Wallace Faustino da Rocha Rodrigues
Doutor em Ciências Sociais, professor de Sociologia na UEMG e aluno do IPSM-MG
wallacefaustinorocha@hotmail.com
Resumo: Seguindo o Complexo de Édipo, o sujeito ante à ameaça de castração tende a ver o pai como o detentor do falo e, consequentemente, obstáculo à realização de seu desejo — quadro esse que se impõe durante toda a sua vida. Diante desse princípio, à luz dos três tempos lógicos do Édipo propostos por Lacan, pretende-se uma reflexão sobre a paternidade na neurose obsessiva a partir de um olhar sobre a obra do escritor Karl Ove Knausgard, de modo a proporcionar uma discussão mais ampla sobre a temática.
Palavras-chave: Paternidade; neurose obsessiva; Karl Ove Knausgard
FATHERHOOD AND OBSESSIONAL NEUROSIS: THE LITERATURE OF KARL OVE KNAUSGARD
Abstract
Following the Oedipus Complex, the subject, faced with the threat of castration, tends to see the father as the holder of the phallus and, consequently, an obstacle to the fulfillment of his desire — a situation that imposes itself throughout his life. From this principle, in the light of the three logical stages of Oedipus proposed by Lacan, a reflection on fatherhood in obsessional neurosis is intended from a look at the work of the writer Karl Ove Knausgard in order to provide a broader discussion about the theme.
Keywords: Fatherhood; obsessional neurosis; Karl Ove Knausgard
“Uma criança era vida, e quem gostaria de virar as costas para a vida?”
Karl-Ove Knausgard, Um outro amor
Em O homem dos ratos, Freud apresenta como a imagem do falecido pai de seu paciente é recriada simbolicamente com a finalidade de barrar o seu desejo (FREUD, 1909/2020). Reconstruído na teia do imaginário, o Pai vigilante é aquele por quem o neurótico espera aprovação ou rejeição. O engano do neurótico é o de que o Outro cerceia o seu desejo, prendendo-se enganado em sua própria trama de que, restituído o Pai, conseguiria a realização de seu desejo — ao mesmo tempo em que a sua restituição representa o vigor da castração (LACAN, 1966/2021).
O pai simbólico, morto, é agente de interdição, abrindo o acesso ao desejo por sua submissão à lei, unindo desejo e lei. Por sua vez, o pai imaginário é aquele construído involuntariamente pelo neurótico em sua versão idealizada ou terrível. O obsessivo, portanto, volta-se para pagar a dívida paterna, sendo que a sua versão idealizada, ou terrível, é uma forma de encobri-la. Freud demonstra isso no relato que faz do desespero de seu paciente em pagar a dívida referente ao pince-nez perdido. Se não o paga, o falecido pai seria punido — porém, essa dívida não existe (FREUD, 1909/2020).
O redimensionamento do Outro, que não está ali, e a permanente ameaça de castração paralisa o neurótico, tornando-o impotente na realização do desejo. Assim, questiona-se: quando a ameaça de castração se torna menos evidente, a ponto de permitir maior possibilidade de o neurótico prosseguir em direção ao seu desejo? Para efeitos deste texto, a paternidade é uma delas.
Paternidade e obsessão
Na teia do Édipo, o pai deseja a mãe, interditando-a à criança, que passa a dividir o seu objeto de desejo com a figura castradora. Ambiciona, então, a morte do pai para ter a exclusividade do objeto desejado.
Em Lacan, o Nome-do-Pai está no discurso da mãe, sendo para onde aponta o desejo. A metáfora paterna é uma operação significante articulando o Complexo de Édipo ao de Castração. Logo, o Édipo deixa a sua base evolucionista do desenvolvimento infantil ao permanecer atemporal, por se situar em uma premissa da estrutura. Desse modo são apresentados três tempos lógicos para o Édipo (LACAN, 1957-1958/1999).
O primeiro está centrado na identificação da criança ao objeto de desejo da mãe — equivalência falo e criança. Ergue-se uma tríade a partir desses dois elementos: criança, mãe e falo. Ser falante, a mãe fica submetida à lei simbólica, tornando-se um Outro absoluto para a criança.
No segundo tempo está a simbolização — o fort-da (FREUD, 1920/2019b). A mãe, representada pelo carretel, também o é por palavras, enunciando a sua simbolização. É a entrada da criança na linguagem. Pela premissa do estágio do espelho, ergue-se o binarismo significante S1 e S2, por onde o sujeito caminharia.
Antes disso, a intermediação criança-mãe se dava pelo falo. A linguagem passa a condicionar o posicionamento da criança no mundo. A mãe deixa de ser objeto primordial, passando ao de signo. Com a metáfora paterna, o desejo da mãe é deslocado para outro lugar, não mais estando na criança.
Significante, o Nome-do-Pai faz a mãe ser simbolizada. Se, no primeiro tempo lógico, o Outro é a mãe, o Nome-do-Pai barra o Outro absoluto; no segundo, a criança é inserida na ordem do simbólico. Lacan introduz o Édipo da castração simbólica, faz com que a identificação da criança com o falo da mãe seja recalcada e coloca a mãe no nível significante do desejo do Outro.
No terceiro tempo tem-se o declínio do Complexo de Édipo, com o menino deixando de ser falo para ser alguém com falo. É iniciado o processo de significação ao seu pênis, com o pai como identificação com o ideal do eu. A matriz simbólica é o significante Nome-do-Pai, conferindo-lhe virilidade — já a menina é posicionada como objeto de desejo masculino.
Em sua existência como alguém com falo, há o temor pela castração. O ideal do eu, simbolizado na figura paterna, edifica-se no universo simbólico como construção sua. Entende-se a grande admiração ao pai em Homem dos ratos e explica-se, então, os seus dilemas, sobretudo no tocante à escolha do casamento, sempre à espera da aprovação do pai simbólico, adiando a realização de seu desejo. O temor pela perda do falo acompanha o de não corresponder às expectativas de alguém tão grande (FREUD, 1909/2020).
Ao obsessivo, a ameaça ao falo é constante. Ao se relacionar com um ser castrado, teme perder o falo. Diante disso, tomando os três tempos lógicos acima apresentados, mostra-se como a mãe, em determinado momento, por possuir o seu próprio falo, deixa de ser uma ameaça castradora. Por isso que a paternidade poderia ser, para o obsessivo, o testemunho da potência e a possibilidade de se romper com a trama neurótica na qual se encontra enredado.
Paternidade e potência — um caso na literatura
Para ilustrar essa discussão, toma-se a obra de Karl Ove Knausgard. Em seu projeto literário Minha luta, dividido em seis volumes, o escritor norueguês trata episódios de sua vida elaborando remotas lembranças da infância até obscuros pensamentos e preconceitos, a ponto de promoverem um inevitável julgamento da parte de seus leitores.
Para os propósitos do presente artigo, os dois primeiros volumes mostram-se mais significativos, contribuindo para que o elemento obsessivo seja observado na trajetória do escritor/personagem. Em A morte do pai, Knausgard centra a narrativa na figura paterna (KNAUSGARD, 2015a). Em seu relato, tem-se um homem distante, incompreensível para os filhos e até mesmo para a mãe. Tirânico, isola-se no alcoolismo. Não há, ao longo do livro, descrição de momentos agradáveis vividos com os dois filhos — Knausgard era o caçula. Pelo contrário, pois a convivência mútua é sempre relatada a partir de uma sufocante tensão.
Curioso é que os castigos sempre esperados de um pai autoritário raramente se mostram presentes, denotando a exploração do simbólico da parte do autor da obra. Ao contrário, tem-se sempre a apresentação quanto ao que aconteceria se ele o descobrisse, com um excesso de cuidado para que isso não ocorresse — parece mais uma obsessão pelo castigo do que a sua realidade.
Em contrapartida, Knausgard escreve apresentando-se como um jovem repleto de frustrações, como as pelo seu péssimo desempenho como músico da banda de rock da qual faz parte, por ser um escritor e redator medíocre e descompromissado, pelo excesso de timidez e fracasso nas tentativas de relacionamento com as meninas — a perda da virgindade tarda ainda por muitos anos —, pela dificuldade com amizades, entre outras. Isso se dá principalmente quando se compara constantemente ao seu irmão mais velho, Ingve, descrito como bastante independente. Destaca-se que nunca elogia o seu próprio trabalho — embora louve os de muitos outros colegas.
Como o título do primeiro volume indica, o livro é marcado pela morte de seu pai. Em sua descrição, isso se dá de forma agonizante, em decorrência do álcool. A sua decrépita situação é ilustrada ainda pelo relato de um episódio em que seu pai, dentro de casa, quebra a perna e opta por permanecer ferido no chão, bebendo, a pedir por socorro.
Nota-se como, diferentemente do que se observa em O homem dos ratos, o pai não é digno de admiração, mas, sim, de repulsa — algo comum na neurose obsessiva, a existência de algo equivalente a esse polo tirania-admiração. Castrador, funciona como um constante juiz, e o neurótico, sabendo de sua condição limitadora, ainda assim, em seu imaginário, opera sempre em busca da aprovação desse Outro, figura austera provida de severidade, que, certamente, não virá.
Um outro amor, o segundo volume, se inicia com a descrição de seu divórcio com Tonje e sua mudança para Estocolmo, onde conhece Linda Boström, com quem viria a ter três filhos. É aqui, após narrar a morte do pai, que Knausgard apresenta a felicidade da paternidade, alterando o tom de sua narrativa, mesmo ao exibir as dificuldades que enfrenta na conciliação da família com o trabalho (KNAUSGARD, 2014).
À sua chegada à Suécia, tem-se um reconhecimento insignificante do trabalho como escritor, pelo qual evidencia um grande desejo outrora cerceado pela figura do Pai. No começo do livro, antes do nascimento de sua primogênita Vanja, muitos dos pensamentos obsedantes ainda se fazem presentes, como no caso em que, no encontro com outros escritores, apaixonado por Linda, tendo dificuldades com a possível aproximação, faz, diante do espelho, diversos cortes em seu rosto. O fato, naturalmente, chama a atenção dos colegas, que não entendem o motivo pelo qual fez aquilo.
Com a paternidade, Knausgard volta-se para a organização da casa, chegando a executar trabalhos braçais na reforma do novo lar para receber Vanja. A procrastinação para a escrita aos poucos se desvanece, e até se isola da esposa grávida para confeccionar um grande trabalho, cujo prazo para envio da versão final expirava. Esse trabalho viria a lhe credenciar maior reconhecimento na escrita, abrindo as portas para a posterior redação de Minha luta.
Mesmo na consumação da paternidade, traços de sua neurose ainda se fazem presentes. Para ilustrar esse ponto, basta trazer algumas de suas posturas ante Vanja, como a obsessão pela limpeza da filha na hora de comer — uma característica de seu pai no tratamento com os filhos que o autor deixa bastante demarcado.
Interessante como, à leitura da obra, nota-se exatamente o preceito assinalado por Gazolla, quando enuncia o teatro do obsessivo que roteiriza, dirige, assina a cenografia, atua, ilumina e assiste ao seu próprio espetáculo. O Pai simbólico de Knausgard permanece mesmo após a sua morte, que, em seu primeiro livro, da maneira como foi descrita, funciona como um modo de edulcorar a sua tirania. O totem, na configuração enunciada por Freud, ali permanece, castrando-o. Uma castração apenas amenizada pela paternidade, ao transferir a sua libido para a produção literária, abrindo caminho para a execução da escrita. Após a paternidade, até mesmo trabalhos julgados como enfadonhos e difíceis, como o de revisão de tradução, tornam-se toleráveis e prazerosos, segundo os dizeres do próprio autor.
Diante disso, a remissão à sua infância e adolescência, no terceiro volume, se dá de uma forma muito mais amena ao permitir a aproximação com a arte (KNAUSGARD, 2015b). Aqui não se trata mais de desabafo, tal como no primeiro volume de Minha luta. Knausgard escreve sobre a escrita e sua vida como escritor, outrora cerceado pela figura do Pai (KNAUSGARD, 2017).
Se, como diz Lacan (1966/2021), o obsessivo compensa a degradação do pai ao buscar preencher o buraco simbólico por ele deixado com o mito, com a fantasia, pode-se dizer que Knausgard segue essa trilha com a sua escrita. Em Homem dos ratos, conjuga-se a imagem narcísica com o real difícil de suportar. O paciente de Freud fica, então, preso às circunstâncias de sua própria fantasia, em que seu pai é sustentado em um lugar inalcançável (FREUD, 1909/2020). Minha luta poderia seguir o mesmo caminho se se permanecesse apenas na triste morte do pai. Entretanto, Knausgard vai por outra direção por meio da paternidade. O desejo de ser pai é manifestado em sua primeira noite com Linda, insinuando uma saída de seu lugar de vigiado, julgado pelo Pai (KNAUSGARD, 2014, 2015a).
Nem de longe deseja-se esgotar essa temática. A ideia fundamental é a de apresentar contribuições que possam direcionar a uma discussão mais profunda sobre a paternidade e o lugar por ela ocupado na psicanálise. Tomou-se, aqui, a neurose obsessiva como referência.