SANDRA ESPINHA
Segundo J.-A. Miller, “uma orientação da psicanálise para o real encontra, primeiramente, não o inconsciente, mas o sintoma” (MILLER, 2008, p.74).
C onsiderar o sintoma como o real da experiência psicanalítica, que nos levaria para além do inconsciente como produtor de sentido, é tomá-lo como um modo de gozo. Para Miller, o sintoma-gozo, tal como Lacan o elabora em seu último ensino, pode ser um nome para esse mais além do inconsciente (MILLER, 2008). Como um modo de gozo, o sintoma faz com que o corpo vivo seja introduzido no ensino de Lacan com o conceito de falasser, termo que reúne o sujeito e o corpo e estabelece uma nova versão lacaniana do significante, não apenas como o que mortifica o gozo do corpo, mas como um real, um condensador de gozo, que coloca em questão uma causa. “O significante é causa do gozo” (LACAN, 1972-1973/1985, p.36) que vivifica o corpo.
De mensagem endereçada ao Outro, a mensagem cifrada, cujo destinatário é o próprio sujeito, no monólogo autístico de seu gozo, o que passa a ser a referência do sintoma é uma cifra de gozo que não inclui o Outro. Segundo Miller (2008), essa nova articulação lacaniana entre o sintoma e o gozo constitui um retorno de Lacan ao Freud que aborda o inconsciente em sua articulação com a pulsão, que “quer gozar e goza de maneira derivada”.
De acordo com Miller:
O que é real no sintoma é o que serve ao gozo. Que isso fale, que seja uma mensagem, que se decifre, não está no mesmo nível daquilo para o que ele serve. Pois bem, eu digo que é este tormento, situado neste lugar, o que define hoje o que é ser lacaniano (MILLER, 2008, p.51).
O sintoma como o que serve ao gozo “vem do real” (LACAN, 1974/2011, p.17), o que não quer dizer que ele se oponha ao significante. Ele é, antes, o que aponta para o vazio inaugurado pelo encontro material da linguagem com o corpo como suporte de um “se gozar” (MILLER, 2004, p.48).
A s primeiras teorizações sobre o corpo no ensino de Lacan apresentam um corpo pensado a partir da vertente mortificante do significante. Se há gozo, como efeito do significante, este é um gozo residual, o gozo do mais-de-gozar (a), que se articula, na fantasia, como um suplemento de vida, ao sujeito já morto do significante (S/).
S/ a
É em torno do Seminário 20 que Lacan passa a privilegiar o efeito de gozo do significante sobre seu efeito mortificante. Ele vai chamar de sinthoma a incidência de gozo que o significante tem sobre o corpo, para além da fantasia. O saber do inconsciente trabalha para produzir gozo. Ele não é simplesmente uma estrutura, mas um funcionamento.
Aqui, o gozo não conhece oposição e está por todas as partes. Lacan faz dele uma outra satisfação, a satisfação do blá-blá-blá, que liga significante e corpo. Afirma-se que “não há gozo do corpo senão pelo significante, e há gozo do significante somente porque o ser da significância está enraizado no gozo do corpo” (MILLER, 2008, p.389). É nessa perspectiva que Lacan vai dizer que: “O inconsciente é que o ser, falando, goze e […] não queira saber de mais nada.”
A colocação, em primeiro plano, do efeito de gozo do significante privilegia o significante sozinho, o S1, em seus efeitos de afeto sobre o corpo. O enfoque é a conexão direta entre o corpo e a linguagem, a partir do qual o sintoma é pensado menos como o que integra a pulsão em um esquema de comunicação e mais como o que veicula uma cifra de gozo que “se basta” (LACAN, 1962-1963/2005), que não inclui o Outro, e cujo destinatário é o próprio sujeito.
É com o conceito de lalíngua que Lacan nos apresenta um simbólico desarticulado do Outro e referido ao Um do gozo, que fala para si próprio com a pulsão. No lugar do Outro que não existe, Lacan parte da evidência de que “há o gozo” como propriedade de um corpo vivo e que fala. “O inconsciente não é simplesmente ser não sabido.” O inconsciente consiste em gozar de um saber sem que seja necessário “saber que se sabe para gozar de um saber” (LACAN, 1975/1998, p.9)
A substituição da verdade pelo gozo implica a substituição da linguagem pela lalíngua. A ordem simbólica é substituída por um simbólico cuja característica não é o traço diferencial do significante, mas o buraco que ele faz no seu encontro traumático com o corpo. Na vertente da verdade e da linguagem, o sintoma é uma formação do inconsciente, que se decifra e faz sentido. Na vertente do gozo e de lalíngua, o sintoma é um nome para um inconsciente real, não analisável, que não trabalha para o sentido, mas para o gozo. Na lalíngua, a “linguagem é o real” (MILLER, 2011, s/p) ela se reduz à sua matéria significante, à letra, e não se presta à decifração. Aqui, o sentido do sintoma é o real (LACAN, 1974/2011), ou seja, o sentido do sintoma é o sem sentido do gozo. O real do gozo é primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá (MILLER, 2011) pelo sintoma.
O inconsciente real é “o inconsciente como o impossível de suportar. […] o que é buraco (trou), o que é excesso (trop), o que é tropmatisme ou troumatisme” (MILLER, 2013, p.9). O falasser é diretamente confrontado com o real, sem a interposição do significante. No real de lalíngua, o Outro não é o Outro com o qual o sujeito tem uma relação significante, mas o Outro representado por um corpo vivo e sexuado. Nesse nível, não há relação significante (MILLER, 2008). No nível sexual, a relação passa pelo gozo do corpo, e o Outro é um sintoma do falasser, seu meio de gozo. No sintoma, goza-se do corpo do Outro, entendendo-se por corpo do Outro o corpo próprio, em sua dimensão de alteridade, e o corpo do próximo como um meio de gozo do corpo próprio (MILLER, 2008).
É a esse real de lalíngua e do gozo sexual que a criança é, primeiramente e de maneira bruta, confrontada. Mesmo que ela nasça em um banho de linguagem, a criança recém-nascida ainda não a tem à sua disposição, ela ainda não pode fazer uso do significante. A linguagem intervém sempre sob a forma desse real que é lalíngua (LACAN, 1975/1998). E é no confronto com esse conjunto dos equívocos da língua, nesse “motérialisme, que reside a tomada do inconsciente” (LACAN, 1975/1998, p.10). A criança apreende os significantes em sua materialidade, a fim de gozar ao nível do som ou de escutar um sentido diferente da intenção de significação emitida pelo Outro. O gozo do balbucio é um primeiro tratamento do real pela lalíngua, em que não se está no querer dizer, mas no querer gozar (MILLER, 1996/1998, p. 74).
Progressivamente, esse gozo autístico de lalíngua vai sendo substituído pelo gozo do significante, e a criança se curva à autoridade superior da linguagem. O Outro da linguagem substitui o Um sozinho de lalíngua, e, nessa passagem, dá-se o encontro da criança com a castração do Outro, com o desejo da mãe, que a confronta com o real do sexo como um impossível concernente ao gozo. A passagem de lalíngua para a linguagem implica que a criança se deixe dividir pelos significantes e sofra uma perda de gozo. Com a entrada na linguagem, o inconsciente se forma para cifrar o gozo de lalíngua, que resta com um real que escapa à articulação significante. O inconsciente se forma como “um saber-fazer com lalíngua” e torna-se “o testemunho de um saber, no que em grande parte ele escapa ao ser falante” (LACAN, 1972-1973/1985, p.190). É a partir desse gozo interdito de lalíngua — gozo sexual — que, tendo-se entrado na linguagem, os sintomas necessariamente se formam.
Na “Conferência de Genebra sobre o sintoma”, Lacan afirma que a infância é uma época decisiva, na medida em que é nela “que se cristaliza, para a criança, o que se deve chamar por seu nome, a saber, os sintomas” (LACAN, 1975/1998, p.9). Lacan esclarece que, se os sintomas têm um sentido, como formulou Freud, este só pode ser interpretado corretamente em função das primeiras experiências do sujeito, isto é, a partir do encontro da criança com o que ele vai chamar, “na falta de poder dizer nem mais, nem melhor”, de “realidade sexual” (LACAN, 1975/1998, p.10), no que esta se especifica, no homem, “pelo fato de que não há, entre macho e fêmea, nenhuma relação instintiva” (LACAN, 1975/1998, p.11). Para a criança, o encontro com o real do sexo se dá pela incidência de um “primeiro gozar”, que lhe é desconhecido e que se apresenta como exterior a ela.
Lacan retoma o caso Hans para assinalar que é o encontro com sua própria ereção, experimentada como “o que há de mais hetero”, que está “no princípio de sua fobia” (LACAN, 1975/1998, p.10). O sintoma fóbico de Hans é a expressão do medo que suas próprias ereções lhe inspiram, no que esse gozo real separa seu pênis da unidade semântica de seu corpo e o confronta com uma hiância no saber. Sua significação é a recusa da questão que ele tem que enfrentar encarnada nesse objeto externo, elevado à dignidade de significante, que é “o cavalo que relincha, que dá coices, que salta, que cai no chão” (LACAN, 1975/1998, p.10), e que exprime o que acontece em seu corpo. É do gozo estrangeiro do seu órgão, encarnado nesse significante, que Hans tem medo. Seu sintoma é uma invenção, que amarra um gozo extraído do corpo a um elemento de sua lalíngua. Ele vem no lugar da causa do medo, como Hans afirma, ao dizer que pegou a sua besteira “por causa do cavalo”. A causa da hiância encontrada por Hans é atribuída à mordida do cavalo, signo da mordida da mãe (MILLER, 1997). É como o seu saber inconsciente interpreta a castração e veicula, pelo viés do sintoma fóbico, o gozo cifrado de lalíngua. Com sua fobia, Hans encontra uma solução simbólica para separar-se desse gozo, não sem conservar, na “mancha negra” do focinho do cavalo, os vestígios de sua angústia. O significante se introduz como um “aparelho de gozo” que traduz o gozo de lalíngua com uma significação que reestrutura, para Hans, o campo da realidade. Ao transformar a angústia em medo localizado, essa nomeação faz a “coalescência da realidade sexual e da linguagem” (LACAN, 1975/1998, p.11)
O sintoma é essa resposta ao encontro sempre traumático do sujeito com a sexualidade, no que esta faz valer, para cada um, desde as primeiras experiências, uma antinomia entre o sentido e o real. O sintoma se constitui a partir de um núcleo de gozo que remete a um real excluído do sentido, impossível de ser capturado ou dominado pelo saber. Aquém do sentido, ele está condicionado pelo sem sentido do gozo de lalíngua. O sintoma inclui essa relação ao real do buraco no saber e a invenção de saber que tenta preencher esse buraco.
O inconsciente feito de lalíngua é o inconsciente sujeito, que aparece e desaparece, cuja estrutura é a do “um da fenda, do traço, da ruptura” (LACAN, 1964/1985, p.30). É o inconsciente definido como algo de não realizado, “que quer se realizar” e que se apresenta como uma invenção, um achado, uma solução (LACAN, 1964/1985, p.30). É a partir desse sujeito suposto ao saber inconsciente que Lacan situa a transferência como o que faz ex-sistir o inconsciente como uma invenção de saber.
Inventar o inconsciente, que é a invenção mesma da psicanálise, é fazer com que, desse não realizado, dessa suposição, um saber se realize. Inventar o inconsciente implica supor um sentido ao sintoma sob a forma de um saber alojado no analista, isto é, é fazer com que nem tudo se passe no inconsciente real, sem o Outro (HOLVOET, 2010). O recurso ao sentido, como resposta ao gozo enigmático do sintoma, implica supor que o gozo é saber cifrado que se decifra.
O encontro com o analista oferece à criança a possibilidade de aceder ao saber inconsciente e reduzir a dimensão traumática de sua existência. O encontro de Hans com Freud, que lhe comunica o que seu inconsciente já havia interpretado, traduzindo “medo de cavalo” por “medo do pai”, abre-lhe um espaço de palavra que permite que ele invente uma ficção excepcional, por meio da qual ele constrói um objeto destacável do corpo, que o dispensa de sua fobia. Hans se separa do gozo veiculado pelo significante cavalo, que se repetia sem conseguir representá-lo e que o aprisionava nos limites estreitos que seu sintoma lhe impunha. A extração desse objeto é feita com os elementos de sua lalíngua. Em torno do significante cavalo, Hans desenvolve “todas as permutações possíveis de um número limitado de significantes”, por meio das quais a conversão da mordida do cavalo em desmontagem da banheira representa o declínio da mãe como uma potência opaca, ameaçadora e sem lei. A ficção da banheira dá um lugar a Hans e constitui uma solução que o separa do gozo mortífero de sua fobia.
As elaborações do último ensino de Lacan sobre o sintoma como um modo de gozo constituem um esforço para instalar o sentido no real (MILLER, 2008). O gozo do sintoma, no que ele supõe o silêncio da pulsão, coloca a questão do papel da interpretação. Para além do inconsciente como produtor de sentido, o modo de interpretação é, antes, um desarranjo do bom ordenamento do sentido. Nesse nível, o fundamento da interpretação está na materialidade do significante, no equívoco, no não senso, no corte que reconduz o sujeito à opacidade de seu gozo, ou seja, que intervém no nível do inconsciente como colocação em jogo da pulsão (LACADÉE, 2003).