MÁRCIA MEZÊNCIO
Concluímos hoje nosso percurso pelo texto “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, orientado pela questão de investigação proposta pela Seção Clínica: o que de real encontramos em nossa prática na interface da Psicanálise com o Direito? Esse real encontrou, ao longo do semestre, algumas nomeações — crime, violência, guerra — manifestações que respondem, por outro lado, ao irredutível da pulsão que seria, finalmente, o real em jogo. O Direito, um produto da cultura, seria ele também uma resposta ao que não tem governo, nem nunca terá… Antecipando uma questão que trabalharemos no próximo semestre, como o Direito pode servir à invenção do sujeito para tratar seu embaraço com o real?
Iniciaremos, talvez, o percurso anunciado para o futuro, levantando algumas questões sobre o utilitarismo da pena. Cabe-me apresentar um comentário sobre a crítica de Lacan ao utilitarismo articulada às questões da função da punição e sua relação ao real da pulsão.
Um trecho que abre a seção IV desse texto de Lacan condensa o argumento que ele desenvolve ao longo do artigo. Eis o trecho:
Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, empenhada como está no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação expiatória do castigo. Se ela conserva seu peso exemplar, é tendendo a absorvê-lo em seu fim correcional. E além do mais, este muda imperceptivelmente de objeto. Os ideais do humanismo se resolvem no utilitarismo do grupo. E, como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais, completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem igualmente a revolta dos explorados e a consciência pesada dos exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca sua solução numa formulação científica do problema, isto é, numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se, após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como uma concepção sanitária da penalogia (LACAN, 1950/1998, p.139).
Articulando essas considerações à minha prática no Liberdade Assistida, tomarei, mais uma vez, a afirmação que pode ser lida reiteradas vezes nos Termos de Audiência encaminhados pelo Juízo aos programas de execução de medidas, e que ressoa, a meu ver, com essa advertência de Lacan relativa ao utilitarismo e também à má consciência social: “a medida socioeducativa tem o caráter de pena, mas não a finalidade de retribuição, seu objetivo é de ressocialização”. Essa medida que é, pois, uma sanção e só se aplica em resposta ao ato delituoso cometido pelo adolescente considera a “condição peculiar de desenvolvimento” do adolescente e trata a ruptura do laço social ocasionada pelo ato infracional através da “socioeducação” e da “inclusão social” e não da retribuição.
Parece-me, então, que a afirmação acima resume uma série de ordenamentos, normativas e seus fundamentos políticos e filosóficos, senão ideológicos, e aqui poderá ser um ponto de partida para uma leitura exploratória de alguns artigos sobre a evolução do Direito Penal e sobre o utilitarismo da pena a que Lacan se refere no trecho acima. Fica a advertência de que não farei uma discussão sistemática sobre o tema, mas o destaque de alguns pontos que podem ser relevantes para nossa discussão.
Podemos tomar igualmente o diploma legal que normatiza a execução das medidas, conhecido como Lei do SINASE. Em seu artigo primeiro, a definição dos objetivos da medida socioeducativa identifica o cumprimento da medida à promoção social, vinculando-o à execução do Plano Individual de Atendimento, acentuando o seu caráter assistencial. Apesar de apontar também como objetivo a desaprovação da conduta, esta parece ocupar um lugar acessório para alguns operadores.
Inicialmente, gostaria de destacar do texto de Lacan a crítica ao humanismo e ao humanitarismo, como essa solução utilitária. Ao afirmar que a função expiatória do castigo é reduzida a seu fim correcional, que pode variar, abre para nós a questão sobre a finalidade da pena e para a disjunção entre a função do castigo para a Psicanálise e para o Direito. Por fim, aponta a concepção sanitária da penalogia, o recurso ao saber científico da psiquiatria, servindo igualmente a esse fim utilitário da prevenção.
E o que é o utilitarismo? O utilitarismo é uma teoria ética, que se baseia no princípio da utilidade. A definição clássica desse princípio é: o prazer e a ausência da dor são, de fato, desejados por todos os seres humanos, e cada pessoa busca seu próprio prazer (A semelhança desse princípio com o princípio de prazer freudiano é notável, tendo sido assinalada por alguns autores), Jeremy Bentham, James Mill e John Stuart Mill (de quem Freud fez algumas traduções) sendo os principais autores dessa versão clássica, filosófica, do utilitarismo. Para uma visão utilitarista do Direito Penal, um comportamento deve ser proibido se for indesejado pela sociedade, sendo sua lesividade um elemento do cálculo, mas não o mais relevante. A avaliação do resultado produzido pelo comportamento se dá por sua utilidade (MARTINELLI, 2014).
Em relação ao humanismo, apontado por Lacan, o próprio Código Penal clássico surge de uma visão humanista, tributária do iluminismo. Também a questão da utilidade já está presente em Cesare Beccaria, autor de referência para a localização do surgimento dessa versão chamada clássica do Direito Penal. Segundo os editores no Brasil de sua obra Dos delitos e das penas, Beccaria “condena o direito de vingança e toma por base do direito de punir a utilidade social, declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos”, bem como o caráter retributivo e preventivo da pena.
Em relação à proporcionalidade das penas, um detalhe que me pareceu curioso é que não se trata apenas de avaliar a gravidade ou lesividade do ato, mas igualmente sua frequência, isto é, se um comportamento não é comum, ele não precisa ser inibido tanto quanto aquele que, menos grave, perturba a organização social por ser habitual. Esse o caráter preventivo, exemplar da pena. A utilidade da pena também, nesse sentido, depende da certeza da punição. Segundo esse ponto de vista, não é o tamanho da pena, mas a certeza de não impunidade que seria um fator mais poderoso de inibição do crime.
Destaco de um artigo de Savino Filho (2014), “Evolução do Direito Penal – Comentários”, a afirmação de que as primeiras manifestações do Direito se iniciaram com os primeiros agrupamentos humanos, em que a necessidade da ideia de punição nasceu do próprio convívio comunitário, em defesa do sentimento natural e sobrevivência contra atos injustos. Formulação que corrobora o argumento de Lacan no texto da criminologia, ao dizer que não existe sociedade em que não se estabeleça a relação crime-castigo através de uma lei positiva.
O autor afirma ainda que a formação do Direito Penal se deu em ciclos em que os castigos evoluíram. Ele lista: perda da paz, vingança privada, composição pecuniária, castigo corporal e pena pública, que eram regulados e desenvolvidos através de leis de usos e costumes, das legislações do Oriente, da Grécia, do Direito Romano, do Germânico, do Canônico, do Penal comum.
Seu artigo descreve as Escolas Clássica (Beccaria), Positiva (Lombroso), Eclética e destaca a Escola Nova de Defesa Social, que surge no pós-guerra. Essa nova Defesa Social reconhecia a luta contra a criminalidade como sendo uma das mais importantes tarefas da humanidade, tarefa que exigiria os meios adequados para esse combate. Esses meios adequados, que foram propostos como um programa mínimo que excluísse a ideia de pena ou retribuição, deveriam buscar a desjuridização e ter um caráter não repressivo.
O autor ainda assinala uma aproximação do Direito Penal com o Direito do Menor, a partir dessa escola nova de Defesa Social, com ênfase nas medidas de tratamento com vistas à reeducação e à reinserção social.
Ele destaca as teorias finalistas: o fim do Direito Penal é a proteção social e o controle. Cita Luigi Ferrajoli e articula garantismo penal com intervenção mínima. Esse ponto articula direito do cidadão e limite da intervenção do estado. Ressoa ao que Lacan aponta sobre a crise de legitimidade do exercício da punição pelas classes dominantes. Localiza-se aí uma crise do Direito Penal.
Ao percorrer rapidamente essa história do Direito Penal, podemos afirmar que se trata de mais uma crise, ou propor que a condição do Direito Penal seria de crise permanente?
Na atualidade, testemunhamos a existência de uma tendência internacional de humanização das penas, pelo menos em tese, atendendo às regras mínimas da ONU para as prisões, que datam de 1955, também no contexto do pós-guerra e da declaração dos direitos humanos, já apontados aqui como o pano de fundo da comunicação de Lacan sobre criminologia.
No Brasil de hoje, por um lado, Maierovitch (2014) afirma que a pena tem a finalidade ética de emenda, ressocialização e reinserção social, além de sua natureza retributiva e aflitiva. Por outro, Juarez Tavares (2014), entre tantos outros, critica o projeto de mudança do Código Penal em discussão no Congresso Nacional, por considerá-lo de caráter retórico e usar de apelo emotivo para justificar o endurecimento das penas. Afirma que o projeto está focado na punição, na criminalização dos movimentos sociais e que desconhece a falha do Estado em não promover a ressocialização do preso.
Enquanto isso, nos complexos penitenciários, funciona uma ordem feroz, um rigor nos castigos determinados pelos próprios presos, torturas, um real que nos espanta e revolta. Que coloca em questão não somente a dita falência do sistema, mas que nos permite relançar a pergunta sobre a função expiatória do castigo, para o sujeito e para o tecido social. Também, paradoxalmente, assistimos à chamada “judicialização” de todos os tipos de laços sociais e de todos os campos da existência. Exemplos não nos faltariam, seja de nossa prática profissional, seja de nosso cotidiano.
Perguntamo-nos sobre a incidência dessa pena privada da função de castigo, dessa demissão da autoridade de sua função de julgar e castigar, dessa alegada “desjuridização”, sobre o real da pulsão que se presentifica no crime ou no ato infracional.
Pode-se dizer que, para a discussão sobre nossa prática, em particular no sistema socioeducativo, devemos nos perguntar que contribuição a psicanálise lacaniana pode oferecer para possibilitar ao sujeito os instrumentos para saber fazer com o real em relação ao qual ele se encontra desarmado.
Dos trabalhos apresentados em nossos encontros do semestre, recolhemos alguns pontos de referência para abordar isso que escapa à regulação, mas que pode recorrer a um discurso como o do Direito.
Hélio Miranda pergunta: como produzir uma outra dimensão da verdade frente à demanda do judiciário de constatar a verdade dos fatos? E apontou a possibilidade de introduzir uma experiência da verdade que considere o sujeito e que, pela abertura da enunciação e manejo da transferência, faça vacilar o imaginário (abuso da criança pelo pai) e possa tocar a experiência do real (o real traumático da própria experiência infantil da mãe) e relançar o campo do desejo.
Fernando Casula apresentou-nos os paradoxos da inimputabilidade e suas consequências para o sujeito “fora da lei” que é o psicótico. Fora da lei também é o real da pulsão, sobre a qual o sujeito é, no entanto, responsável. As questões que Fernando nos apresenta concernem à função da ficção jurídica como um tratamento para esse real, tratamento a ser produzido via consentimento à punição. Nessa direção, opõe o utilitarismo da pena à responsabilização. A proposta de uma pena sob medida, podemos chamá-la de “utilitarista”, ao modo da psicanálise? Como um uso da ficção jurídica para inscrever o sujeito?
Kátia Mariás, ao tratar do crime e da violência, convidou-nos, com Freud e Lacan comentados por Maria José, a pensar a violência na perspectiva do excesso pulsional. Aquilo que em Freud é nomeado como pulsão de morte, mais além do princípio do prazer, e em Lacan, como o real do gozo. Excedente pulsional não regulado que, quando atuado, é a violência. Então, o ato tem uma causa: a presença do real do gozo. Lembrou-nos, ainda, que, para Freud, o crime edipiano era a forma privilegiada de dar tratamento à violência pulsional. O ato criminoso se constitui uma defesa contra a angústia que sinaliza a presença do objeto. O ato é uma espécie de resposta, de tratamento pela desaparição do sujeito no ato. Culpar-se por um crime, seja ele cometido ou desejado, para Freud, seria uma maneira de se estabelecer dentro da lei do pai. Na concepção lacaniana, o assentimento ao castigo é o que garantiria a possibilidade de responsabilização. Nesse sentido, a lei e a pena poderiam ser “úteis” ao sujeito.
Ludmilla Féres Faria, ao apresentar-nos o supereu, demonstra o avesso do princípio utilitarista. Aponta que o real da pulsão que escapa a qualquer artifício pode ser entrevisto na referência ao supereu, entendido como a instância que impede o equilíbrio ao encontrar no sofrimento a própria satisfação. Nesse sentido o supereu pode ser traduzido como a divisão do sujeito, dado que mostra que o sujeito não quer seu próprio bem, que ele trabalha contra si próprio.
Graciela Bessa segue essa trilha, lembrando-nos de que a hipótese do supereu sustenta que o que impede que a agressividade se dirija aos outros é a própria pulsão de morte, que, através do supereu, exerce sua ferocidade contra o sujeito. Uma vez que essa pulsão de destruição, ou de morte, é estrutural e que, enquanto pulsão, engendra uma busca de satisfação que não cessa, como tratá-la, temperá-la, nos termos que Graciela nos apresenta? Em seu texto, ela tece considerações sobre o mal-estar na cultura, apontando que, para Freud, é o mal-estar do sujeito, que ela nomeia mal-estar na identificação, que é o fundamento do mal-estar na cultura.
Em nosso último encontro, Maria José e Marina Otoni nos apresentaram alguns dos pós-freudianos que exploraram, de alguma forma, o campo da criminologia, relacionando suas descobertas e proposições à concepção freudiana, enunciada em 1906, em “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos”. A questão pulsional é considerada por esses autores, segundo uma concepção desenvolvimentista da libido, o delinquente ou o criminoso sofreriam de uma fixação libidinal e permaneceriam em uma posição infantil. Para alguns desses autores, a questão do tratamento do criminoso envolve a educação ou uma reeducação (Seria possível pensar em uma “educação” das pulsões, sendo essa a contribuição da psicanálise à justiça, para esses autores?). Sobre a punição, esta não se coloca como uma condição para a responsabilidade, pois têm maior peso as ideias de prevenção e de cura.
Uma palavra sobre o real da pulsão. O que resiste ao simbólico é a pulsão de morte. Não se desenvolverá aqui esse tema, que já foi tratado nas intervenções ao longo do semestre, retomadas acima. Encontramo-nos em um momento da história humana, que pode ser escrito através do matema a>I, em que o programa civilizatório não privilegia a interdição ao gozo. Pelo contrário, o que se coloca é um imperativo de gozar e uma oferta insidiosa de objetos, um excesso sem regras. A esse propósito, cito o verbete “Excesso” do volume Scilicet “Um real para o século XXI”.
A crise atual da civilização não é, no entanto, um processo casual, mas, antes, um programa relacionado com a produção de um novo procedimento normativo posto na base de uma nova (in)civilização. […].
Esta é, portanto, nossa tese, a civilização do excesso (de gozo) é um discurso, um novo saber/poder que se exercita sobre as vidas através da injunção de gozo. […] É um poder que se exerce sem metáfora, sem insígnias, sem retórica e, em alguns aspectos, sem sentido (RAMAIOLI, 2014, p.139-140).
Miller (2009) chega a apontar que, se existe culpa na contemporaneidade, seria uma culpa de não gozar. Se a pulsão não pode ser educada, ela pode ser tratada pelos ordenamentos sociais e jurídicos. É também disso que Lacan trata nesse artigo. É, então, nesse sentido, que, no que se refere à psicanálise de orientação lacaniana, discutimos as novas ficções jurídicas que poderiam ser criadas para dar contorno, fazer borda a esse real.
Gostaria de esclarecer que tomei alguma liberdade para abordar a questão da utilidade ao não me deter em uma exploração circunscrita à referência ao utilitarismo, seja na Filosofia ou no Direito, mas tenha me permitido inverter a questão da utilidade, referindo-a ao pragmatismo proposto por Miller (2008) e que justificaria a ação lacaniana na cidade e nas instituições. Assim, também Miller aponta em que a Psicanálise poderia ser útil ao Direito, e, entre outras considerações, afirma que a Psicanálise permite ao Direito nuançar a crença na verdade, ao considerar a distinção entre o verdadeiro e o real. Como, para abordarmos o real, precisamos recorrer aos semblantes, inventar, o Direito, ao reconhecer-se como ficção, também poderia prestar-se, ser útil, ao tratamento desse real.
(1) Texto proposto para discussão no Núcleo de Psicanálise e Direito do IPSM-MG, em 04/06/2014, no encerramento das atividades do semestre.