RICARDO SELDES
Psicanalista, AME da EOL/AMP
ricardoseldes@gmail.com
Resumo: O futuro da psicanálise é algo que está sempre em questão, pois está ligado ao lugar de onde cada um conseguiu chegar com seu sintoma analisado, algo que exige a abertura para o desconhecido e não ao que já está categorizado. Nessa perspectiva, se indicações ao analista existissem, elas estariam ligadas a uma transmissão da psicanálise, que se faz de analisante a analista e pela transferência de trabalho, apresentando o desejo de Lacan nos bastidores, vivo e novo contra os standards congelantes de uma experiência que não pode deixar de ser tão viva quanto esse desejo.
Palavras chaves: futuro da psicanálise; transmissão.
Interpretation: The Unconscious and the body politic: psychoanalysis today.
Abstract: The future of psychoanalysis is something that is always in question because it relates to how each person managed to do with their analyzed symptom, something that requires an opening to the unknown and not to what is already categorized. From this perspective, if analyst referrals existed, it would be linked to a transmission of psychoanalysis, which happens from analysand to analyst and through transference of work, and having Lacan’s desire, which is always alive and new, against the freezing standards of an experience that can’t help but be as alive as this desire.
Keywords: future of psychoanalysis; transmission.
Agradeço este convite por vários motivos: primeiro, pela amizade que tenho com vocês há muitos anos, pois não é novidade que eu gosto da Escola Brasileira de Psicanálise, e porque acredito que, nestes tempos em que existem tantos ataques à liberdade da palavra e o conseqüente ataque à psicanálise, os psicanalistas e, em particular, os de orientação lacaniana, têm que conseguir ficar mais unidos do que nunca.
Claro que, como o sangue não-todista corre em nossas veias, a pergunta que nos fazemos é: como podemos ser solidários com o futuro da psicanálise? Isso é algo que está sempre em questão.
Essa mesma proposta exige alguns princípios e alguns acordos que, como a verdade, nunca são definitivos, nem devem nos levar à burocratização da prática clínica ou da prática institucional, que são duas experiências subjetivas. Claro que o coletivo, o individual, as forças que fazemos juntos estão sempre em questão, mas pelo discurso analítico, desde o lugar aonde cada um conseguiu chegar com seu sintoma analisado ou, podemos dizer, com seu “sinthoma”, na medida em que é sempre um arranjo.
Há alguns anos, em preparação para um dos Congressos da Associação Mundial de Psicanálise que aconteceu no Brasil, na Bahia[2], tive o prazer de fazer parte do Comitê de Ação junto com meus amigos Esthela Solano, Jésus Santiago e Marco Focchi. Na ocasião, o tema que escolhi foi o das indicações e contraindicações à psicanálise a partir de uma intervenção de Miller na International Psychoanalytical Association (IPA), na qual ele falou sobre as não-indicações à psicanálise, o que é uma forma de conceber a prática diferente daquela de muitos dos colegas da IPA.
O essencial poderia ser resumido dizendo que, com a psicanálise aplicada, não temos contraindicações, e podemos acrescentar: se, no passado, se falava das indicações para uma análise, era para localizar se uma determinada estrutura psíquica era adequada ou não. No tempo do falasser, quase todo mundo pode ser analisado.
Qual foi a principal contraindicação de Freud? Ele afirmou:
“Nos anos anteriores à guerra, quando a afluência de pacientes estrangeiros me tornou independente da simpatia ou antipatia de minha própria cidade, eu seguia a regra de não tratar pacientes que não fossem sus juris, ou seja, que não fossem independentes nas questões essenciais da vida.” (FREUD, 1917, p.610)
Sui juris é uma frase latina que significa, literalmente ‘em seu próprio direito’. Em Direito Civil, indica a capacidade jurídica para administrar seus próprios negócios. Mas, é claro, continua Freud: “Não é algo que todo psicanalista pode se permitir” (FREUD, 1917, p.610).
Freud assim se manifesta: “Os senhores perceberão, naturalmente, como as perspectivas de um tratamento são determinadas pelo meio social e pela condição cultural de uma família“ (FREUD, 1917, p.610). Freud mesmo teve que suportar abusos da família de uma paciente que foi retirada do tratamento por ter revelado em análise segredos extraconjugais da mãe.
No início de um tratamento ainda não há um caso, mas há condições para que isso ocorra. Desde a primeira consulta, localizamos dados clínicos que nos permitam captar a decisão do sujeito. Estamos no limite do sujeito suposto saber, estamos nas provas que o analista, sutilmente, pede para que se permita que o sujeito suposto saber se instale.
Nos tempos atuais, tentamos trabalhar a inconsistência, ou seja, algo diferente da psicanálise construída na lógica das classes, a que permite dizer isso é ou isso não é. Assim como a primeira psicanálise foi erguida na lógica do para todo x, neste momento atual ela visa não a classe, senão a série, pois com ela temos a invenção, os arranjos e a abertura mais para o desconhecido do que para o que está categorizado.
Os trabalhos do IV Congresso da Associação Mundial de Psicanálise que investigou a prática sem standards, mas não sem princípios[2], estavam em andamento quando me detive sobre um Simpósio da IPA, do ano de 1967,[3] para pesquisar sobre como as regras técnicas, das quais Lacan nos dispensa, tentavam localizar o real que encontravam em sua prática. Nesse Simpósio descobri, em princípio, três períodos diferentes sobre as regras técnicas que interrogavam aqueles pontos limites, nos quais a experiência do real estava dentro ou fora da experiência analítica.
O esforço dos analistas das décadas de 1920 e 1930 se concentrou em conceituar o obstáculo que limita a intervenção analítica — não para retroceder, mas para tentar inventar uma maneira de ultrapassar o obstáculo. No segundo período, proliferaram as listas de contraindicações baseadas em traços de inadequação dos pacientes ao dispositivo. Também coincide com o que chamaram de um entusiasmo excessivo dos colegas para cuidar de pacientes decepcionados com a psiquiatria.
O terceiro e atual momento da IPA é aquele em que a psicanálise se desprende das regras — não em busca de desregulamentar os padrões e capturar a singularidade do gozo de cada pessoa, mas, ao contrário, para homogeneizar todos os gozos.
Para Lacan, não se trata de escolher os pacientes, mas de que eles possam dar forma de pergunta à sua demanda, que a problematizem. Estamos obrigados a saber o que se pede; mais precisamente, o que define a demanda é que nunca se sabe o que se deseja. Lacan pergunta: “O sujeito suposto saber de onde é suportada, definida a transferência é suposto saber o quê? Como opera? (LACAN, 1977, p. 2, tradução nossa). E acrescenta:
“Seria totalmente excessivo dizer que o analista sabe de que modo operar. O que seria necessário é que ele saiba operar convenientemente, ou seja, que possa se dar conta do alcance das palavras para seu analisando, o que incontestavelmente ignora.” (LACAN, 1977, p. 2, tradução nossa)
Daí a indicação de não compreender. No lugar de técnicas e regras, que já vimos a que conduzem, colocamo-nos sob a noção de enfrentamento do real. Neste ponto, sabemos que não apostamos em interpretações padrão, mas que nossas interpretações são feitas sob medida.
O risco de assimilar a interpretação como formação do inconsciente é acreditar que ela é o que responde à associação livre, com a consequência de tomar a interpretação como associação do analista. Confundir interpretação com associação é pensar que o significante da interpretação preencheria um buraco nas associações do sujeito, supondo que o preenchimento desse buraco permitiria ao sujeito dar um passo. Partimos da ideia de que é a interpretação que vai ao encontro da transferência — não uma associação que proporciona ao sujeito a ligação com o S2, mas que opera no vetor de uma dissociação, de um corte na cadeia significante entre S1 e S2. Isso nos confronta com a dimensão do S1 sozinho.
Quando estamos nesse nível, podemos considerar que existem certas palavras que o sujeito distingue, que lhe tocam; quaisquer palavras, inclusive palavras banais que foram ditas a um terceiro e escutadas por acaso. Mas, se o sujeito as toma para si, elas adquirem um status de palavras primeiras, separadas, não binárias, como está na moda, pois a cadeia significante é binária. Visamos então o não binário para capturar, produzir, isolar o S1. O corte da interpretação produz uma separação significativa do S2 como se pode ver no andar inferior do Discurso do Analista.
Como evitar que a intervenção do analista, que denominamos, genericamente, de interpretação, não acrescente mais um significante à cadeia, mas a produção daquele S1? Vamos partir do mais básico, da idéia de que a psicanálise é uma oferta explícita de palavras: fale, estou ouvindo. O que está implícito é o não entendimento, sem limitar a curiosidade necessária ao que a palavra dita produz.
Entretanto, no momento em que o enquadramento analítico fica explícito ao estabelecer as regras do jogo, adiciona-se uma explicação: você associa, fala tudo, a mais plena bobagem, e aí eu vou interpretá-la. Alguns chamavam de devolver, termo de que nunca gostei, como uma espécie de reembolso; não há virtude em supor um dar e receber quando, muitas vezes, o que se impõe é o silêncio do analista.
Lacan vai propor no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), naquele momento de ruptura definitiva com a IPA, a função do analista como objeto, destacando, especialmente, a tensão que existe entre o inconsciente e a interpretação. Já não se trata do inconsciente como reservatório dos significantes do sujeito, pois, quando se trata do discurso do analista, é o inconsciente que interpreta. O que poderíamos acrescentar que não seja para redobrar essa interpretação?
Como dissemos antes, Lacan trará à tona a questão do fechamento do inconsciente, e há ai um paradoxo, pois ele nos dirá que esperamos esse efeito da transferência para interpretar, ao mesmo tempo em que a transferencia fecha o sujeito ao efeito de nossa interpretação. São os enganos do amor…
Isso não impedirá Lacan de avançar dizendo que a transferência é o amor que se dirige ao saber, o que implica que a interpretação não obtém seu alcance senão nos momentos em que o saber inconsciente é interrompido. E o que isso quer dizer?
Tentamos localizar uma erótica da presença do analista quando Lacan definiu a transferência como a atualização (no sentido do ato) da realidade do inconsciente como sexual.
Para entender isso, temos que fazer um pequeno loop porque, se o sujeito entra em jogo a partir do suporte fundamental que é o Sujeito Suposto Saber, isso não acontece simplesmente, sem que haja um porquê. Há uma causa anterior e Lacan aponta, de modo claríssimo, que, se há uma suposição de saber, isso se dá porque há um sujeito do desejo. Não é pouca coisa dizer isso. Se existe um suposto saber, é porque o analista é o sujeito do desejo.
Disso decorre a dificuldade quando o Sujeito Suposto Saber é instalado em outra parte, em outra pessoa. Essa é uma estranha formulação, porque, nesse ponto, Lacan já não coloca mais a análise como intersubjetiva. A torção que ele faz é percebida. Quando há amor de transferência isso remete ao narcisismo ou, como disse Freud, ama-se ser amado.
Mas que tipo de efeitos pretendemos? Os efeitos lacanianos são o que definem a experiência analítica como uma pesquisa clínica para encontrar os pontos onde se alcança a certeza, no encadeamento entre a cadeia significante e o gozo pulsional. Se existe um fenômeno lacaniano, isso implica que ele é escutado e, se existe, é porque ele é apresentado com um sentido. No entanto, o inconsciente tem mais a ver com o Witz. Esse é um princípio que nos leva a evitar a compreensão emocional dos pacientes.
Se indicações ao analista existissem, elas indicariam aquele ponto em que a transmissão da psicanálise, que se faz de sujeito a sujeito e pela transferência de trabalho, apresenta o desejo de Lacan nos bastidores, vivo e novo contra os standards congelantes de uma experiência que não pode deixar de ser tão viva quanto esse desejo.
Ao contrário da tarefa complicada e impossível de tentar homogeneizar os gozos, seja por decreto, seja por invasão, interrogamo-nos sobre algo que nos retira da lógica de um certo totalitarismo psicanalítico. Sabemos que o totalitarismo é uma esperança, a de reabsorver as decisões singulares, a multiplicidade da verdade. No totalitarismo só existe uma verdade, que é a enorme tarefa de estabelecer o reino do Um. No campo da política temos claramente o que Freud indicou em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). Na política cidadã, o totalitarismo tem boas intenções; a aspiração a um mundo de harmonia, todo mundo reconciliado, como algumas religiões o buscaram (na superfície, é claro). Mas ainda é uma ilusão que não se sustenta.
Não preciso explicar muito quando digo que, se falamos do sujeito do inconsciente, pensamos em desejo, e, quando colocamos a questão do falasser, estamos do lado do gozo e da pulsão, em que o sujeito é sempre feliz. Ele é feliz porque a pulsão é sempre satisfeita, direta ou indiretamente; do ponto de vista econômico, ela é satisfeita dolorosamente ou agradavelmente, do lado do prazer ou do desprazer. Esta tese corresponde a apontar que existem arranjos ou modos de gozo, como sugere Lacan, em Televisão (LACAN, 1974/2003), nos quais o sujeito é sempre feliz na satisfação da repetição.
Assim, afirmamos que la urgencia dicha, como dizemos em espanhol, dita no sentido de falada — nos remete àquela estranha felicidade do silêncio das pulsões que podem atingir o mais mortífero.
Miller disse que afirmar que o sujeito é feliz é uma vociferação. Uma vociferação é uma exclamação que vem de uma voz muito alta. Não é uma afirmação, nem uma proposição. A proposição sempre vem com sua suposta afirmação: é um fato sem valor de verdade ou falsidade. A vociferação, por outro lado, supera a divisão do enunciado e da enunciação, pois não suspende, nem se distancia de quem a pronuncia, mesmo quando não há outro que não se distancie de onde se pronuncia. Ela é, fundamentalmente, seu ponto de emissão.
Somos consultados, em várias ocasiões, devido à depressão:
“O que a tristeza tem de central é que ela é um saber; existe lucidez na tristeza, mas é um saber triste, por ser cortado da vida, separado do real do gozo. É um saber que se articula só, e que perdeu o vazio que o articularia ao gozo em si.” (LAURENT, 2000, p.88)
O analista é aquele que se orienta pela ética do bem dizer, que prescreve encontrar um acordo, uma harmonia, sim, mas se trata de uma certa harmonia entre o significante e o gozo. O problema da depressão é uma questão de saber, é fundamentalmente um saber triste, que não pode ser dito. Recebemos pacientes deprimidos, muitas vezes como uma emergência, moderados ou graves, que não conseguem colocar em discurso algo do não dito. Paradoxalmente, a chamamos de “a dita urgência”, aquela que se desfruta sem saber. A escuta da demanda de cada um marca uma virada, pois, para o discurso analítico, os fatos do desejo e a resposta do gozo são singulares.
Se a temporalidade da análise é a angústia, e isso vale também para a urgência, para aquele momento de perplexidade em que a palavra fica presa na garganta, como diria Chico Buarque. Temos a função operativa do desejo do analista que visa despertar um contorno de espera. Não de esperança, isso sempre complica. Podemos caracterizá-la como uma proposta que permite uma mistura de aborrecimento, nos momentos de agitação – o tédio está sempre à espera de Outra Coisa – com a oferta de encontrar uma surpresa mais eficiente que a disjunção ou o desapego do Outro.
Freud descobriu que o corpo do falasser fala. Mas também goza, especificou Lacan. É o que a psicanálise demonstra: não há gozo sem corpo e que uma análise não visa apenas decifrar a verdade, mas também o gozo produzido no sinthoma.
Na aula V do seminário Mais Ainda, Lacan dirá que “todas as necessidades do ser falante estão contaminadas pelo fato de estarem implicadas com uma outra satisfação – sublinhem as três últimas palavras – à qual elas podem faltar.” (LACAN, 1973, p.70)
Já sabíamos que não basta pensar na satisfação da necessidade para entender o que é satisfação, pois existe outra. Qual é o outro termo ao qual essa outra satisfação se somaria? Essa outra satisfação dará origem ao inconsciente, que se satisfaz no nível da linguagem, diz Lacan nessa aula do seminário Mais, ainda, na qual já está preparando seu conceito de falasser.
O inconsciente é o lugar da satisfação, e não apenas do que é interpretado ou decifrado.Nesse seminário, o salto é perceber que o significante não tem apenas efeitos de significação, mas também de gozo, ou seja, o significante não apenas mortifica o organismo do ser vivo, mas também produz gozo. E é com isso que temos que lidar na análise, que é, fundamentalmente, uma experiência de fala.
Isso é também, particularmente, verdadeiro para a interpretação que é o modo de intervenção do analista. A interpretação não é solicitada por seus efeitos de sentido, mas de gozo, por seus efeitos corporificados. Trata-se aí de colocar, junto à dimensão da verdade, a da materialidade do significante, ou seja, o som, o que nos leva à noção de lalíngua, na qual é o som, o fonema, que tem uma importância especial. Isso dá à interpretação uma cor especial, essa sua emigração da comunicação do saber para um grito, uma jaculatória, um uso do significante sem o uso do sentido, pois, o que importa é a sua consistência, “o que poderia fazer soar o sino do gozo de maneira conveniente para satisfazer-se com ele” (MILLER, 2011, p.268, tradução nossa).
E aqui estamos no ponto em questão: devemos separar o gozo da satisfação. Não haveria experiência analítica se o gozo fosse satisfatório. Somente a jaculação pode retificar, não o sujeito, mas o gozo para que possa ser concebido como satisfatório. Em outras palavras, temos um gozo que seria satisfatório e um outro que não.
Faço um curto-circuito para pensar no discurso da ciência que tende a ser universalista, pois não pode responder à questão que nos é colocada em consequência do que chamamos de a modalidade do gozo ou, pode-se dizer, o imperativo de gozo do qual cada um é escravo. E isso é em si uma resposta.
Pretende-se que o discurso científico ofereça respostas para o gozo, mesmo aquele que vemos muito grosseiramente em nosso campo, que atua como um discurso científico, com suas extrações absurdas e estatísticas sugestivas.