, acrescenta, “nada mais é do que a presentificação do inconsciente. Ela dá a Hamlet sua força e seu alcance” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 298).
Aqui, a concepção do inconsciente como estruturado como uma linguagem é ilustrada pela representação teatral, pela relação da plateia com Hamlet, ficando claro que, nela, “o inconsciente se presentifica sob a forma do discurso do Outro (…). Ali, o herói só está presente por meio desse discurso, assim como o poeta. Morto há muito tempo, é (…) seu discurso que o poeta nos lega” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 298).
Quanto aos atores, diz Lacan, a dimensão da representação é análoga àquela que constitui nossa relação com o inconsciente. O corpo apresenta-se como o que oferece sua matéria ao significante e se transforma em significante. Cito Lacan:
“…o significante (para ser claro) somos nós que fornecemos seu material (…) com nosso imaginário, isto é, com nossa relação com nosso próprio corpo, já que o imaginário é isto.
(…)
É com nossos próprios membros que fazemos o alfabeto desse discurso que é inconsciente. (…) De modo análogo, o ator empresta seus membros, sua presença, não simplesmente como uma marionete, mas com seu inconsciente bem real, a saber, a relação de seus membros com certa história que lhe é própria” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 298-299).
Na parte 3 do texto, nós vamos ver que esses dois ganchos, o da ilusão, referido ao circuito imaginário do eu, e o do vazio, que situa o sujeito do inconsciente, serão localizados, respectivamente, no piso inferior e superior do grafo do desejo.
Parte 2
Aqui, Lacan retoma o enigma que consiste na inibição de Hamlet quanto ao seu ato, cuja procrastinação ele já havia relacionado com o fato de que, desde o início, Hamlet, à diferença de Édipo, sabe do crime edipiano, revelado pelo espectro de seu pai. Lacan salienta que a resposta da tradição analítica, que repousa sobre o desejo pela mãe, é insuficiente para explicar o fato de Hamlet ser aquele que não sabe o que quer e que se queixa de não fazer nada, embora tenha tudo para fazê-lo. Para Lacan, supor que a autoridade do pai e o amor que Hamlet lhe devota, bem como a tendência a querer defender a mãe e guardá-la para si, impedem-no de atacar Claudius por despertarem em si mesmo um desejo infantil, ressentido como culpável, equivaleria a supor que ele poderia encontrar uma forma de aplacar sua própria culpabilidade, fora de si mesmo, ao atacar seu padrasto.
Lacan se pergunta, então, como Hamlet, movido por essas duas tendências positivas, que deveriam levá-lo a agir, não age? Para Lacan, o que torna o ato difícil e coloca Hamlet em uma posição problemática com relação a ele é o seu desejo, o caráter impuro e não desinteressado desse desejo. A chave do enigma que a tragédia de Hamlet apresenta sobre as vacilações do herói entre seu desejo e seu ato reside na clivagem que Lacan estabelece entre o desejo pela mãe e o desejo da mãe. Há uma oposição entre a normalização edipiana pelo desejo do sujeito pela mãe, que encontra uma saída no complexo de castração, e a desregulação do Édipo, em Hamlet, pelo desejo da mãe. Em Hamlet, o problema é que a castração não é assumida, diferentemente de Édipo, que paga com sua própria castração, pelo crime cometido, furando seus próprios olhos. O que se passa com Hamlet é que ele se debate com o desejo de sua mãe, uma vez que esse desejo não encontrou seu lugar no simbólico em uma relação com a castração, ou seja, com a lei paterna e o falo, tal como se escreve na fórmula da metáfora paterna.
Na cena que ele arma com os comediantes, Hamlet busca um índice da culpa de Claudius e o obtém. Contudo, esse índice não lhe serve para matar Claudius, apesar da oportunidade que lhe é oferecida. O encontro com a mãe, que ocorre após a play scene, mostra que o que Hamlet mais quer é buscar uma resposta da mãe, um limite capaz de freá-la. Esse encontro, que Lacan toma como a cena central da peça, mostra Hamlet conclamando sua mãe a tomar consciência do ponto em que ela está. A partir de seu pai, da ordem, da decência, da dignidade, ele se dirige à mãe para conjugar seu desejo à lei. Ele lhe solicita que respeite o luto por seu pai morto, que “recomponha-se, domine-se, tome (…) a via dos bons costumes, comece por parar de ir pra cama com [seu] tio” (LACAN, 1958-1959, p. 304). Ele faz a diferença entre o herói que é seu pai e o lixo criminoso que é seu tio, mas o desejo de sua mãe os faz equivaler. Hamlet fracassa em tentar conjugar o desejo da mãe à lei paterna. A prevalência do desejo da mãe é o que desregula o acordo entre seu desejo e seu ato, levando-o a procrastiná-lo para realizá-lo apenas no e pelo seu próprio desaparecimento.
As coisas chegam a tal ponto entre Hamlet e sua mãe que o espectro de seu pai reaparece para protegê-la da agressividade do filho. O pai recomenda a Hamlet colocar-se “entre ela e sua alma em conflito” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 304), revelando-se como um pai igualmente submetido ao desejo da mãe, um pai ideal que, no entanto, fracassa em ser a causa desse desejo e leva Hamlet de volta à resposta da mãe, frente à qual ele se curva. O pai falha em fornecer a Hamlet a orientação do desejo por uma mulher e de uma mulher.
Ao não encontrar seu lugar no simbólico, o insaciável do desejo da mãe se traduz no imaginário pela figura de um abismo que ameaça o sujeito de destruição, em sua oferta inútil de satisfazê-lo. Na alternância entre ser ou não ser, não sabendo nem mesmo o que ele é no desejo do Outro, Hamlet tenta responder ao enigma do desejo materno em um conflito incessante frente ao que se apresenta, mais além, como indigno e aviltante.
A adjuração de Hamlet é um pedido que se faz, diz Lacan, “em nome de algo que não é simplesmente da ordem da lei, mas da dignidade” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 304). Com efeito, é como se a indignidade de Claudius tornasse impossível a aceitação, por parte de Hamlet, do desejo da mãe como um desejo fora dele. Na ausência de um desejo articulado à lei, que o interditaria em sua busca infinita e incestuosa de ser o objeto desse desejo, a indignidade desse objeto, que é Claudius, recai também sobre Hamlet, que não renuncia à posição de querer ser o falo e permanece fixado à potência materna.
No final da cena com sua mãe, Hamlet rende as armas “perante algo que parece inelutável. O desejo da mãe recupera, então, para ele, o valor de algo que não poderia de jeito nenhum ser dominado” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 304). O desejo de sua mãe faz com que, mesmo depois do assassinato do pai, sem um verdadeiro luto por essa perda, o falo esteja sempre lá, encarnado por Claudius, falo real que satisfaz a mãe, cujo desejo é desejo do órgão, e não desejo que envie ao significante como traço de uma perda.
Parte 3
Na parte 3 do texto, Lacan nos conduz ao que “o grafo nos indica sobre a situação do desejo” (LACAN, 1958-1959, p. 305). Ele localiza, no primeiro andar do grafo, o discurso elementar da demanda, que “submete a necessidade do sujeito ao consentimento, ao capricho, ao arbítrio do Outro como tal [que tem] o poder de estruturar a tensão e a intenção humanas na fragmentação significante. É a primeira etapa, a primeira relação com o Outro” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 305).
A célula elementar do grafo descreve a inversão como um efeito estrutural da demanda, que faz com que o emissor da mensagem seja o receptor. É do Outro que o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida, o que confere a esse Outro sua “obscura autoridade”.
É no jogo de presença-ausência da mãe que o objeto da necessidade entra na dialética das trocas simbólicas. Nesse jogo, a mãe se torna uma potência real, da qual a criança depende para ter acesso aos objetos. A necessidade, que atravessou o código, surge transformada em demanda: não mais da satisfação da necessidade, mas da presença do Outro, do dom de seu amor. O que passa a importar não é tanto o objeto, mas quem o dá. Quando a mãe acede a esse poder, quando ela se torna essa potência real, ela se revela como qualquer coisa de enigmática, como um impossível de simbolizar.
A mãe lacaniana é um personagem extremamente inquietante. Suas idas e vindas, esperas, reprimendas e encorajamentos, todas as manifestações de sua presença não têm nelas mesmas outro sentido que o de seu capricho. A mãe lacaniana é uma fera, que aparece primeiramente como uma potência opaca, sem lei, que vai e vem e que se constitui como uma ameaça constantemente presente para a criança. No Seminário XVII, Lacan dirá que:
“O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isto. Não se sabe o que pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isso” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 105).
O fracasso estrutural da demanda, que nenhum objeto da necessidade pode satisfazer, remete a criança à pergunta sobre o que a mãe deseja, esboçando-se, nesse Outro da demanda, uma falta que se torna a meta do desejo como desejo do Outro. O desejo resulta da impossibilidade da demanda de anular completamente a particularidade da necessidade e é desse resíduo irredutível à demanda que se pode resgatar a particularidade do desejo como sua condição absoluta. Ao incondicional da demanda de amor responde a particularidade do desejo como condição absoluta. A onipotência do Outro da demanda é substituída pela potência do desejo, que introduz no Outro a barra da castração que o torna desejante, nada sendo mais neurotizante do que não querer que o Outro seja castrado.
A problemática da castração freudiana é ressituada por Lacan nessa dialética da demanda e do desejo, escrita no grafo do desejo. É mais além da demanda do Outro que o sujeito deve encontrar seu próprio desejo, cuja condição é a castração materna, que não é a revelação anatômica da falta de pênis da mãe, descoberta em sua nudez, mas o momento em que essa anatomia encontra sua significação no falo como um ponto de falta no Outro. Significante do desejo, o falo inscreve a impossível redução da falta do desejo à falta da demanda. Se a falta da demanda anula o vivente da necessidade, transformando-o em significante, a falta do desejo anula o próprio significante sobre o qual recai a barra do recalque, que lhe nega a função de representar o significado. O significante barrado é o símbolo do sujeito que, anulado, subsiste indefinidamente na cadeia significante como falta-a-ser, não havendo “outro signo do sujeito além do signo de sua abolição como sujeito” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 119).
O desejo, em sua dimensão interrogativa, como um enigma, é representado por Lacan, na primeira figura desse capítulo, pelo gancho da interrogação (figura da p. 305), que indica esse além da demanda localizado no segundo andar do grafo do desejo. Além do gancho da interrogação, há o que permite que o sujeito se reencontre: a cadeia significante inconsciente desenhada em pontilhado (figura da pág. 306), na qual está escrito, no lugar do código, uma relação privilegiada do sujeito com sua própria demanda, com sua própria palavra, com os significantes que o marcaram e que foram determinantes em sua vida ($ ◊ D). A linha do gancho da interrogação consciente do sujeito é escrita com um traço cheio, e o circuito inconsciente do desejo, escrito em pontilhado, é o que vai situar o x do desejo na linha que retorna da demanda inconsciente do sujeito até d [($ ◊ D) → d], em sentido contrário à linha intencional, “flutuando em algum lugar para além do Outro” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 307), porém, regulado pela sua fixação na fantasia ($ ◊ a), escrita no meio do caminho que vai da mensagem inconsciente S(Ⱥ)ao significado imaginário do Outro s(A).
Lacan aponta a homologia entre os dois pisos intermediários do grafo, que escrevem a relação do desejo com a fantasia [d → ($ ◊ a)] e aquela do eu com a imagem do outro [m →i(a)], sinalizando que, assim como o desejo se sustenta na fantasia, o eu se sustenta na imagem do outro. A articulação entre esses dois pisos mostra que a vestimenta do objeto, que constitui o i(a), a imagem do outro, é tecida pela fantasia. O circuito imaginário do piso inferior do grafo está determinado pela fantasia e constitui uma resposta ao piso superior, o que determina um desconhecimento, o do eu, montado sobre um outro, o da fantasia. A alienação imaginária escamoteia para o sujeito a sua alienação estrutural ao simbólico.
Após acompanhar o circuito inconsciente da formação do desejo no grafo, que passa por essa relação do sujeito com um objeto na fantasia como resposta à castração do Outro, Lacan vai articulá-lo ao movimento do desejo de Hamlet. Ele volta à cena da alcova para afirmar que “não há outro momento em que a fórmula o desejo do homem é o desejo do Outro seja mais tangível” (LACAN, 1958-1969/2016, p. 309). Em um comentário projetado sobre o grafo, Lacan mostra que Hamlet tenta alcançar o nível do código, da lei [($ ◊ D)], mas volta a recair no significado do Outro [s(A)], por não poder se reencontrar com seu próprio desejo, na linha d → ($ ◊ a), uma vez que, por ter rejeitado Ofélia, ele se encontra sem desejo, ele se encontra separado de seu desejo e alienado ao desejo de sua mãe. Hamlet não pode encontrar a vontade para consumar seu ato porque essa vontade decai como decai a vontade de sua mãe quando ela cede ao seu desejo por Claudius.
Hamlet cede não sem que “o mundo inteiro se torne para ele uma viva recriminação de nunca estar à altura de sua própria vontade” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 332). Fracassado em seu intento de unir o desejo à lei, Hamlet, cujo desejo não está fixado em nenhum objeto, é conduzido à significação do desejo de sua mãe como fora da lei, desejo desenfreado, sem um ponto de basta, sem nenhuma espécie de simbolização e, por isso, sem sentido, que presentifica o falo em sua dimensão do real do órgão encarnado por Claudius. Observemos que, nesse momento do ensino de Lacan, o que o falo representa como sendo o vivo do sujeito, que resta fora do Outro por escapar à negativização significante, chamar-se-á, mais tarde, gozo.
Eis os termos utilizados por Lacan para designar a resposta da mãe de Hamlet como um gozo que não se integra à ordem significante: “verdadeiro genital” que não conhece o luto; “boceta arreganhada”, quando um sai o outro chega (LACAN, 1958-1959/2016, p. 309). Entre o objeto exaltado, que é o pai de Hamlet, e o objeto depreciado, que é Claudius, ela não escolhe.
“Se a mãe não escolhe é devido a algo que, nela, é da ordem de uma voracidade instintiva. Digamos que o sacrossanto objeto genital de nossa recente terminologia se apresenta nela como não sendo nada mais que o objeto de um gozo que é realmente satisfação direta de uma necessidade” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 331).
Acrescentemos que, frente à vacilação da localização do falo na linhagem paterna, Hamlet recua para uma identificação ao falo imaginário materno e, ao não renunciar a sê-lo, ele se encontra em uma posição que o feminiza e o impede de matar Claudius, que passa a encarnar também para ele esse objeto frente ao qual sua mãe se rende. Um vínculo narcísico o une a este que encarna o falo que atrai a mãe e que ele, Hamlet, não renuncia a ser.
A partir da personagem de Ofélia, Lacan vai articular o objeto perdido com a falta fálica como sendo a chave do desejo e fazer deste o vetor do sujeito e de seu ato. A via do luto, do encontro com Ofélia como objeto perdido, e a via do ciúme do luto, que se dá pela identificação imaginária de Hamlet com Laertes, o levarão a recuperar seu próprio desejo. A dignidade ou a indignidade do objeto serão também lidas pelo viés do luto ou da sua ausência. Lacan constata que é pelo viés do luto que o objeto entra em jogo e que chegamos aí ao cerne do problema.
Se, em um primeiro tempo de sua relação com Ofélia, esta ocupa para Hamlet o lugar de objeto na sua fantasia, objeto revestido de valor fálico e constituído como um objeto de exaltação suprema, a revelação do Ghost faz com que ela se dissolva para ele como objeto de amor e seja rebaixada ao lugar de um objeto conotado pelo horror da feminilidade e de seu gozo. Na ausência da função simbólica garantida pelo pai, surge o horror à maternidade pela assimilação da mulher à mãe, que, ao excluir o pai, goza ao engendrar filhos. O encontro de Hamlet com o espectro de seu pai é o levantamento de um véu que rompe com o circuito do desejo inconsciente e, como um encontro com o real da castração, tem todas as características de um encontro traumático. No capítulo sobre o objeto Ofélia, Lacan vai escandir esse momento como o do enlouquecimento do desejo de Hamlet, momento patológico que acontece quando algo vacila na fantasia, fazendo surgir seus componentes, revelados nas experiências de despersonalização ou no fenômeno do estranho, do infamiliar, do Unheimlich. O que desorienta Hamlet é a ruptura da ligação entre a falta fálica e o objeto, que o luto de Ofélia vai restabelecer (a/-ϕ).
Lacan dirá que, em Hamlet, de uma ponta a outra, só se fala de luto. Desde a ausência do luto de sua mãe pela morte do marido — e dos ritos clandestinos dos funerais de Polonius e Ofélia — até as exigências do luto, que ressurgem do caráter inexpiável dos pecados do pai — cuja sombra volta para queixar-se de ter sido assassinado antes que pudesse pagá-los e estar à altura de comparecer ao juízo final —, isto é, nessa sucessão de lutos, cujos rituais não se cumprem, até o único luto verdadeiro, aquele de Laertes por Ofélia, é a relação do drama do desejo com o luto que Lacan busca estabelecer.
Em Hamlet, trata-se de um luto que não foi possível, o que levará Lacan, no capítulo XVIII deste Seminário, a comparar novamente as tragédias de Hamlet e Édipo Rei, a partir dos mitos freudianos do pai, mostrando que, no fundo do luto, há sempre um crime. Lacan assinala que todo luto verdadeiro é o eco do luto mítico do pai primevo, o luto do gozo perdido, através do qual a lei se institui a partir do crime e da morte. “O gozo é proibido a quem fala” é a enunciação lacaniana do mito freudiano do pai primevo.
Édipo, ao pagar sua dívida e assumir a castração, fornece a chave do que, no declínio do Édipo, todo sujeito tem que fazer: o luto do falo. No declínio do Édipo, o complexo de castração é a elaboração da falta a partir da fantasia de que se foi ou se pode ser privado do pênis. A negativização do falo como órgão é o preço a pagar para que o sujeito o reencontre como significante do desejo. O sujeito pode ter ou não ter o falo, mas o fundamental é que ele não seja o falo (-ϕ). O objeto na fantasia é o que se vestirá com os valores fálicos para sustentar a relação do sujeito ($) ao que ele não é (a), na medida em que ele não é o falo.
A particularidade de Hamlet como uma tragédia edípica está nessa relação do crime com o luto. Em Hamlet, ao contrário do que ocorre em Édipo Rei, a questão da dívida está presente o tempo todo: há um luto que não foi feito, há uma dívida que não foi paga pelo pai e há uma castração não assumida. O falo não se encontra negativizado e, pois, não relacionado à castração. Ele permanece presente encarnado, como já vimos, por Claudius.
Lacan define o luto como o buraco de uma perda no real que mobiliza todo o sistema significante. O buraco no real do luto coincide com a falta no simbólico, tratando-se do encontro com um impossível de simbolizar, com a castração do Outro [S(Ⱥ)]. “Só nos enlutamos — diz Lacan — por alguém de quem possamos dizer: Eu era a sua falta” (LACAN, 19632-1963, p. 156). Uma perda e uma falta não são a mesma coisa. A perda se impõe no real e a falta só pode existir no simbólico. O esforço do trabalho do luto é o de ligar o real da perda à falta no simbólico.
No Seminário X, Lacan afirma que é a ausência do luto que faz desvanecer o desejo de Hamlet e, se seu desejo falta, é porque seu Ideal se desmoronou. O contraste entre a relação idolatrada de Hamlet por seu pai, esse rei supremo que encarna a potência Ideal, e a “evasão animal” de sua mãe Gertrudes, que contradiz esse Ideal, tem como resultado o desmoronamento do Ideal e o desaparecimento da potência do desejo, que só será restaurada a partir de um luto verdadeiro com o qual Hamlet vai entrar em concorrência: o luto de Laertes por sua irmã, o luto pelo objeto amado e do qual ele se viu subitamente separado pela carência de seu desejo (LACAN, 1962-1963/2005, p. 363). O que se trata de restaurar, no trabalho do luto, é essa ligação com o objeto fundamental em jogo no desejo como tendo valor de causa desse desejo.
A morte de Ofélia permite a Hamlet, pelo suporte que lhe dá Laertes como duplo imaginário com quem ele se rivaliza, o vislumbre de ter causado o desejo do Outro e o resgate de uma dignidade para a sua existência. Ofélia torna-se esse objeto cuja perda vai retificar a posição edipiana de Hamlet. Ela se torna o objeto narcísico sacrificado e, por essa relação à castração, ela se reveste de valor fálico. Sua perda presentifica o falo em seu valor de falta, que define todo objeto como faltante.
Hamlet era causa do desejo de Ofélia, e não de seu gozo, tratando-se em Ofélia de um desejo ligado à lei. Por saber-se causa do desejo de Ofélia, esta é reconhecida retroativamente como objeto do desejo de Hamlet, uma vez que o desejo é sempre desejo do Outro, desejo do desejante no Outro. Se Hamlet se identifica com o objeto desse desejo, é porque se identifica com a falta que habitava Ofélia. É o desejo que está em causa no menor luto, podendo-se afirmar que, se não há luto, é porque não há desejo. A fácil substituição da perda do objeto, a ausência do luto, é sinal do rebaixamento da dignidade do sujeito, no que ela se funda no lugar da causa do desejo do Outro. Para Lacan, ficamos de luto quando o Outro de quem fomos a causa do seu desejo desaparece; quando nos faz falta a sua falta.
Hamlet assume o luto de Ofélia na relação narcísica existente entre o eu (m) e a imagem do outro i(a). O luto de Laertes, que pula na cova de sua irmã para abraçá-la,
“representa para ele, num outro, a relação passional de um sujeito com um objeto. É essa cena que o engancha e lhe oferece o suporte que faz com que, subitamente, se restabeleça sua própria relação de sujeito, $, com Ofélia, o objeto pequeno a que fora rejeitado (…). E é esse nível subitamente restabelecido que, por um curto instante, fará dele um homem, ou seja, fará dele alguém capaz — por um curto instante (…) que basta para que a peça termine —, capaz de lutar e capaz de matar” (LACAN, 1958-1959/2016, p. 311).
Hamlet encontra seu desejo em troca de sua própria vida, ao contrário do que se dá na saída normal do Édipo. No lugar da castração necessária, como diz Lacan, outra coisa vem ocupar seu lugar: o sacrifício do sujeito. O sacrifício narcísico, que começa com a perda de Ofélia, só se completa quando Hamlet se sabe mortalmente ferido. O luto do falo, que deve ser feito no declínio do Édipo, é encarnado pela morte do herói. A identificação de Hamlet com o falo, que coincide com a morte do sujeito, apresenta o desejo em sua radicalidade como desejo de morte.
Como diz Lacan, Hamlet perde as estribeiras ao ver um outro que não ele próprio exibir um luto transbordante. Ele atira-se sobre Laertes em um abraço apaixonado do qual emergirá literalmente outro com o grito: Este sou eu, Hamlet o Dinamarquês!, sendo esse o momento em que ele recupera seu desejo. Hamlet recupera as coordenadas simbólicas de sua fantasia que vão sustentar a estabilidade do imaginário pela identificação a um significante Ideal do Outro — I(A).
Para concluir, Lacan vai dizer que o sentido que o estudo de Hamlet tem para nós é o da articulação da estrutura da experiência analítica na qual o essencial é situar o lugar do desejo que Hamlet representa como uma placa giratória em que se podem encontrar todos os seus traços. Hamlet, afirma Lacan, anunciando o que vem pela frente, é o desejo do neurótico que se articula na fantasia; ele é tanto o desejo insatisfeito do histérico como o desejo impossível do obsessivo.
Com o grafo do desejo, Lacan indica o lugar de onde devemos operar, levando-se em conta que o sujeito resiste ao fazer girar em círculos, no primeiro piso do grafo, o conteúdo das associações que se sustentam das significações nas quais ele se apoia para conformar-se ao Ideal do eu. O desejo do analista opera a partir da falta do Outro para que o sujeito aceda ao discurso inconsciente que ele quer ignorar, situado no piso superior do grafo.
O desejo é um traumatismo, ele é opaco, além de concernir a um gozo que deve ser suportado e que implica que se possa querer aquilo que se deseja. A fantasia é uma saída para o neurótico, que nada quer saber sobre o gozo implicado no desejo. Na neurose, a fantasia escreve a divisão do sujeito entre o reconhecimento e o desmentido da castração. Ela é uma espécie de mestiço que oculta a castração ao mesmo tempo em que a mantém. Para que o neurótico aceda à castração do Outro, a psicanálise promete um traumatismo cujo cuidado será o de fazer cair lentamente, um ao um, os significantes-mestre ideais, de modo que o sujeito possa prescindir do Outro não sem antes servir-se dele.