THIAGO FERREIRA DE BORGES
O texto de Jacques-Alain Miller, “Efeito de retorno à psicose ordinária”, fruto de um seminário de língua inglesa em Paris, é extremamente importante para a clínica contemporânea, quando pensamos que a noção de psicose ordinária não só tem sido bastante discutida, como também utilizada (ao que parece, cada vez mais) no cotidiano de trabalho dos psicanalistas.
A importância que aqui é destacada reside na sua proposta principal, que é a de apresentar uma síntese dos indícios que ajudariam os psicanalistas a diagnosticar um quadro de psicose ordinária. Antes, porém, após um breve comentário sobre o “espírito estadunidense”, Miller fala sobre a origem da expressão e o seu caráter mais livre, aberto, então: “a psicose ordinária não tem uma definição rígida. Todo mundo é bem-vindo para dar sua opinião e sua definição da psicose ordinária” (MILLER, 2010, p.3).
Evidentemente, uma das funções dos seminários e discussões é justamente pôr à prova o valor das posições frente à expressão, com o intuito de auxiliar na lida com os fenômenos da clínica. Ele diz que não é um conceito, mas se sabe que, em parte, funciona como tal. Não no sentido tradicional da palavra conceito — aquele que visa a capturar o objeto ou fenômeno em sua totalidade — mas no sentido que limita o gozo (prevenindo contra o risco de que qualquer coisa caberia dentro da definição). A começar pelo fato mesmo de que é, antes de tudo, uma psicose. A novidade está na palavra “ordinária”. O adjetivo significa que, antes, toda e qualquer psicose era extraordinária, e isso era claramente uma referência ao que era ordinário desde a época de Freud, a saber, as neuroses. Era uma referência para a psicose a partir daquilo que a psicose não era, ou não é. Em Freud, foi assim, e, em Lacan, também, não como uma imitação, mas como um saber compartilhado. Isso é efetivamente dialético e prevalece também para as psicoses ordinárias, visto que são, em primeira e última instância, psicoses. Graciela Brodsky (2011) ao questionar a terminologia “pré-psicose”, em seu livro, Loucuras discretas: um seminário sobre as chamadas psicoses ordinárias, acentua, já no início, que, também para a psicose ordinária, ainda se faz referência ao fundamento de uma estrutura clássica,
[…] mas não chamamos de psicose unicamente os fenômenos que se produzem na psicose, mas uma estrutura que está desde o início […]. Ao passo que nosso ponto de vista é que a psicose, com ou sem desencadeamento, está lá desde sempre (BRODSKY, 2011, p.33). (Grifo nosso).
O termo “ordinário” sugere, ainda, jogando com o título do livro de Graciela, que, se, no passado, uma loucura não podia ser discreta, ou se era preciso um franco desencadeamento para haver o diagnóstico de psicose, hoje, entretanto, somos obrigados a lembrar que sempre se tratou de uma estrutura. Talvez os psicanalistas, apesar do conhecimento teórico da estrutura, não tivessem como diagnosticá-la, se não a partir de fenômenos claros e precisos. Isso, ao que parece, também é uma herança da clínica das neuroses. A questão é que, de maneira geral, o diagnóstico a posteriori, a partir dos fenômenos nas neuroses, causa muito menos incômodo e preocupação aos analistas do que no caso das psicoses. Talvez esse fato tenha ressonância na discussão atual sobre a crítica à ideia de déficit das psicoses em relação às neuroses a partir da clínica lacaniana dos nós. Voltar-se-á a esse ponto no final deste texto. Por ora, trilham-se os caminhos do texto de Miller.
Uma Orientação Para Um Diagnóstico
A ideia de Miller do “Tertiun non datur” (terceiro excluído), para as psicoses ordinárias, está presente na relação clássica binária Neurose/Psicose, não como um Borderline, mas como algo que se inscreve na estrutura da psicose.
Reforçando aquilo que se entende como dialético, Miller passa a discorrer sobre os indícios de uma psicose ordinária a partir não das suas próprias marcas, mas, precisamente, a partir daquilo que a psicose não é, ou seja, a partir da neurose. Acredita-se que os pontos que Miller sintetiza, para o reconhecimento de uma psicose, são provenientes da ausência de traços fundamentais da neurose. Nesse sentido, as psicoses (aqui, as ordinárias) se fazem presentes, a partir de uma negatividade no registro das neuroses. Antes de Miller detalhar os elementos de uma “loucura ordinária”, ele faz referência às psicoses, como Lacan formulara nos Escritos e no Seminário 3: a ausência da “chancela” neurótica chamada Nome-do-Pai (NP). Além disso, uma referência à ideia de desordem, como em Lacan, o que Miller rememora como presente no início da vida. Há certo parentesco entre o inicio da vida tomado pelo imaginário e que é posteriormente reorganizado pela ordem simbólica e aquilo que ocorre nas loucuras. Mas isso é o que diz o “Lacan clássico”, como lembra Miller, pois, em seguida, ele afirma, sobre o último Lacan, aquele em que o NP passa de próprio para predicado, o que quer dizer que pode ser qualquer coisa que sirva para orientar o sujeito no mundo. Essa “qualquer coisa” atinge o limite onde o sujeito não mais se sustenta. Nessa gradação que não admite números, a psicose ordinária se situa no terreno em que se opera como uma precariedade do NP, ou como algo que funciona, como se fosse… “mas, talvez, o que chamamos de psicose ordinária seja uma psicose que não se manifesta até seu desencadeamento“ (MILLER, 2010, p.12).
Como ressalta Graciela, talvez nunca se desencadeie, o que sugere uma amarração que, mesmo precária (sob certos aspectos neuróticos, é claro!), de alguma maneira, funciona. O NP deixa de ser a chancela das neuroses, sua exclusividade.
Assim, antes de Miller apresentar, de forma tripartite, aquilo que ele recupera dos Escritos como sendo “uma desordem provocada na junção mais intima do sentimento de vida no sujeito” (LACAN apud MILLER, 2010, p.13), coloca quase como um princípio uma “dica de sabedoria”, ou seja, que, sem um saber sólido sobre a neurose, não se faz um diagnóstico de psicose.
Quando é neurose vocês devem saber! […] A neurose é uma estrutura muito precisa. Se vocês não reconhecem a estrutura muito precisa da neurose no paciente, podem apostar ou devem tentar apostar que se trata de uma psicose dissimulada, de uma psicose velada (MILLER, 2010, p.6).
Mais adiante ele reitera:
Uma neurose é algo estável, uma formação estável. Quando vocês não constatam — esta também é uma questão percebida pelo clínico — que há elementos bem definidos, bem recortados da neurose, a repetição constante e regular do mesmo, e quando não há nítidos fenômenos de psicose extraordinária, tentam dizer então que é uma psicose, embora ela não seja manifesta, mas ao contrário dissimulada (MILLER, 2010, p.13-14).
Parece clara, então, a importância da neurose enquanto estrutura para o diagnóstico das psicoses. Algo que certamente se relaciona, ao menos em parte, com o lugar social que as neuroses ocuparam até hoje na história da psicanálise. De uma forma ou de outra, elas ainda representam o “lugar comum”, ou a “normalidade”.
Isso ajuda a entender as três externalidades escolhidas por Miller como indícios da psicose ordinária. A clínica é delicada e sutil porque se devem procurar os pequenos sinais, como assinala Miller. A externalidade deve ser tripla — social, corporal e subjetiva — pois se corre o risco, se não o for, de se confundir com uma neurose grave. A assinatura da neurose, como disse Miller, não existe quando da identificação das três dimensões de externalidade. “Os indícios devem ser situados nos três registros” (MILLER, 2010, p.14).
Algumas Observações Sobre A Descrição Das Três Externalidades
Social
Muito claros e práticos, não convém reproduzir aqui os pontos apresentados por Miller, porém é interessante observar uma questão. O autor também destaca, para além da clara “relação negativa” com o social, os casos de relações “positivas”, demasiadamente rígidas. Em outras palavras, ele adverte para as identificações hipostasiadas, para os investimentos profissionais desenfreados e desmedidos.
Vocês podem ver então — e isso ocorre constantemente — psicóticos ordinários cuja perda do trabalho desencadeia sua psicose, porque, muito frequentemente, seu trabalho significava bem mais do que um trabalho ou uma maneira de viver. Ter esse trabalho era seu Nome-do-Pai (MILLER, 2010, p.16).
Tem-se, efetivamente, hoje, uma indicação explícita ao sujeito, para que este se agarre fortemente a uma identidade profissional, que ele faça disso seu ser, algo que não parece ser sem consequências para a questão do diagnóstico bem como do desencadeamento nas psicoses. Dito de outro modo, existem pequenos traços de loucura em quase toda a propaganda de escolha de profissão e carreira. Aqueles indivíduos que se encontram fortemente presos a uma profissão, centralizando suas vidas numa dada carreira, podem, em alguns casos, ter, nessa relação com a profissão, uma amarração que estabiliza a função paterna fragilizada nos quadros de psicose ordinária.
Corporal
A externalidade corporal como índice possível para a psicose reside, segundo Miller, na dificuldade comprometedora do sujeito de lidar com seu corpo. De acordo com o que foi apresentado pelo autor, pode-se falar em três características na relação como o corpo: (i) do excesso; (ii) da repetição ou atualização; (iii) da identificação petrificada.
Os três aspectos dizem respeito aos modos como o sujeito se vê levado a amarrar seu corpo — os grampos contemporâneos, segundo Miller, as tatuagens, os piercings, etc. Assim, um excesso pode significar um volume gigantesco de perfurações e desenhos pelo corpo; uma repetição ou atualização se deduziriam do fato de que sempre se está inclinado a repetir o procedimento, a trocar as joias, redesenhar ou fazer uma nova tatuagem; a identificação petrificada coloca tais ações no nível da necessidade, como um acting out de apaziguamento.
Interessante, porém, é que isso leva a refletir, com mais vagar, sobre uma externalidade corporal, quando se considera a ideia de que ter um corpo é algo relativamente normal para a psicanálise. É que, se o sentimento de externalidade é um índice possível para a psicose, por outro lado, a ideia de uma “normalidade” do “ter um corpo” pressupõe, de alguma maneira, alguma externalidade do sujeito em relação ao seu corpo, ou, ainda, é preciso algum distanciamento para que se possa dizer que se possui ou não alguma coisa.
Imediatamente se recorda que, então, se deve associar a externalidade mais com um “não ter” ou “perder”, do que, essencialmente, com algo que o sujeito não é, e, portanto, só pode possuir. Por isso a importância da compreensão da noção de amarração, de se “fazer um corpo”. Faz-se algo que não existe ou que deixou de existir, ou, ainda, que possua uma existência tão instável que necessita, a todo o momento, de novos cuidados e atualizações. É possível, então, que, nas psicoses, a prevalência da dimensão do ser um corpo, em detrimento do ter, provoque situações muito mais instáveis em termos subjetivos no que se refere às experiências corporais, se se fizer uma comparação com as neuroses.
Do ponto de vista de uma história dos conceitos que, de alguma forma, incide objetivamente também sobre a clínica da psicanálise, atenta-se sempre para o movimento de ser e ter um corpo.[2] Na poesia de Homero, antes da grande Filosofia, antes de Platão mais especificamente, não se encontrava uma palavra que definisse, para o indivíduo vivo, sua unidade corpórea, ou seja, os heróis homéricos referiam-se ao seu corpo de forma fragmentada. A palavra soma só era usada para a unidade corporal quando o indivíduo morria e sua psyche (alma) se esvaía do soma (cadáver), como um fantasma errante e irracional. É mesmo só a partir de Platão que a alma ganha efetivamente um estatuto racional (ou ao menos parte dela), ao mesmo tempo em que a palavra soma passa a ser usada também para o indivíduo em vida, representado, agora sim, seu corpo enquanto unidade.[3]
Dessa maneira, pode-se suspeitar de que, em algum momento da proto-história da cultura ocidental, o homem experimentou “coletivamente” sua existência como sendo um corpo, mas sem a unidade conceitual bem definida para tal. Atualmente, a ideia ou sentimento de que se é um corpo marca, incessantemente, cada momento de nossa existência, ao mesmo tempo em que não se pode abrir mão da ideia de que se possui um corpo. De fato, a cisão do indivíduo em corpo e alma exige pronomes possessivos. Se um indivíduo fosse plenamente identificado ontologicamente com o corpo, dispensaria, no plano da fala, o significante corpo, pois, toda vez que tentasse utilizá-lo, seria levado, cedo ou tarde, ao emprego de pronomes possessivos. Por outro lado, uma abstração radical, um congelamento do “ter” implicaria a impossibilidade do indivíduo de dialetizar sua relação com seu corpo e o dos outros, o que, no limite, pode contribuir negativamente para a avaliação das consequências sociais objetivas das ações sobre as pessoas. Eis o paradoxo a respeito do ser e do ter.
Subjetiva
Resume-se, como se sabe, na ideia de vazio. É, talvez, o índice mais difícil de perceber e diferenciar em relação às neuroses. O próprio Miller adverte sobre a sua ocorrência nas neuroses e tenta deixar claro aquilo de que se trata com exemplos de fragmentos de casos. A orientação parece se sustentar em dois pontos. Segundo Miller, “busca-se um índice do vazio e do vago de natureza não dialética” (MILLER, 2010, p.18). (Grifo nosso). Nesse caso, há uma fixidez especial desse índice. Além disso, mas com o apoio ainda na noção de fixidez, “[…] devem também procurar a fixidez da identificação com o objeto a como dejeto. A identificação não é simbólica, mas real, porque ultrapassa a metáfora” (MILLER, 2010, p.18).
O que significa, então, “natureza não dialética”? Nesse caso, parece ser algo já conhecido dos psicanalistas a respeito dos diagnósticos de psicose, e que também se encontra nos índices anteriores — social e corporal: trata-se do enrijecimento de uma certeza; certeza essa que não vacila para o sujeito. O real se apresenta como uma realidade que, para o sujeito psicótico, não possui, no seu cerne, uma contradição que possa fazer afrouxar a identidade. O vazio seria uma experiência que não pode ser relativizada, colocar sua verdade em questão é algo quase impossível para o psicótico. Se isso ainda acompanha a localização como dejeto, tem-se a incidência no corpo da questão subjetiva, pois “o sujeito vai na direção de realizar o dejeto sobre sua pessoa” (MILLER, 2010, p.18).
Uma Questão: Da Falta A Ser
A noção da pluralização do NP parece revigorar a defesa da singularidade do sujeito que a orientação lacaniana preserva como pressuposto de sua clínica, ou, ainda, de uma clínica possível. Isso se refere à dimensão ética e política da psicanálise enquanto prática social, que se apresenta, portanto, diferente e potencialmente crítica das tendências científicas de desaparecimento da clínica, representadas especialmente pelo DSM e suas atualizações.[4]
Sobre a clínica “em si”, a pluralização é, como se sabe, resultado do último ensino de Lacan e seus nós borromeanos. Ele questiona a noção de falta, ou seja, de déficit para as psicoses em comparação com a estrutura neurótica.
Se, no entanto, para a clínica, parece fazer sentido relativizar a noção de falta, apostando-se na diversidade de amarrações possíveis que cada sujeito pode inventar, não é possível esquecer que, a todo tempo, depara-se com a tarefa de avaliar as condições que cada analisando possui efetivamente para viver seu cotidiano social. Não se pode negar que, na clínica, seja ela das psicoses ou das neuroses, não se pode, de forma alguma, escapar ao horizonte do psicanalista, a preocupação com a “preservação social” do analisante. Isso se mostra, mais precisamente, no trabalho em direção à construção de um “saber fazer” que seja melhor ou menos deletério ao sujeito, o que, obviamente, é sempre considerado na relação do sujeito com a sociedade em que vive. Nenhum psicanalista é indiferente às consequências de uma toxicomania que consome todas as reservas de uma família ou que retira qualquer possibilidade do sujeito de reinserir-se socialmente. Preocupação com um saber fazer com o gozo que invade, com o desejo, não é, por parte de um bom analista, sem uma mirada para o social.v Isso implica que se sabe reconhecer, a partir da clínica, que existem diferenças, de maneira geral, e ainda substanciais, entre as possibilidades de realizações objetivas, no caso dos neuróticos, comparando-se com os psicóticos. Mesmo que haja psicóticos desempenhando atividades socialmente complexas, como um alto cargo executivo ou coisa parecida, isso não parece comprometer a percepção de que, em linhas gerais, os psicóticos tendem a ter mais dificuldades para ocupar posições e desempenhar determinadas tarefas.
A singularidade da resposta que cada um pode construir no encontro com um Pai, que está no nível da apropriação teórica no contexto do cotidiano da clínica, deve conviver com a teoria das estruturas, bem como com a própria ideia de relativização dos NP, como uma resposta teórica proveniente da particularidade de cada caso, ao se manifestar como indicativo (teórico), alcança, então, o nível do universal (mesmo nível das estruturas). Essa relação entre os escritos da primeira clínica e os últimos escritos de Lacan, com a realidade de cada caso, pode-se chamar, numa linguagem filosófica, de dialética entre o universal e o particular.
A abertura maior, no campo das psicoses, com o significante “psicose ordinária”, exigiu e exige, basicamente, duas indicações para se compreender a clínica hoje. Primeiro, que a neurose, como aquilo que não é a psicose, persiste enquanto estrutura bem definida, agora ainda mais, pelo alargamento do campo das psicoses. Não há dúvidas quanto a isso no texto de Miller. Mas, nas psicoses, a definição inicial lacaniana, tendo a ausência do NP, ou seja, as psicoses definidas principalmente pela ausência de algo da estrutura das neuroses, foi revista. Essa revisão é a pluralização do NP, ou ainda sua inexistência, sua adjetivação como semblante.
Essa generalização da psicose significa que não existe, na verdade, o Nome-do-Pai. Ele não existe. O Nome-do-Pai é um predicado, sempre é um predicado. Sempre é um elemento específico entre outros que, para um determinado sujeito, funciona como Nome-do-Pai (MILLER, 2010, p.20).
Miller insiste na diferenciação justamente porque ela, hoje, é mais difícil, sutil. A democratização do NP não implicou uma relativização das estruturas, elas não estão no mesmo nível. A questão é a seguinte: na neurose, o NP, isso que, na verdade, não existe, tem “cadeira cativa”, enquanto que, nas psicoses, nem sempre é assim, ele pode ter um funcionamento precário também, muito embora, em alguns casos de paranoia, “o make believe do Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido” (MILLER, 2010, p.23)
Tudo isso para concluir dizendo que a questão da falta e/ou do furo talvez seja mais complexa do que se possa imaginar, ou fazer, no sentido de substituir um significante por outro. Apesar da pluralização do NP e da noção de “furo”, acredita-se que a noção de falta ainda está, de alguma forma, presente, e talvez seja mesmo importante para a orientação lacaniana, partindo do pressuposto de que ela não incide eticamente da mesma forma que em outros campos de saber. “O Nome-do-Pai está ali (na coluna da esquerda) enquanto aqui (na coluna do meio), ele não está. Na psicose ordinária, não há o Nome-do-Pai, mas há alguma coisa, um aparelho suplementar” (MILLER, 2010, p.22). (Grifo nosso). Se há furo no real, ele não exclui a noção de falta, mais do que obriga a reordená-la, na medida em que, diante desse real, uns se viram “melhor” que os outros, não somente no nível da preservação de uma vida possível, mas certamente em níveis em que a sociedade demanda respostas mais complexas de cada sujeito; respostas fundamentais para a continuidade da vida humana, a começar por aquele nível mesmo, de qualquer vida possível.
Permanecem, então, perguntas como: é possível abandonar a noção teórica de falta, considerando apenas a posição de que o sujeito psicótico, salvo no caso de uma catatonia completa, “se vira no mundo”, ao seu modo, mas se vira; sendo que os próprios indícios sugeridos por Miller para o diagnóstico de psicose e, também, os relatos, em vários casos clínicos, mostram uma dificuldade especial, singular, do sujeito psicótico em levar sua vida social adiante, se comparado com boa parte dos neuróticos? Pode-se, nessa comparação, abrir mesmo mão da ideia de falta? Uma crítica pré-dialética da noção de falta no interior da psicanálise poderia levá-la a um “autismo prejudicial” aos potenciais de diálogo entre a psicanálise e a sociedade, justamente pelo fato de que, dessa maneira, a clínica acabaria por corroborar um discurso hegemônico sobre o social, refratário às contradições, à alteridade, à singularidade, etc.? Em que medida, por fim, o questionamento da ideia de falta conserva algum tipo de receio com relação a uma avaliação social que indique um possível conservadorismo na psicanálise, quando se poderia supor justamente o contrário, ou seja, que considerar a falta de algo como um problema a priori, isso sim representaria algo da ordem do conservadorismo intelectual e ético? Ainda, será que existe, nessas questões, uma confusão anterior sobre o que deve ser debatido no nível teórico das estruturas e o que deve ser debatido no nível da prática clínica?
(1) Este texto, com algumas modificações, foi escrito originalmente como trabalho final para o curso de Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSM-MG.
(2) Sobre esse assunto, pode-se ouvir Sérgio de Campos em entrevista ao boletim Sinapsy, n.4, da XVIII Jornada da EBP-MG.
(3) Sobre essa questão, consultar minha dissertação de mestrado. BORGES, T. F. de. Interesse pelo corpo na Dialética do Esclarecimento de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. 2010. 198f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
(4) Recomenda-se o artigo de Sérgio Laia na coletânea De que real se trata na clínica psicanalítica?. (LAIA, S. A. C. de. “Coisas mensuráveis e ‘coisas de fineza’: a classificação dos transtornos mentais pelo DSM-V e a orientação lacaniana”. In: SANTOS, T. C dos; SANTIAGO, J.; MARTELLO, A. (Orgs.). De que real se trata na clínica psicanalítica?: psicanálise, ciência e discursos da ciência. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2012. p.295-318).
(5) O que não quer dizer uma adaptação ao Outro social.