JEANNINE NARCISO
Psicóloga e psicanalista, especialista em Saúde Mental. Membro da EBP-MG/ AMP. jannarciso31@gmail.com
Resumo
Este texto apresenta um ensaio de Freud, no qual aparece um novo significante, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia e aponta o esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro. Retoma-se a questão com Miller ao dizer que, para Lacan, o “infamiliar” resulta na noção da extimidade. Aborda-se a relação do sujeito com a linguagem como o que faz furo no real.
Palavras-chave: infamiliar, familiar, angústia, linguagem, extimidade.
The familiar stranger: a reading from Freud
Abstract: This text presents the essay by Freud in which a new signifier appears, which concerns the terrifying, causes anguish and points to the fading of the domains between the familiar and the foreign. This text resumes the question raised by Miller once more, when he states that for Lacan, the “Unheimliche”, results in the notion of “extimité”. The work addresses the subject’s relationship with language as being what makes a hole in reality.
Keywords: Uncanny, familiar, anguish, language, ex-timate.
Coletoras – Barbara Schall
O Estranho em Freud
O encontro com o texto de Freud se deu em três diferentes traduções, a saber, “O estranho”, “O inquietante” e “O infamiliar” — tradução esta de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares —, cujas particularidades aparecem em cada percurso de tradução. No ensaio, entre outras obras, Freud cita Hamlet, texto de Shakespeare sobre o qual a tradutora comenta: “traduzir Hamlet se mostra uma tarefa para sempre inacabada, infinita, aberta a novas interpretações, compreensões, traduções, como é praxe de sua leitura, da fruição elíptica de nosso solilóquio mais insuspeito ao longo da vida: amor e morte, amor e morte” (BEBER, 2019, p. 6).
Freud e o infamiliar
Segundo Iannini, em Freud (2019), Das unheimliche é uma palavra e um conceito; a palavra-conceito é o título do escrito de Freud. E mais: é o nome de um sentimento aterrorizante, um domínio desprezado pela pesquisa estética e o efeito da leitura de certos contos fantásticos. Para Iannini, o que Freud pretendia era convocar o psicanalista a não perder de vista o real que a palavra unheimliche recorta. Assim, entrega um significante novo e intraduzível, que diz respeito ao aterrorizante, ao que causa a angústia. A equipe tradutora optou por traduzir unheimliche, do alemão, por um aparente neologismo, “infamiliar”, e mostra que essa tradução causa problema. “’O infamiliar’ mostra que o muro entre as línguas não é intransponível, mas que a passagem de uma língua a outra exige um certo forçamento” (FREUD, 2019, p. 40). “É uma marca visível da impossibilidade da tradução perfeita” (FREUD, 2019, p. 42).
A palavra unheimliche, usada por Freud, é formada pelo prefixo de negação un, um índice de castração, e o adjetivo heimliche, que exprime aquilo que é “familiar e íntimo, mas que pode evocar o que é secreto e desconhecido” (FREUD, 2019, p. 205) e deriva do substantivo Heim (lar, morada).
Em Freud (2019), Iannini aponta como fundamental, no ensaio freudiano, o movimento de descentramento subjetivo, de esmaecimento dos domínios entre o familiar e o estrangeiro:
como respondemos àquilo que um estrangeiro nos aporta, especialmente quando este algo é absolutamente familiar e doméstico para ele, mas claramente exótico e ameaçador, pelo menos da perspectiva de nossa suposta integridade identitária, que resiste a assimilar o estrangeiro. Os nexos profundos entre tradução e política não tardam a aparecer (FREUD, 2019, p. 102).
O infamiliar
Para Freud (2019), o termo é peculiar. Relaciona-se com o que é assustador, com o que provoca medo e horror; é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido de velho e, há muito, familiar. Mas, ao mesmo tempo, o infamiliar seria algo do qual nada se sabe. Freud consulta vários dicionários para buscar encontrar algum novo significado para além da equivalência infamiliar (não conhecido).
O efeito infamiliar pode ser criado, na literatura, nos contos que colocam o leitor diante da incerteza “se ele tem diante de si, uma determinada figura, uma pessoa ou um autômato” (FREUD, 2019, p. 1012). Dessa maneira, o leitor fica com uma incerteza intelectual diante de algo que não sabe como abordar de fato. No conto “O homem da Areia”, E.T.A. Hoffmann estabeleceu essa manobra psicológica. O tema “O homem da Areia”, aquele que arranca os olhos das crianças, foi considerado por Freud como central no conto. Portanto, não é Olímpia, a boneca aparentemente viva, que causa o efeito infamiliar do conto nem as elucubrações fantasísticas do jovem estudante Natanael.
O sentimento do infamiliar será provocado pela figura do Homem da Areia, que deve roubar os olhos e substitui o temido pai, de quem se espera a castração. Na experiência psicanalítica, aparece a angústia da criança de se machucar ou de perder os olhos — que aparece também nos adultos. Tanto que existe o dizer sobre aquilo que se protege como a “menina dos olhos”. O medo de ficar cego é correlativo à angústia de castração, assim como, no mito de Édipo, há o ato punitivo de cegar a si mesmo.
Freud investiga vários fatores que provocam o efeito infamiliar, e alguns desses provêm de fontes infantis e de fases específicas do desenvolvimento do Eu. No tema do duplo, o Eu se forma e instâncias singulares aparecem: a “consciência moral” — contrapondo ao restante do Eu, que serve de censura psíquica — e, nos casos patológicos, o delírio de se ser observado.
O fator da repetição do mesmo, outra fonte do sentimento do infamiliar, aparece nos sonhos e nas situações de desamparo. Freud conta algo que aconteceu com ele em uma quente tarde de verão, enquanto caminhava pelas ruelas de uma cidadezinha italiana, acabou voltando, por três vezes, a um mesmo trecho, onde haviam mulheres maquiadas debruçadas nas janelas das pequenas casas. Nesse momento, ele diz ter experimentado o sentimento do infamiliar e ficou feliz por ter renunciado a fazer outras descobertas. A repetição involuntária pode derivar da vida anímica infantil e exprime a compulsão à repetição, ligada à natureza das pulsões.
Freud propõe a aproximação de casos que validariam a hipótese do infamiliar apresentando a história clínica de um neurótico obsessivo que quer ocupar um quarto em uma clínica, mas este está ocupado por outro paciente, e então diz: “que ele morra de infarto” (FREUD, 2019, p. 1200). Dias depois, isso ocorre. Para o paciente, foi uma vivência “infamiliar”.
Nesse ensaio, Freud ainda cita outros fatores a partir dos quais o angustiante se torna infamiliar. Na sequência, faz duas observações consideradas essenciais. Em primeiro lugar, que “todo afeto de uma moção de sentimento — de qualquer espécie, transforma-se em angústia por meio de recalques — este angustiante é algo recalcado que retorna” (FREUD, 2019, p. 1230).
Em segundo lugar, aponta que “o uso da língua permitiu que o familiar deslizasse para seu oposto, o infamiliar, uma vez que esse infamiliar nada tem de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento” (FREUD, 2019, p. 1230).
O infamiliar no mundo em que a gente vive
Em O mal-estar na civilização, Freud (1930/2010) diz que, se os avanços tecnológicos não tivessem acontecido, o filho não deixaria a cidade natal, o amigo não viajaria para longe e não precisaríamos dos meios de comunicação para acalmar a nossa inquietude. Na atualidade, a aviação comercial possibilitou cruzar os oceanos. Mas, ainda hoje, ser um estrangeiro, ser um imigrante, traz algo do infamiliar. Para Bassols, “É o estrangeiro (…) que encarna, para cada um, um gozo estranho, segregado, alheio (…) que nós, psicanalistas, designamos às vezes como ‘o real’, sempre inquietante” (FREUD, 1930/2010, p. 6).
Afinal, como o infamiliar se apresenta no mundo em que a gente vive? A família moderna apresenta um estatuto extremamente reduzido; a redução das solidariedades familiares deixa o sujeito desatado da sabedoria tradicional. Nos casos atendidos na clínica, aparecem a família da época da ciência e também a da época da psicanálise, em um mundo onde o discurso da ciência dessubjetiva o significante e introduz a universalização, desatando o sujeito da sabedoria tradicional. E o real do trauma, por sua vez, irrompe na modalidade temporal das urgências. É o tempo do inconsciente real, um inconsciente sem recalque, ou com pontos em que o Nome-do-pai (NP) não incidiu, de onde advêm os fenômenos que não obedecem às leis da linguagem e cujo conteúdo que retorna não poderá ser historiado pelo sujeito.
Desde Freud, os psicanalistas não deixam de pensar o sujeito na sua relação com a linguagem. Lacan chama de falasser a relação do falar com o ser: “a linguagem está ligada a alguma coisa que faz furo no real. Aliás, a linguagem come o real” (LACAN, 2007, p. 31). Portanto, uma pergunta é formulada: como se dá o encontro de uma criança que imigra com o infamiliar da linguagem? Brousse (2007) considera que o bebê não nasce falando, mas é exposto à alteridade da linguagem e será um sujeito falante quando souber as palavras e puder devolvê-las ao Outro. Para o psicanalista, o encontro com a história de vida de uma criança se dá a partir da entrevista inicial com os pais e será no a posteriori que se verá como cada criança ressignificará o vivido.
Vejamos como esse encontro ocorre atualmente: quando imigra, no primeiro ano de vida, a criança tem seu nome próprio — Tainá[1]. Lacan (2007) diz que o nome próprio faz tudo o que pode para se fazer mais que um S1. Se dirige rumo S2, onde se “acumula o que concerne ao saber” (LACAN, 2007, p. 86). A pronúncia do nome da criança, de origem indígena, causa a preocupação dos pais. No entanto, o que provoca a angústia é a irrupção do real, que advém com o seu primeiro adoecimento, quando começa a ir à creche. Ou seja, quando o infamiliar emerge, o encontro com aquilo que é invasivo convoca, no pai, a tentativa de dar um sentido, lançando mão do simbólico, para lastimar contra os malditos microrganismos — vírus e afins — e ao custo de uma vida social[2].
Quando outra criança se muda de país enquanto está aprendendo a falar, normalmente rompe com as rotinas com as quais tinha intimidade. Após algum tempo, quando convocada, a criança não consegue falar com desenvoltura sua língua materna nem a segunda língua, mas, ao seu modo, diz do medo de ficar sozinha. Miller (2011, p. 15) vai dizer que “intimidad es estar calentito” [3] e que, do lado íntimo, está o interior mais pessoal.
Ao imigrar, uma criança tem que aprender uma terceira língua, que possui certa dificuldade, mas pode não mostrar interesse em participar das aulas nem progredir na seriação escolar. Tal dificuldade pode impedir o acesso à universidade, despertando a angústia dos pais.
O infamiliar faz surgir a angústia mobilizando o sujeito quando o gozo invasivo emerge e deixa aparecer o que é da ordem do real. O infamiliar, para Freud, toca o limite entre o interno e o externo. Para Lacan, resulta na noção da extimidade, isso que é o mais interior sem deixar de ser exterior (MILLER, 2011). Segundo Miller (2011), a extimidade, o falar “do Outro de dentro”, aponta para a questão da imigração, termo considerado relativamente novo, contemporâneo da revolução industrial. O sujeito, ao vivenciar a perturbação de estabelecer-se em um país estrangeiro, faz cálculos “para saber se deverá abandonar sua língua, suas crenças, suas vestimentas, sua forma de falar, se trata do fato de saber em que abandonará o Outro gozo” (MILLER, 2011, p. 55). Em psicanálise, ser um imigrante é o estatuto do sujeito. “O sujeito como tal definido por seu lugar no Outro, é um imigrante… O problema do sujeito precisamente é que este país estrangeiro é seu próprio país” (MILLER, 2011, p. 43).
Na modernidade, com o objeto a que “es tan êxtimo al sujeito como al Otro” (MILLER, 2011, p. 22), no zênite, com o declínio do NP, temos duas vias para pensar a angústia trazida pelo infamiliar. Segundo Sérgio de Castro (2020), na via da angústia de castração, temos um unheimliche passível de ser interpretado e que traz a marca do NP, apreensível pela linguagem. O sujeito sustentado pelo NP poderá decodificar, compreender um certo mal-estar, lançando mão do simbólico. Na via da angústia lacaniana, quando o objeto se presentifica, quando falta a falta, aparece um unheimliche, um real que remete ao campo do gozo, que tem algo de invasivo. O sujeito, sem a sustentação fálica e sem a mediação simbólica, pode se ver sem a possibilidade de dar um sentido àquilo.