MARIA BERNADETE DE CARVALHO
ANA OU LACADE – FOSFOROS
Tempos atrás, mais ou menos entre 2004 e 2008, integrei um grupo interessado pelas questões do mental no trabalho. Nossas pesquisas e reflexões estiveram polarizadas pelas discussões a respeito dos nexos causais entre trabalho e adoecimento mental. Em que medida pode-se estabelecer um vínculo entre o trabalho e o adoecimento?
Tratava-se de uma questão que nos chegava dos sindicatos, de instâncias jurídicas, de profissionais de saúde vinculados à clínica com trabalhadores e até da Secretaria de Saúde do Estado. O reconhecimento médico e jurídico de uma relação causal entre um trabalho e certo adoecimento tem implicações em termos de direitos sociais, podendo o trabalhador receber ou não os auxílios previstos por lei. E, numa deformação, o adoecimento vira, muitas vezes, a via de luta, ou melhor, a forma individual de responder a condições degradantes de trabalho.
Nesse momento, chamava a atenção o número de trabalhadores afastados por problemas de saúde mental e, marcadamente, em certas atividades laborais, como os teleatendentes, os professores, os trabalhadores da saúde. Sintomas transestruturais, como o alcoolismo, as depressões, as fibromialgias e as perturbações do sono eram e, ainda são, frequentes.
Verificava-se também, estatisticamente, que algumas categorias profissionais eram especialmente afetadas por um ou outro desses sintomas, o que fazia pensar que as relações no trabalho e/ou sua organização poderiam estar na causa de certas manifestações sintomáticas, tal como se conseguiu comprovar para o caso de adoecimentos orgânicos, como a silicose.
Condições sociais diferentes colocam desafios diferentes à constituição subjetiva, que é de cada um. Mas, capturados pelos discursos sociais, os sujeitos se manifestam, inclusive sintomaticamente, de formas semelhantes, como por meio dos sintomas citados acima, sintomas sociais. A relação desses sintomas com o trabalho não é sem as mediações que são dadas pelas condições subjetivas de cada um. São esses os sintomas ou nomeações do mal-estar que, muitas vezes, nos chegam na clínica e cuja função e sentido vamos, aos poucos, entendendo em cada sujeito.
Estávamos, naquele momento, em outro nível de análise em relação ao que agora se coloca quando partimos da psicose.
De um modo geral, se o trabalho pode ser degradante, exigente e se constituir como a encarnação do Outro malévolo ou como espaço de realizações, ele é, sobretudo, o local, por excelência, do laço social. Vale retomar o que Freud diz em O mal-estar na civilização e que Nicola Purgato recorta, no seu texto intitulado “A benção do trabalho” (PURGATO, 2017, p. 10):
Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade (FREUD, 1930/1996., p. 87-88.).
Hoje, mais que nunca, o trabalho é central em nossas vidas, medida do seu valor e mediador de laços sociais. E, como um universal, o trabalho tem a qualidade de estar posto para todos. Ele é parte da condição humana. Desse modo, quando nos fazemos representar pelo trabalho, isso, por si só, nos garante um lugar na comunidade humana. Essa possibilidade é preciosa para todos, mas, na psicose, quando o campo do Outro é especialmente insuportável, as identificações com o trabalho podem oferecer a sensação de ocupar um lugar no mundo e viabilizar estabilizações e trajetórias de vida bastante normais. Alguns casos nos ajudam a avançar, já que isso ocorre de formas singulares.
Uma vinheta de Nicola Purgato é exemplar a respeito da estabilização pela identificação ao S1 trabalho, e a transcrevo abaixo:
Giuseppe, cinquentão single, há anos trabalha part-time em uma instituição pública, orgulha-se de fazer o seu trabalho, […] porque se sente o único que realmente trabalha e faz a instituição andar pra frente com certo cuidado, uma vez que todos os seus colegas são preguiçosos, só conversam e – por isso – o denigrem. Não há muitos sinais de psicose manifesta nele, embora se possa intuir sua estrutura subjacente […]. O trabalho para ele, por isolá-lo dos outros, o conecta com uma sensação que o mantém, de algum modo, ligado ao Outro (PURGATO, 2017, p. 11).
Há algum tempo, acompanhei um jovem, Jota, 30 anos, cuja relação com o trabalho e com os colegas em muito se aproxima à descrição acima. No entanto, ele chegou até mim num momento em que algo na junção com o sentimento de vida se desarranjou e que ele experimentou, repentinamente, uma total ausência de interesse pelo mundo. Tudo ficou cinza, diz ele, indicando um forte recolhimento libidinal.
Após uma licença e não sem dificuldades, Jota conseguiu reconstruir seu retorno ao trabalho. Sua explicação para o ocorrido e sua estratégia para o retorno centraram-se no excesso de trabalho: foi porque ele trabalhava demais, assumindo tarefas que eram difíceis para os outros e o lugar de um consultor, que ele terminou por ficar deprimido. Ao lado disso, e penso que mais importante, ele experimentou uma descrença na possibilidade de conseguir fazer o seu setor funcionar direito. Ele relata sobre uma conversa que teve com um diretor, em que este o teria sondado a respeito de como empregar os recursos destinados ao treinamento do pessoal da casa. Nessa conversa, Jota não só descobre a total ignorância do chefe a respeito dos problemas e seu menosprezo pela questão como também se vê colocado numa posição de exceção.
Esse relato, a perplexidade que o acompanha e sua desorganização corporal nas ocasiões em que é chamado a se responsabilizar por seu sobrinho, levou-me a trabalhar com a hipótese de que seu desencadeamento se devia à impossibilidade de ocupar esse lugar de exceção. Nesse momento, as solicitações de que era alvo começaram a se tornar invasivas.
Seu retorno ao trabalho se construiu sobre a limitação das tarefas de que se encarrega, embora permaneça sendo aquele que, diferente dos colegas, trabalha corretamente. Sua descrença quanto à possibilidade de mudar o funcionamento do mundo introduz um peso em sua relação com o trabalho e ele procura por alternativas. Esse trabalho, no entanto, com a flexibilidade que ele admite, dá um lugar no mundo a esse sujeito, cuja existência é bastante restrita.
Muito mais tarde no tratamento, Jota revelará que sua depressão sobreveio no momento em que iniciava um relacionamento com uma colega. Esse relacionamento, único em sua vida, não passou de alguns encontros, pois o estado em que se viu o levou a por um fim na história. Ele diz que, quando entendeu que estava deprimido, telefonou para a moça e falou que não poderia continuar. Aqui, também, o sujeito não pôde ocupar uma posição de exceção.
Nicola Purgato (2017, p. 11) chama a atenção para o fato de que, muitas vezes, não é preciso que o trabalho seja formalizado ou socialmente muito significativo para sustentar uma existência e possibilitar a sensação de um lugar no mundo. Ele dá o exemplo de um jovem desempregado que se incumbe de estudar para descobrir como os políticos e economistas nos enganam. Com isso, ele escreve pequenos artigos para um jornal local, pelos quais nada recebe, mas que, para ele, é o trabalho mais importante para a construção de um mundo melhor. Aqui, também, o significante ‘trabalho’, sozinho, opera de modo a sustentar o sujeito e a dar-lhe um lugar no mundo.
Podemos lembrar do caso da Estamira, cuja vida foi alvo de um documentário que está disponível no Youtube. Ela encontrará um lugar no mundo através de um trabalho bastante à margem, o trabalho de catadora no lixão. Ela encontra, nesse trabalho, a oportunidade de construção de um cotidiano e de laços sociais, ao mesmo tempo em que trata seu ser de dejeto, pelo reaproveitamento do que ela aí encontra e que ela compartilha com seus familiares.
Já o caso do Homem do Relógio, parece-me exemplar a respeito do recurso às identificações imaginárias pelo trabalho. Trata-se de um caso sobre o qual escrevemos um artigo há tempos (CARVALHO; MACEDO, 2007), investigando tanto as condições de estabilidade quanto o que se revelou insuportável para esse sujeito. A importância do trabalho, para ele, pode ser transmitida pelo trecho abaixo, passagem do depoimento colhido em entrevista por pesquisadores das relações entre trabalho e adoecimento, após o seu desencadeamento:
Não gosto de olhar no espelho. Quando eu ia trabalhar, eu gostava. Tinha aquele pensamento bom: “Sou vigia, vou vencer mais este turno”. Mas, agora, não tenho mais esse gosto. Fui à barbearia, tinha um espelho muito grande, e eu fiquei muito aborrecido em ver essa imagem minha. Deu medo de me ver naquele espelho e não poder dizer comigo mesmo: “Eu sou vigia noturno” (LIMA et al, 2002, p. 236).
É o trabalho que lhe permite construir uma imagem de si. Isso se reafirma com o seu relato de que, após o desencadeamento, se entrega a devaneios em que se trata de rever, como num filme, todo o ritual de se aprontar, olhar-se no espelho e dirigir-se ao trabalho; não sem marcar seu orgulho em se ver fardado.
Trabalhador impecável, esse sujeito que zela por seu bom nome através de recursos imaginários sucumbirá ao encontrar um chefe que quer tudo controlar. Esse chefe, ao mesmo tempo tirano com os empregados e permissivo em seu comportamento, presentifica um Outro abusador, que se tornará mais e mais insuportável para esse sujeito. Esse chefe, com sua presença e seus dispositivos de vigilância, irá desalojá-lo da posição de quem vigia, de quem olha, e transformá-lo no objeto de um olhar invasivo.
Esse senhor passa a apresentar sobressaltos, ausências, insegurança, sinais de desorganização corporal que vão de diarreias a dores e tonteiras, além da extrema rigidez na obediência às determinações insanas do chefe. Após seu desligamento do trabalho, ele desenvolve a compulsão de desenhar o relógio que, no trabalho, devia ser acionado de 20 em 20 minutos, para provar que estava desperto. Sem o trabalho e sem o relógio, ele o desenha para poder acioná-lo, o que tem o efeito de acalmá-lo. É interessante que, até com o relógio, ele termine por estabelecer uma relação especular, de rivalidade: quem vigia quem? Quando ele perde seu posto, ele quer manter o trabalho com seu relógio, de quem se tornou amigo. Senão, ele pergunta, “como explicar por que que ele faz falta pra mim?” (LIMA, 2002).
Evoco ainda outro caso, que li recentemente no livro da Nieves Soria Dafunchio, Confines de las psicoses (2008). Trata-se de uma jovem que desencadeia aos 19 anos, no momento em que seu pai e sua mãe sofrem quedas e fraturas, um após o outro. Eme, como a chamaremos, cai, como seus pais, e passa por uma internação psiquiátrica, iniciando aí, uma depressão e anorexia radical. Sete anos depois, ela será internada por desnutrição e iniciará o tratamento psicanalítico. Conforme se revelará, para Eme, o alimento e a voz da mãe se sobrepõem, fazendo com que, quando ela come, não tem como não escutar a voz da mãe. Quando ela come, escuta a voz da mãe por dentro. Nieves isola a expressão “não tem como não”. Ela comenta que falta a Eme o “não” do Nome-do-Pai, que permitiria limitar a voz superegoica da mãe.
Mas o que me interessou nesse caso, para incluí-lo aqui, é que, para além das intervenções de sua analista, no sentido de deslocar essa sobreposição entre a voz superegoica e o alimento, um trabalho sobre o objeto voz será possibilitado pela escolha profissional de Eme.
Atuando junto a um comissariado de proteção de mulheres vítimas de violência familiar, ela produz petições, slogans e textos de divulgação que buscam dar voz aos que não têm voz. Ela se ocupa em dizer pelos que não podem ou não sabem dizer, apropriando-se de sua voz. O reconhecimento de seu trabalho pelos colegas permite a Eme tomar a palavra e ser escutada, no lugar de escutar a voz da mãe. Nesse tratamento, está colocada a possibilidade de que a nominação de Eme pelo trabalho faça suplência ao Nome-do-Pai e se constitua como um suporte para o sujeito.
Depois de afirmar a importância do trabalho como forma de inscrição dos sujeitos no Outro e como um campo de soluções para as inclinações do gozo, indo até à suplência do Nome-do-pai, gostaria também de dizer que ele é um contexto fecundo para as interpretações delirantes na paranoia. Facilmente um pedido ou uma observação de um chefe ou colega são interpretados como humilhação, perseguição ou avanço de caráter sexual. Alguns sujeitos conseguem inventar artifícios, por vezes discretos, como horários alternativos, que servem para limitar o gozo do Outro, experimentado como invasivo. São manobras que visam esvaziar a consistência do Outro e diferenciar o sujeito. Aqui, como na clínica com esses sujeitos, o que se viabiliza é o tratamento do Outro.