Maria Wilma S. de Faria
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Diretora da Seção Clínica do IPSM-MG
A psicanálise, diferentemente de outros campos de saber, traz em seu arcabouço uma especificidade, na medida em que não trabalha com categorias e não se ocupa de generalizações, uma vez que o real da experiência analítica é o que se tem em vista. Orientamo-nos pela prática analítica, na qual se visa o caso a caso, e isso aponta para o fato de que o conhecimento em psicanálise é construído de maneira única frente a uma impossibilidade de enquadramento, de totalização ou de generalização. Cada sujeito deve se apresentar ao longo do tratamento com o seu sintoma, sua forma singular e única de lidar com o real impossível de suportar.
Pensando o específico na experiência analítica, é interessante perguntarmos: quais são os significados dessa palavra? Segundo o Dicionário Houaiss (HOUAISS; VILLAR, 2001), o específico é: “próprio de uma espécie; peculiar; destinado ou pertencente exclusivamente a um indivíduo ou a um caso, uma situação; especial; exclusivo; próprio; inerente”. Tal definição cai como uma luva, na medida em que, na especificidade, encontramos aquilo que é da ordem também de uma unicidade, o mais próprio de cada falasser, algo que poderíamos localizar como sendo o sinthoma. Para Miller (2013, p. 133), “o sinthoma é o singular em cada indivíduo”. “O singular ‘como tal’, não se parece com nada: ele ex-siste à semelhança, ou seja, ele está fora do que é comum” (MILLER, 2009, p. 35).
Se o singular de cada falasser nos aproxima dos últimos tempos do ensino de Lacan, podemos também nos servir da particularidade, uma vez que esta abraça as categorias e as estruturas clínicas presentes no primeiro tempo de seu ensino. Não se trata de rejeitar os tipos clínicos que herdamos de Freud, de Lacan e da clínica psiquiátrica clássica, mas de saber que um caso nunca realiza o seu tipo: “Que os tipos clínicos decorrem da estrutura, eis o que já se pode escrever, embora não sem flutuação” (LACAN, 1973/2003, p. 554). O Homem dos Ratos, enquanto caso paradigmático, serve como modelo para ilustrar a neurose obsessiva; porém, nem todos obsessivos são como Ernst Lanzer. Cada obsessivo opera de acordo com seu gozo de maneira única, em que pese o fato de que, como falasser, ele esteja também em articulação com o particular e com o universal dessa categoria. Assim, “os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros do mesmo tipo” (LACAN, 1973/2003, p. 554).
A clínica psicanalítica preconiza o Um-sozinho que habita cada ser falante em sua redução e dimensão de real. Se a loucura passa a ser generalizada e está posta a cada ser falante, a psicanálise de orientação lacaniana nos convida ao rigor, no sentido de sustentar o estabelecimento de um diagnóstico diferencial do qual não se pode abrir mão. A construção do diagnóstico diferencial é fundamental na condução de um tratamento, é a bússola orientadora para o manejo de um caso perante as especiais maneiras dos sujeitos se estruturarem psiquicamente, de saberem fazer com seu sintoma e de se inscreverem no laço social. Há, além disto, desse tratamento possível do único e específico em cada sujeito, algo que insiste em não se inscrever e que resta como irredutível. Fazer desse resto uma invenção é o que cabe a cada ser falante, independentemente de sua estrutura. Assim, valer a prática da psicanálise é um princípio ético.
A prática psicanalítica de orientação lacaniana tem também como específico fazer existir o sujeito! Procuramos localizar, em cada caso, o “divino detalhe”, a forma de funcionar do falasser. Interessa à psicanálise o para além das multiplicações contemporâneas de tipos clínicos que proliferam por todos os lados – anoréxicos, bulímicos, toxicômanos, hiperativos, deprimidos. Tais apresentações sintomáticas são compatíveis com a nossa época, pelas quais o discurso da ciência, com seu pragmatismo de adaptações, prescrições e intervenções, busca reduzir o corpo ao organismo, desconhecendo, assim, sua dimensão pulsional e de gozo.
“O que Lacan chama de sinthoma é, por excelência, o conceito singular, cuja extensão é tão somente o indivíduo” (MILLER, 2009, p. 38)”. Assim, não é possível comparar ninguém a não ser a si mesmo, de tal sorte que a singularidade de cada caso compreende o que é incompreensível e incomparável. O instante de ver está relacionado ao singular do caso; assim, desde a primeira entrevista, a forma como se localiza o nome de gozo do falasser tem a ver com esse instante de ver, com como cada analista “encarna” (MILLER, 2009, p. 40) sua presença e faz do encontro um acontecimento de corpo.
O discurso do analista, portanto, diferentemente dos outros discursos, é o único que exclui a dominação, uma vez que, em seu lado superior esquerdo, há um elemento que é “causa de desejo”: ali o analista se faz semblante e o saber se encontra apenas enquanto suposto. O discurso analítico nada tem de universal, não é para todos, e sim “para o Um-sozinho” (MILLER, 2022).
É também único da psicanálise de orientação lacaniana, enquanto ética, o não recuar, o não retroceder do ato analítico, da arte da escuta, de “seguir” o falasser em suas pequenas grandes invenções, do desafio do analista se oferecer como objeto, sempre resto e causa, para que uma transferência opere, permitindo um endereçamento. Enfim, é uma arte, e trata-se de, “do ponto de vista singular, fazer reinar um deixar ser: deixar ser aquele que se entrega a você (analista), deixá-lo ser na sua singularidade” (MILLER, 2009, p. 36).