Sérgio de Castro
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
sdcastro54@gmail.com
Resumo: O autor percorre momentos distintos de ensino de Lacan para abordar o desencadeamento nas psicoses partindo de sua concepção forjada no período estruturalista desse ensino determinada pela ausência da metáfora paterna para, em seguida, examinar o outro modo pelo qual as psicoses e os seus desencadeamentos se apresentam com maior frequência na contemporaneidade.
Palavras-chave: psicoses; desencadeamentos; metáfora paterna; psicoses contemporâneas.
NEO-TRIGGERS: BETWEEN DISCRETION AND EXUBERANCE IN PSYCHOSES
Abstract: the author goes through different moments of Lacan’s teaching to address the triggering of psychoses, taking his conception in the classical or structuralist period of this teaching as a result of the absence of the paternal metaphor, and then examines another way in which psychoses and their triggers are present more frequently in contemporary times.
Keywords: psychoses; triggering; paternal metaphor; contemporary psychoses.
O tema de minha intervenção, “Os neodesencadeamentos: entre discrição e exuberância nas psicoses”, já nos introduz numa questão mais ampla, título do Congresso da AMP que acontecerá em 2024, Todo mundo é louco. Vejam que tal tema já é tributário de uma leitura da contemporaneidade que não se compatibilizaria inteiramente com os primeiros anos do ensino de Lacan, mesmo não havendo entre os diversos períodos de tal ensino propriamente rupturas.
Pois bem, quando falo em primeiros anos do ensino de Lacan, no tema que nos toca hoje, refiro-me, em especial, a “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Ali, como sabemos, há contrastes e diferenças nítidas, fundamentos mesmo da voga estruturalista que encontrava na França daquele período seu ápice. Eles serão então típicos do paradigma apresentado em “A instância da letra ou a razão desde Freud”, que inaugura a relação de Lacan com, justamente, a linguística estrutural. Estamos aí no cerne do que se convencionou chamar de Lacan clássico. Como sabemos, em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” os contrastes clínico/conceituais são sempre acentuados, fundados como estão nas premissas de articulação e diferença próprios da definição de estrutura. E aqui, a noção de simbólico, depositária que será da própria linguagem, estará, hierarquicamente falando, numa posição determinante com relação ao imaginário e ao real. Ou, se preferirmos, nesse momento do ensino de Lacan poderemos falar de um domínio do simbólico sobre o imaginário e o real. Pensaremos portanto ali num desencadeamento a partir de um encontro do sujeito com Um pai, numa solicitação proposta pela vida (a paternidade/maternidade, a perda de um ente querido, uma situação profissional imprevista, etc.) muitas vezes objetiva, à qual, no plano da subjetividade, aquele sujeito não foi capaz de responder recorrendo ao que chamaremos aqui de “ padrão” então vigente. Ou seja, responder a partir de uma posição terceira, fora do eixo a…..a’, como vemos no esquema L apresentado naquele momento por Lacan, próprio da dualidade especular/imaginária. E isso, justamente por não dispor de recursos para, nessa resposta, sustentar-se no Nome-do-Pai, inscrito como poderia estar, no Outro. O Nome-do-Pai então deve ser pensado então como um significante especial e operador privilegiado para lidar com o real do gozo que teria emergido naquela solicitação feita àquele sujeito naquele momento. Ele será, portanto, o sustentáculo mínimo de toda a ordem simbólica. Falar então em hegemonia do simbólico, como podemos falar desse período do ensino de Lacan, resultaria nisso, em se tratando de um desencadeamento clássico de uma psicose: num dado momento da vida daquele sujeito ele terá sido solicitado a responder, subjetivamente, desde uma posição simbólica (aliás, desde esse significante privilegiado e dos recursos simbólicos transmitidas por ele), e, por não ter acontecido de aquele significante ter se inscrito no estoque significante daquele sujeito (inscrito no grande Outro, que será também um nome do inconsciente), haverá um desencadeamento. Ou, o que não estava inscrito no simbólico, por estar nele foracluído, retornará do real, na forma de fenômenos elementares, as alucinações sendo aqui o paradigma de tal retorno.
O que nos levaria então a um desencadeamento claramente marcado por um antes e um depois, em muitos casos só sendo possível um diagnóstico de psicose uma vez ocorrido tal desencadeamento. Tudo isso a partir deste significante (o Nome-do-Pai) que, em tese (ou, se se tratasse de uma estrutura neurótica), deveria estar inscrito no Outro para aquele sujeito, ali onde a linguagem e a fala, como instâncias simbólicas, se sustentariam. Daí as consequências por nós exploradas há muitos anos: sem a inscrição desse significante privilegiado no campo do Outro ou, a partir de sua formulação lacaniana clássica, com a foraclusão do Nome-do-Pai do simbólico, (P o) Pai zero e suas consequências imediatas: (Ф o), falo (simbólico) zero.
O caso paradigmático de então, como todos sabemos, será o de Schreber, que, justamente no momento em que recebe, em sua carreira jurídica, uma promoção há muito tempo almejada, perde o chão e não segura com a firmeza fálica que seria necessária, quer dizer, a partir do falo simbólico inscrito no Outro (justamente o que não havia em Schreber), o cargo de Presidente daquele tribunal. De onde a célebre fórmula já citada aqui de Lacan: o que é foracluído do simbólico (o Nome-do-Pai, nessa foraclusão maior indicada então por Lacan) retornará no real, quer dizer, enquanto fenômenos ruidosos e elementares, especialmente nas alucinações. Esse é, portanto, o desencadeamento clássico, contemporâneo de uma época – e aqui tocamos no que me parece ser o ponto principal da questão – em que esse significante privilegiado, sustentáculo mesmo de toda a ordem simbólica como Lacan a formulava então, estaria mais ou menos disponível, e de forma hegemônica, na cultura. Daí a nitidez e o contraste acentuados entre uma neurose, quando, então, naqueles sujeitos, o modo “padrão” se transmitiria (ainda que, é claro, a partir das singularidades do romance familiar de cada um), sendo esse modo padrão o Nome-do-Pai, urdido especialmente (mas não exclusivamente) a partir de uma organização patriarcal das famílias e uma psicose, onde tal transmissão não teria se dado.
O que gostaria de acentuar é que, com a famosa tese de Miller e Laurent (extraída de Lacan por certo) de um declínio do Nome-do-Pai, tal “modalidade padrão” de resposta deixa, gradativamente, de ser hegemônica na cultura. Até então teríamos o contraste e a nitidez típicos de uma clínica estrutural, na qual uma sustentação subjetiva daquele sujeito referida no Nome-do-Pai, ou não, fará a diferença entre uma psicose ruidosa, e o extraordinário daquele desencadeamento, no qual as formas delirantes agudas ou as psicoses alucinatórias crônicas seriam nítidas, e uma neurose, em sua suposta discrição e maior extensão social. No entanto, para tentarmos nos aproximar da questão das psicoses ordinárias, acho que seria importante enfatizar um outro ângulo de tais elaborações. Isso dado o que me parece ser a complexidade da questão e um certo avanço mesmo que foi possível fazer sobre elas a partir de suas formulações iniciais no Conciliábulo de Angers, na Conversação de Arcachon e na Convenção de Antibes, todos eventos e elaborações feitos no final do século passado.
Ora, um ponto que me parece importante termos em mente é o de que tais elaborações serão tributárias, mais ou menos diretamente, das elaborações feitas por Jacques-Alain Miller e por Éric Laurent no curso psicanalítico de 1996/1997 que eles dividiam, intitulado O Outro que não existe e seus comitês de ética. Se falei um pouco antes de uma “modalidade padrão” de resposta do sujeito a questões que a própria vida se lhe apresentava, será justamente o alcance e a extensão desse dito padrão que será examinado e posto em questão em tal curso. Pois, se o Outro não existe mais (e o advérbio mais aqui é fundamental), como propõem e examinam Miller e Laurent no curso citado, isso quer dizer que algo, no campo do Outro, mudou. E onde localizaremos tal mudança? Justamente em seu ponto de sustentação mínimo e fundamental: a inscrição ali do Nome-do-Pai. O declínio do Nome-do-Pai então (ou, se preferirmos, sua não inscrição, ao menos se tomarmos como referência a dita “modalidade padrão”) será correlativo e elucidará o que chamaremos de emergência do UM, tanto quanto da frase de Miller que já se tornou famosa, a saber, de que o objeto a encontra-se hoje em seu zênite social.
Tentemos dar mais uma volta: o inconsciente estruturado como uma linguagem, esse inconsciente próprio do famoso retorno a Freud empreendido por Lacan, se sustentará no dispositivo do recalque, ou da Verdrangung freudiana. A partir de um recalque primário, teremos todos os recalques secundários, sempre compostos de material significante e que encontrarão em suas diversas modalidades de retorno – as famosas formações do inconsciente – as manifestações registradas por Freud e inaugurais mesmas da própria psicanálise. Aqui, nas formações do inconsciente, de um inconsciente portanto estruturado como uma linguagem, teremos os sintomas (sem a letra h), os famosos atos falhos e os sonhos, tal como apresentados por Freud na obra inaugural da psicanálise, A interpretação dos sonhos e, posteriormente, em Psicopatologia da vida cotidiana. Ora, tal inconsciente, (e, portanto, toda a ordem simbólica que se desdobra e se sustenta aí) estará assentado no dispositivo do recalcamento e será inteiramente tributário da incidência do Nome-do-Pai sobre o desejo da mãe, naquela fórmula inicial de Lacan, a da metáfora paterna, apresentada em A instância da letra ou a razão desde Freud. O resultado de tal operação será tanto a significação como fálica, quanto a própria constituição do inconsciente como Outro. Ou seja, a constituição do sujeito como neurótico e a inscrição do falo enquanto falo simbólico nesse mesmo campo.
Ora, apresentar a tese (ou a constatação, para melhor dizê-lo) de que o grande Outro não existe mais (ou existe de forma tão fragmentada que não será mais entendido da mesma maneira) será afirmar que a metáfora paterna, constituída a partir do protagonismo do Nome-do-Pai, aquele recurso simbólico até então típico para lidar com o gozo, não opera mais a contento.
No Seminário 21, de 1973/74, Os não tolos erram, ainda inédito, Lacan descreverá uma situação em que certas mutações (justamente as indicadas aqui), que se articulam e se imbricam à própria constituição do sujeito (ou do falasser), produzirão novas modalidades de laço social (mas não fica claro se podemos falar aqui em laço social, tributário que é da noção de discurso, o que justamente parece estar afetado numa época em que o UM inteiramente só, em sua vocação autista, encontra-se numa espécie de zênite de cada falasser).
Ora, toda uma indistinção entre termos até então contrastantes e nítidos, veiculados mesmo por certas tradições e constitutivos do próprio pensamento estruturalista tal como operado por Lacan no início de seu ensino, simplesmente se pulverizam, ou se pluralizam. Podemos abordar tais mudanças de diversas maneiras possíveis, e as psicoses ordinárias serão, num plano clínico, uma maneira de constatá-las. Lacan afirmará no referido Seminário 21 que o sucedâneo a uma ordem articulada a partir do Nome-do-Pai e sua Lei simbólica será muito mais feroz e rígida, muito mais imperativa e normativa do que a ordem simbólica que lhe antecedeu. E a chamará de “ordem de ferro”. Portanto, tal “ordem de ferro” será um dos nomes do que se constata a partir da inexistência do Outro. Será a partir dela que tentaremos indicar algumas questões relativas às psicoses ordinárias em sua extensão contemporânea.
Desde o Seminário inacabado (ou apenas iniciado), que se chamaria justamente Os Nomes-do-Pai, até suas elaborações finais, em especial nos Seminários 23 e 24, o que veremos em Lacan será a desmontagem gradativa, correlata do próprio “movimento do mundo”, de uma ordem na qual o simbólico seria hegemônico e dominante. Quer dizer, Lacan passa a orientar e a repensar seu próprio ensino a partir de tais constatações nas quais, de uma ordem em que o Nome-do-Pai seria a modalidade predominante de sustentação subjetiva, passava-se a um entendimento no qual esse recurso simbólico para lidar com o gozo perde sua hegemonia, tornando-se apenas uma modalidade possível entre outras. A essa des-hierarquização radical constatada e então promovida por Lacan no âmbito de seu próprio ensino, veremos, por exemplo, o recurso aos nós serem produzidos. Aqui, simbólico, imaginário e real estarão num mesmo plano. O que permitirá, sem que se prescinda de um diagnóstico referido numa clínica estrutural, que seus termos possam ser fortemente nuançados.
A partir de tais referências, e do que Lacan permite que se extraia delas, é possível sair de uma distinção por demais mecânica, como dirá Laurent (2022), entre as psicoses e as neuroses. Poderemos a partir daí ultrapassar parcialmente esse regime de contrastes nítidos e acentuados, por exemplo entre foraclusão e não foraclusão do Nome-do-Pai, ou mesmo que se fale e se localize outros tipos de foraclusão, como a foraclusão generalizada ou a foraclusão de fato. Talvez aqui possamos ir além da própria noção de psicose ordinária, quando tratar-se-ia, ainda seguindo Laurent (2022), de, em cada caso, encontrar a pequena e singular montagem dos nós que cada sujeito produziu para dar conta de si mesmo no mundo e na vida.Quer dizer, cada arranjo, cada pequeno arranjo que tão frequentemente se construirá a partir de recursos distintos do que chamei de padrão, articulado ao Nome-do-Pai. Pois, uma vez que os recursos disponíveis na cultura hoje para a sustentação de cada falasser sejam tantos, e tão distintos da modalidade clássica chamada Nome-do-Pai, basta que pensemos rapidamente nas redes sociais, na internet, na deep internet e na IA – cujos efeitos e consequências mal pressentimos – para nos darmos conta de que ali se oferecem infindáveis termos e recursos de amarração subjetiva fora da modalidade clássica, para constatarmos que as consequências e funcionamento do que poderíamos então chamar de “ordem de ferro” são de alcance amplo e ainda mal vislumbrados. E, se falávamos de uma Lei simbólica enquanto um certo padrão da cultura, uma vez que referida no Nome-do-Pai, talvez possamos falar hoje de uma norma psicótica (LAIA, 2023), que não seria simplesmente sinônimo de psicose, mas do que indiquei como “ordem de ferro”, quer dizer, uma ordem que não oferecerá, predominantemente, operadores simbólicos para lidar com o real do gozo. Ou seja, cada um hoje tem que se valer de normas que proliferam no lugar da falta da Lei simbólica, que não será mais passível de ser definida como um universal, ou articulada a um suposto Discurso Universal, uma vez que tal Lei deixa de ser típica da cultura, ou das culturas, de um modo geral. Para pressentirmos o alcance da questão podemos pensar, por exemplo, no próprio avanço da extrema direita (não da direita, mas da extrema direita) tal como se constata hoje em várias partes do mundo. Ou seja, o recurso ao cassetete, como antevê Lacan em “Televisão” (LACAN, 1973/2003), ou à força bruta, na medida em que algo da ordem simbólica se desarranje gravemente, como se constata hoje, ou nos fundamentalismos religiosos, no próprio triunfo da religião,[2] nas radicalizações em tantas áreas e atividades humanas (os jogos eletrônicos, o vício numa academia de ginástica, a posição subjetiva do adicto enfim), poderão ser pensados como consequências dessa desregulação de uma Lei simbólica até então tida como fundamental. Pois essa “desregulação” da Lei simbólica, escrita assim com maiúscula, trará efeitos agudos em diversos campos e domínios, como o da diferença sexual, uma vez que, como também aprendemos em “Televisão”, tal diferença será tributária e se fundamentará mesmo no recalcamento primário[3] e secundários que lhe seguirão.
Então, creio que podemos dizer que a questão do ordinário, nessa era pós-Nome-do-Pai, ou das psicoses ordinárias, tem a ver com o comum, com o que se estabeleceu, com o que é veiculado nas rotinas dos discursos, ou do desfalecimento dos discursos operado pelos jogos eletrônicos, pela IA, pela internet, etc. Isso talvez relativize um pouco a questão do extraordinário enquanto, em se tratando de uma psicose, remeta apenas ao extraordinário de uma sintomatologia. É possível que possamos dizer aqui, no domínio da “ordem de ferro”, que é o da contemporaneidade, que, sim, muitos sujeitos ainda se sustentam a partir de uma amarração subjetiva a partir do Nome-do-Pai, mas que em outros, muito discretamente às vezes, um pequeno desenganche – para usarmos um termo ao qual recorremos numa clínica dos nós – acontecerá e será importante detectá-lo, e nosso trabalho seria o de acompanhar ou até possibilitar que um outro tipo de enganche ou de grampo, para usar outro termo que nos é caro hoje, se produza. Seriam, estes últimos, falasseres passíveis de serem situados no campo das psicoses, ordinárias certamente, mas, especialmente, contemporâneas. Portanto, não parece suficiente dizer que uma psicose ordinária seria uma psicose que não desencadearia, ou que não se desencadeou ainda. Não; se tomarmos a questão pelo prisma da norma psicótica, uma psicose ordinária poderia sim se desencadear ou já ter se desencadeado. Não me pareceria essa a distinção principal a ser feita. A questão do ordinário, então, e das psicoses ordinárias, talvez seja a questão das psicoses contemporâneas, em que a extensão delas é, sem dúvida, muito maior, e teriam a ver com os recursos dos quais os falasseres lançam mão nas normas que passam a vigorar na atualidade, que são recursos muitas vezes precários de regulação do gozo. Ou, se não precários, inéditos, invenções contemporâneas (porque alguns são razoavelmente estáveis, inclusive, ainda que invenções contemporâneas). Para concluir: tal regulação precária do gozo, ou o ineditismo dos arranjos para lidar com ele, é que definirá e esclarecerá o ordinário de uma psicose típica de nossa época.