CRISTIANA PITTELA DE MATOS
Introdução: Um Real
Nosso século XXI, marcado pela dissolução dos semblantes, consequência do binarismo ciência-capitalismo, levou Jacques Alain-Miller, em Un réel pour le XXIe siècle, a afirmar o quanto o real insiste em se manifestar de um modo caótico e aleatório, sem que se possa recuperar uma ideia de harmonia. Em seu curso O ultimíssimo Lacan, Miller definirá o real enfaticamente como “um novo tremor!” (MILLER, 2013 p.208).
Somos surpreendidos e vivemos, uns mais, outros menos, inquietos e sobressaltados: a dimensão de contingência e a desordem do real prevalecem.
“O verdadeiro real”, nos disse Lacan, “implica uma ausência de lei. O real não tem ordem: … é desprovido de sentido” (LACAN, 1975. p.131, 133).
Vários são os discursos que tentam apagar, domesticar, calcular, controlar, educar e até mesmo prevenir o real, com protocolos, medidas de vigilância e segurança; mas o real insiste, retorna, escapa às tentativas de enquadramento. A psicanálise, por sua vez, possibilita um outro modo de apreensão do real e a chance de operarmos com ele.
Miller convida-nos, enquanto psicanalistas, a investigarmos, no sujeito do século XXI, “a dimensão da defesa contra o real sem lei e o fora do sentido” concernindo um real tal como o inconsciente de cada um permite apreender. Propõe-nos, assim, que a defesa possa ser perturbada (MILLER, 1998), e mesmo desmontada (MILLER, 2013), para que se atinja a singularidade e a diferença de cada sujeito — pedaço de real que não muda, incurável — e que um novo enlaçamento a partir desse ponto possa se produzir.
Podemos nos perguntar: como perturbar (deranger) a defesa?, questão que Miller (2013) também nos apresenta, no “Prefácio” do livro de Hélène Bonaud: L’inconscient de l’enfant. Verificamos, em muitos casos, em nossa clínica com crianças, que intervimos antes mesmo que a defesa tenha se cristalizado; assim, o encontro com um analista possibilita ao sujeito a construção de um sintoma como resposta ao trauma, à perturbação do real.
Nossa pesquisa, neste ano de 2014, se inicia a partir do trauma, conceito proposto tanto pela Seção Clínica do IPSM-MG — Incidências do trauma: o que de real você encontra em sua prática? — quanto pela Nova Rede CEREDA — O traumatismo e o Real na Clínica: o que as crianças inventam?.
Podemos, então, nos perguntar: o que de real encontramos em nossa clínica com crianças? Como o real se apresenta para cada criança?; ou, ainda, como cada criança — cada sujeito — concerne um real? É afetado por um real? Responde a um real?
Nossa investigação e work in progress contam com o argumento às 43a Jornadas da École de La Cause Freudienne — Les traumatismes dans la cure analytique: bonnes et mauvaises rencontres avec le réel — em que Christiane Alberti e Marie Helene Brousse relembram o conhecido exemplo da Interpretação dos sonhos:
Um pai perdera um filho. Perda cruel, traumatismo no sentido corrente. Cansado, ele confiou a um senhor a tarefa de velar o corpo do filho amado e foi dormir em um quarto contíguo, deixando a porta entreaberta. Um barulho o desperta: o fogo começa a queimar o corpo amado. É a realidade. Como responde o inconsciente? – elas perguntam. Com um pesadelo, o filho aproxima-se e murmura: “Pai, não vês que estou queimando?”.
Onde está o trauma? – elas respondem: a impossível voz do morto; aí está o que verdadeiramente acorda o pai […]. Feridas que não se apagam de “perdas imajadas no ponto o mais cruel do objeto” […] o laço do trauma aos objetos deixa o sujeito sem bússola, em um mundo que perdeu o sentido. (ALBERTI; BROUSSE, 2013)
Nossa clínica toma, portanto, sua orientação desse real como impossível, ponto que faz traumatismo; vamos trabalhá-lo, neste primeiro semestre, tentando definir como ele se faz presente na puberdade; como o sintoma é uma resposta ao trauma; como o trauma se faz presente na devastação materna; como a angústia é um sinal do real do trauma; investigaremos também o real do trauma no autismo e nos pesadelos.
Nossa pesquisa visa também ao tratamento, às saídas e às invenções de cada criança frente a esse ponto opaco, e como o analista pode, com suas intervenções, tocá-lo para que propicie um novo arranjo, novas respostas e invenções.
Em suma, vamos tentar apreender o que de real encontramos em nossa clínica com crianças, a partir do inconsciente, passando pela barreira do recalque e da defesa que cada um constrói contra a ferida que o real constituiu quando se chega ao mundo, ou quando se está diante de acontecimentos traumáticos (GUÉGUEN, 2014).
O Trauma E O Troumatismo
O trauma é, desde sua origem grega — trôma — a experiência de uma ferida (LAURENT, 2013) que causa efração. Um choque súbito e violento que não permite a antecipação e produz um dano: a irrupção de um horror, o excesso de sensação e emoção, o silêncio de uma palavra jamais articulável. Algo impossível e insuportável acontece e desarranja o bom funcionamento do mundo, acarretando uma paralisação.
O trauma é assim um modelo paradigmático de um encontro que excede as palavras, as possibilidades discursivas, desvelando um real perturbador. Por mais que se fale dele, algo resta, uma marca indelével, sobre a qual se retorna colocando em jogo um impossível de simbolização.
Essa intensidade e a paradoxal exterioridade do trauma foram abordadas por Freud, segundo Laurent em “O trauma ao avesso” (2002), desde o “Projeto”, por suas metáforas energéticas, como o afluxo de excitação externa e, sobretudo, as excitações de origem interna, pulsional. Freud, em um primeiro momento, o concebe a partir de um acontecimento factual — uma sedução sexual — mas, em seguida, instaura a noção de fantasia inconsciente e realidade psíquica, pois ele encontra, no cerne de sua clínica, o trauma como um fato estrutural. Jacques-Alain Miller (2011) também aborda essa intensidade em seu curso “O Ser e o Um”, como a energeia, um buraco que bordeia a iteração do Um, tendo o efeito estranho de atração, de fascinação deletéria: um buraco negro.
Diante da generalização do termo trauma no campo da infância — agressão, estupro, sedução, violência, atos perversos, separação, morte, doença, acidentes, abuso, maus-tratos, exploração, crueldade, negligência, abandono, insulto, pesadelos — faz-se necessário situarmos esse conceito em nosso campo, pois, onde acreditamos ver o traumatismo — nos acontecimentos — ele sempre esconde um traumatismo real, aquele que é singular ao sujeito.
Frente a essa experiência que excede e esmaga o sujeito, como se perguntar sobre isso que o ultrapassa, sobre o que não chega a se representar? Sobretudo, ensina-nos Lacan, é nessa topologia que se encontra o sujeito: “o sujeito está aí, no lugar desta coisa obscura que chamamos como trauma, como prazer esquisito” (LACAN, 1966, p.4).
Esse é o ponto que nos interessa enquanto psicanalistas.
Um acontecimento só tem valor traumático para o sujeito por ser para ele um encontro contingente, singular. Ao possibilitarmos a implicação do sujeito em seu sofrimento, isso lhe restitui sua parte de responsabilidade, podendo abrir-lhe a via do desejo e a possibilidade de ele se reconciliar com seu gozo mais íntimo, alojando o trauma em um bom lugar. Nesse sentido, ali onde o sujeito foi solapado, ele pode advir e fazer algo com isso, à vitimização damos lugar ao sujeito e a um modo de satisfação. Como nos diz Sonia Chiriaco (2012), em Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse, a psicanálise se distingue imediatamente da vitimiologia, que faz do acontecimento o principal, e o sujeito, secundário, ou até mesmo ausente.
Lacan (1975) nomeou esse encontro como troumatisme, que implica a irrupção de um trop — um excesso, um gozo — e um furo, o fora do sentido. O que é traumático é esse choque material do significante com o corpo, que instaura, no parlêtre, a marca de um gozo inassimilável e uma perda irremediável.
Se o Outro da linguagem preexiste ao nascimento do sujeito, a criança nasce no mar da linguagem, ela, no entanto, é, primeiramente, objeto — causa de desejo ou dejeto do gozo dos pais — não tendo ao seu alcance o instrumento significante: a linguagem é, para ela, real, um real sem lei. Para essa incidência contingente do real da língua, de sua matéria sonora (moterialisme), Lacan inventará a expressão: lalíngua (LACAN, 1975, p.10). É com esse real de lalíngua que a criança se depara, encontro com o impossível, e que Lacan nomeou de inexistência da relação sexual. Um real, impossível de suportar, está, portanto, na raiz do trauma e concerne à singularidade de cada um: “…le Kern do ser, é este instante, é o instante da encarnação” (MILLER, 2009, p.76).
Esse acontecimento fixa o gozo do Um e funda uma existência, anterior à sua entrada na linguagem — Outro — e em suas leis que dão ao sujeito condições para interpretar algo desse gozo. O inconsciente se estrutura para cifrar esse gozo insensato que escapa à significantização, experimentado nessa satisfação.
Esse real inassimilável, fora do sentido, é o gozo do corpo que se relaciona com o autoerotismo fundamental e tem relação com o ponto de inserção do significante no corpo, do significante trabalhando para a satisfação: “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”, nos diz Lacan (1975/76, p.18). Nesse sentido, o traumatismo, para a psicanálise, tal como Lacan leu em Freud e nos ensina a tratá-lo, é uma marca irreparável no humano que escapa a toda programação e prevenção, revelando uma fixação pulsional. O encontro da língua com o corpo, nos dirá Miller, “mantém um desequilíbrio permanente, mantém no corpo e na psique um excesso de excitação que não se deixa reabsorver” (MILLER, 2003, p.378), retornando, re-iterando, nos sintomas, nos atos, na inibição, na angústia, nas ideias obsessivas, nos pesadelos.
E o que é complicado é que o real do encontro do significante no corpo torna o sujeito cúmplice da pulsão, é aí onde se situa nossa responsabilidade quanto ao gozo (ROCH, 2013).
O troumatismo inaugura o campo da fantasia que serve de tela ao real do trauma — uma defesa contra o real — e também do sinthoma como uma resposta ao trauma, enlaçando o não há da relação sexual — o real do furo no saber — com o há, isso que vai se repetir ao longo de nossa vida, a marca de um gozo, uma satisfação não toda e impossível de negativizar. Ou seja, a partir da contingência e do fora de sentido, há, no sinthoma, a tessitura de um nó singular do gozo do corpo com o significante determinando nossa vida, um savoir y faire com o real sem lei. A psicanálise, nos diz Miller (2014), existe para tentar que um trumain (l’être humain e trou) possa saber como comportar-se com o sinthome.
Em O avesso do trauma, Laurent (2002) propõe que abordemos o trauma em dois sentidos:
1º – Em um primeiro sentido, o traumatismo é um buraco real no interior do simbólico, ou seja, a partir do sistema simbólico, o sujeito encontra a presença de um real. A língua mortifica o gozo, mas há um resto impossível de ser simbolizado. É um ponto de real exterior no interior do simbólico.
2º – O segundo sentido que Laurent enfatiza do traumatismo é o simbólico no real, ou seja, um buraco do simbólico no real; trata-se, como vimos, da língua como real, o mal-entendido fundamental, o fora do sentido do vivente: lalíngua. Nesse sentido, a língua é causa. Segundo Laurent, depois de um trauma, é preciso causar um sujeito para que ele re-invente um Outro, em face da experiência no traumatismo da inexistência do Outro. Uma invenção causada pelo traumatismo.
Essas duas orientações são importantes em uma análise, pois uma análise se desenrola através do sentido que permite a subjetivação do trauma e consequente responsabilização do próprio sofrimento, assim como também toca o fora do sentido do gozo mais singular e opaco, levando Laurent a situar o trauma como um processo.
Vamos investigar esses dois sentidos, pois eles implicam lugares diferentes do analista, assim como sua escuta:
– No primeiro sentido, o analista, com sua escuta e interpretação, possibilita a restauração da trama de sentido, fazendo passar o real do gozo ao significante, uma escuta tomada na “ontologia do discurso do paciente” (MILLER, 2011), ou seja, refere-se à falta-a-ser e ao desejo.
Laurent (2002) ressalta ser uma vertente curativa, pois inscreve o trauma na particularidade inconsciente de um sujeito.
– No segundo sentido do trauma, o analista ocupa o lugar insensato — do objeto — e é traumático como a linguagem. A escuta visa à iteração, aos traços que marcam um modo de gozo e orienta em direção à existência, ao buraco, ao fora do sentido (BRIOLE, 2014). O analista, pelo equívoco e pelo corte, combate não só a demanda de sentido, mas pode tocar esse ponto real de causa e, assim, ajudar um sujeito a reencontrar a palavra, pois, diante da inexistência do Outro, é preciso inventar um modo de se arranjar com o próprio gozo.
Essas duas vertentes, podemos dizer, não são cronológicas, mas lógicas, e, em momentos específicos, podem estar presentes em uma análise: será preciso, então, que o analista meça, para cada sujeito, até onde ele pode apresentar os dois polos de sua ação (LAURENT, 2002).
Daí a importância — para a ação de um analista — de sua formação: do que ele faz com seu troumatismo.
Referências
ALBERTI, C.; BROUSSE, M.-H. “Argumento”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
BRIOLE, G. “Amarrações”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
CHIRIACO, Sonia. Le désir foudroyé, sortir du traumatisme par la psychanalyse. Paris: Navarin/Le Champ Freudien, 2012.
GUÉGUEN, G. “5 minutes à la radio”. Disponível em: www.congresamp2014.com. Consultado em: março/2014.
LACAN, J. (1975/1976) O seminário, livro 23, o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. (1975) Conferência em Genebra sobre o sintoma In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (23), 1998. São Paulo: Edições Eolia.
LACAN, J. (1966) “Communication et discussions au symposium international du Johns Hopkings Center a Baltimore”. Disponível em: www.psicanaliseefilosofia.com.br. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “Trauma Blitz, Moment de concluire”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.
LAURENT, É. “O avesso do trauma”. In: Papéis de Psicanálise n .1, Belo Horizonte: IPSM-MG, abril/2004. p.21-28.
MILLER, J.-A. “O real no século XXI”. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V.L.A. (orgs.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: EBP/Scriptum, 2014.
MILLER, J.-A. O ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013.
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ROCH, M.-H. “La Psychanalyse est traumatique”. Disponível em: Blog 43e Journée de ECF (www.journeesecf.fr), 2013. Consultado em: março/2014.