MIQUEL BASSOLS
Conhecemos, na orientação lacaniana, a fecundidade dos estudos sobre os distúrbios da linguagem no que concerne à clínica das psicoses. Fomos formados no estudo preciso desses distúrbios, considerando-os como um critério diagnóstico e mesmo como o critério diagnóstico por excelência, segundo a máxima que Jacques Lacan deduziu em seu seminário As psicoses, de 1955-1956. É nesse seminário, a propósito de um caso submetido à sua consideração, que ele assinalou:
“Eu me recusei a dar o diagnóstico de psicose por uma razão decisiva, é que não havia nenhuma dessas perturbações que constituem o objeto de nosso estudo este ano, e que são os distúrbios na ordem da linguagem. Devemos exigir, antes de dar o diagnóstico de psicose, a presença desses distúrbios. […] é essa, em todo caso, a convenção que lhes proponho adotar provisoriamente” (LACAN, 1955-1956/1985, p.109-110).
Era, com efeito, uma convenção, que devia ser provisória, mas que teve uma função de bússola para nossa orientação quanto à clínica e ao tratamento das psicoses.
Podemos fazer a lista desses distúrbios de linguagem nas psicoses, a partir da análise atenta e detalhada dos fenômenos surgidos na função da palavra e do campo da linguagem. São os distúrbios concernentes ao eixo da significação, por efeito da elisão do significante que faria escansão — a elisão do significante fálico. São os distúrbios induzidos por um deslizamento infinito da significação, sobre o eixo da metonímia: a fuga do pensamento, o discurso tangencial, com os fenômenos de conversação interior já isolados por Jules Seglas (1985). São também as frases interrompidas, as rupturas da cadeia significante, com os neologismos, os ritornelos ou a erotização do significante. Lacan ordenou esses diferentes fenômenos em torno de dois eixos (LACAN, 1958/1998). A partir da retomada da análise da metáfora e da metonímia do linguista Roman Jakobson, ele distinguiu os fenômenos de código e os fenômenos de mensagem e isolou seu ponto comum como sendo a irrupção, “a presença do significante no real”, com todas as novas viragens da significação da realidade, engendrada por esse surgimento, para o sujeito. Ele já via aí uma condição da “situação do homem moderno”, uma espécie de distúrbio generalizado da linguagem que a ciência induz com seus novos objetos.
Na época Geek,(1) marcada pelos efeitos da técnica sobre o sujeito da ciência, pode-se dizer que se passa dos “distúrbios de linguagem” à linguagem considerada ela mesma como um distúrbio do qual seria necessário curar a dita humanidade.
O Entrave Da Linguagem
Tomemos um exemplo, talvez limite, dessa nova perspectiva na interface das técnicas cibernéticas com as neurociências, um campo que se tornou uma referência fundamental para o cognitivismo atual e mesmo uma orientação que se pode designar por este neologismo surpreendente: neuropsicanálise. Nessa interface, Kevin Warwick, professor na Universidade de Reading, nos Estados Unidos, impulsionou o chamado Projeto Cyborg. Uma questão serve de bússola para sua pesquisa: What happens when a man is merged with a computer? — “O que acontece quando um homem é fusionado com um computador?” Deixaremos de lado os aspectos mais ou menos frankensteinianos dessa pesquisa e de seus resultados e as novas técnicas de implantação de chip e outros dispositivos eletrônicos no corpo do sujeito. Deixaremos de lado, igualmente, as finalidades consideradas benéficas no tratamento, por esse tipo de meios, de uma série de lesões do sistema nervoso. Nós nos interessamos antes pelo testemunho do sujeito mesmo dessa pesquisa. Esse testemunho visa, com efeito, nos parece, ao horizonte que é aquele do sujeito das tecnociências de nosso tempo.
Quando de sua recente passagem por Barcelona, Kevin Warwick testemunhou suas experiências. Ele conseguiu, dizia, conectar seu cérebro a um computador, situado em New York, e enviar impulsos, através da internet, a um braço robótico situado em seu laboratório na Inglaterra. Ele conseguiu mover esse braço, e mesmo “senti-lo”, como se fosse seu próprio braço. Mais ainda, no curso dessa experiência — que implica já um certo grau de despersonalização e de corpo despedaçado — ele conseguiu conectar, sempre pela internet, seu próprio sistema nervoso, sua própria rede neuronal, à de sua mulher. Ele tinha a ideia de poder comunicar-se com ela sem ter necessidade de falar. “Nosso corpo é apenas um entrave para nosso cérebro” (WARWICK, 2012), dizia. O paradoxo lógico, suposto por essa afirmação — tomar o cérebro como uma parte separada e mesmo diferente do próprio corpo — não constitui então, aqui, uma barreira à tentativa de escrever a relação sexual no real. O corpo despedaçado do sujeito da ciência poderá sempre pensar em se recompor no espaço virtual com o Outro, na medida em que ele, ou ela, poderá encarnar ou fazer semblante de um Outro gozo sempre possível.
Ainda assim, essas conexões não parecem ter resolvido um certo número de problemas entre o Sr. Warwick e sua mulher, problemas de identidade sexual e de comunicação, os quais ele não hesita em testemunhar. Irena, sua mulher, queixava-se de não ser suficientemente escutada por ele. Ele então conectou seu próprio sistema nervoso à mão de sua mulher. E, assim, quando ela mexia seu braço, ele recebia os impulsos em seu próprio cérebro. Ele sonhava realizar o sonho de Samuel Morse, o inventor do famoso código Morse: “enviar sinais de um cérebro a outro” de maneira direta, prescindindo de outros meios hardware. Mas o Sr. Warwick encontrou um obstáculo em sua empreitada, que parece ser a causa última de seu fracasso. Segundo seus próprios termos, ele encontrou “a barreira” da “arcaica linguagem humana” porque, se “os neurônios são conectados on-line por impulsos eletroquímicos, para chegar de um sujeito a outro, eles devem ainda necessariamente passar pela arcaica linguagem humana”. A linguagem, instrumento que deveria ser um meio de comunicação, se torna assim a última barreira ao estabelecimento possível de uma comunicação direta, e a causa principal de não comunicação, de não relação. A experiência do Sr. Warwick se choca então com a linguagem, como a um distúrbio do real, e que dá conta de um gozo inútil aos fins da comunicação. “Se se compara a linguagem com a transmissão instantânea e precisa da rede neuronal, ela se apresenta como um código muito ambíguo e impreciso.” Falar é apenas uma maneira “lenta e primitiva de emissão e de recepção de ondas sonoras!”
A linguagem, segundo K. Warwick, é, então, finalmente, um entrave, uma espécie de doença, uma doença mesmo um pouco arcaica, um vírus que faz intrusão no corpo, um entrave no real.
Um Novo Real
O Sr. Warwick tem razão. Lacan, na última parte de seu ensino, notadamente em seu Seminário XXIII, O sinthoma — 20 anos após seu seminário As psicoses, ao qual nos referimos antes — era da mesma opinião: “A questão é antes de saber porque um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido” (LACAN, 1975-1976/2007, p.92). E o sujeito psicótico é sem dúvida o mais indicado para apreendê-lo, tal como James Joyce pôde testemunhar. Foi justamente a experiência de escrita de James Joyce que mostrou a Lacan que não existem distúrbios de linguagem propriamente ditos, mas que a linguagem ela mesma é o distúrbio, um distúrbio do qual se pode, no melhor dos casos, fazer um sinthoma, uma maneira de gozar singular do sujeito.
É porque a linguagem, ela mesma, é um distúrbio do real, que podemos, aliás, sustentar que todo mundo delira. A linguagem, e o equívoco significante, introduzindo um abismo no real, uma dimensão do ser falante que o faz também sujeito de gozo, um gozo tão irredutível quanto a linguagem mesma. Se uma certa tecnociência anseia ainda por um real que seria curado do distúrbio da linguagem, a psicanálise mostra o incurável desse distúrbio no ser falante.
Na época Geek da tecnociência, há, então, ao menos, uma objeção ao ideal de um apagamento possível do distúrbio da linguagem da superfície da Terra. É a objeção do sujeito psicótico, que tenta fazer com a linguagem um sinthoma para acreditar nela de modo radical, como o indicava Éric Laurent (2013) na intervenção que inaugurou a preparação deste Congresso.
Em seguimento ao ensino de Lacan, nossa pesquisa concerne precisamente ao abismo introduzido no real pelo fato da linguagem, pelo fato do ser falante. Considerado com os instrumentos da psicanálise, à luz do sinthoma, o abismo implica a existência de um novo real, que nós não podemos conceber de maneira objetiva na medida mesma em que nós habitamos esse abismo. Há uma impossibilidade inerente a esse novo real, o qual a ciência não pode levar em conta, na medida em que ela se funda na foraclusão, no esquecimento mais absoluto desse abismo.
É a esse novo real que somos confrontados na perspectiva do próximo Congresso da AMP, que tem o título, tão promissor para a psicanálise, “Um real para o século XXI”.