MIQUEL BASSOLS
LYGIA CLARK
Psicoses, ordenadas sob transferência
MIQUEL BASSOLS
A solidez de um conceito clínico se mede pela efetividade de seu uso, especialmente quando dá conta de um campo de fenômenos para os quais não existia antes um mapa estabelecido[1]. A partir dessa perspectiva, podemos dizer, sem dúvida, que o conceito de “psicoses ordinárias”, cunhado por Jacques-Alain Miller no final dos anos noventa, chegou a ser um conceito clínico já estabelecido, um conceito de enorme efetividade, dado ao seu uso ampliado desde então no campo freudiano… e mais além. As psicoses ordinárias dão conta, assim, de uma série de fenômenos que, às vezes, passam despercebidos por sua aparente normalidade mas que, escutados desde o ensino de Lacan, indicam as condições de estrutura que temos aprendido a localizar no campo das psicoses. Discretos acontecimentos de corpo, sutis obturações de sentidos no deslizamento da significação, velados fenômenos de alusão, suplências minimalistas nas quais o sujeito sustenta a frágil estabilidade de sua realidade. Esses fenômenos estavam aí, à vista de todos, mas se confundiam frequentemente com a paisagem da normalidade. Tal como indicava o próprio Jacques-Alain Miller na hoje conhecida Convenção Antibes, “Passamos da surpresa à raridade, e da raridade à frequência” (MILLER, 2012, p. 241). Quer dizer, passamos da surpresa de encontrar o excepcional e o extraordinário a reparar em fenômenos com que, por sua frequência, já estávamos familiarizados.
Mas ali onde opera o preconceito da normalidade, esse fantasma que adquire em nossos dias categoria de verdade estatística, se trata sempre de encontrar a estranheza do traço clínico em seu detalhe mais singular. Assim, as psicoses ordinárias nos revelam agora um tipo de carta roubada de nossa clínica: estavam tão à vista de todos que se escondiam de cada um. Bastava um ligeiro deslocamento de foco clínico para fazer aparecer, nesses fenômenos, a estrutura das psicoses em suas diversas formas de amarração e revelar, com essa mudança de perspectiva, que o mais estranho habitava o mais familiar da clínica. As psicoses ordinárias são assim também o Unheimlich (o sinistro, o estranhamente familiar) de nossa clínica. E não é raro obter esse afeto vinculado ao Unheimlich no psicanalista praticante quando se assinala a dimensão do estranhamente familiar desses fenômenos.
Então, se o conceito de psicoses ordinárias veio delimitar o mapa do que antes era uma “terrra incógnita” de nossa clínica, é também porque mostra que a topografia de seu terreno está presente em cada um dos continentes previamente definidos pela cartografia clássica, a cartografia repartida segundo as categorias de psicoses, neuroses e perversão. Dito de outra maneira, o mapa cria mais o terreno do que o representa, até confundir-se com ele. O que quer dizer também que a linguagem, incluída a da clínica, em vez de ter uma função de representação da realidade, está vinculada na mesma operação da construção e da percepção dessa realidade. É algo tão estranho como familiar para alguém formado na orientação lacaniana clássica: a percepção eclipsa a estrutura ali onde essa estrutura revela o modo em que se constrói essa percepção.
Vamos agora considerar a natureza do terreno que hoje conhecemos como o termo “psicoses ordinárias”. Imaginemos um tipo de Google Earth da clínica em que podemos visualizar o terreno e as localizações geográficas com seus nomes e fronteiras. Encontramos aí, segundo nossa clinica clássica, claramente estabelecidos os dois grandes territórios das neuroses e das psicoses, com suas fronteiras e subfronteiras, com a histeria e a obsessão de um lado, com a paranóia e a esquizofrenia por outro. Podemos localizar também a melancolia, também as perversões, ainda que às vezes se confundem um pouco mais em algumas de suas fronteiras para revelar sua condição de traços que podem compartilhar diferentes países. Existem, com efeito, traços melancólicos em vários lugares dos continentes delimitados, assim como traços de perversão, para retomar a tema de um encontro internacional do Campo Freudiano de algumas décadas atrás.
Se escrevermos agora “psicoses ordinárias” nesse localizador imaginário da clínica no Google Earth para ver como os zooms sucessivos nos conduzem a uma localização precisa, oh, surpresa!, a lista de lugares que aparecem na pequena janela de busca se alarga mais e mais, até fazer-se presumivelmente infinita. Até o ponto que pareceria que as “psicoses ordinárias” podem estar hoje em qualquer parte do mapa sem que se possa reduzir sua descrição a um traço, tampouco constituir-se em um continente em si mesmo. Se clicamos em qualquer um desses nomes, somos conduzidos, sem dúvida, a lugares já conhecidos. E se continuarmos a verificar a lista, talvez poderíamos concluir, então, que a psicose ordinária é, na realidade, o próprio Google Earth como um todo, o próprio sistema de representação com o qual buscamos localizar os lugares da nossa clínica clássica. É uma clínica feita de traços discretos, que valem pela diferença que existe entre uns e outros, ao estilo do sistema estrutural da língua que conhecemos desde a lingüística de Saussure. Mas aqui os traços são tão discretos – permitam-me o equívoco dessa palavra –, tão sutis, que desaparecem à visão geral e só aparecem na singularidade de cada caso, e cada vez de maneira distinta. Difícil construir um mapa geral e um buscador preciso com essas condições de representação, a não ser, como dizemos, que o lugar em questão que buscamos não seja senão o próprio sistema de representação com o operamos.
Digamos de imediato que esse paradoxo não nos parece de todo estranho aos leitores de Jacques Lacan. Está presente desde muito cedo em seu ensino. Ele mesmo leu sua própria entrada na psicanálise, a que leva o título de sua famosa tese de 1932, On Paranoiac Psychosis in its Relations to the Personality, dizendo, alguns anos depois, que a personalidade é a paranóia, e que é por essa razão que não há, de fato, relações entre uma e outra. Nada mais normal que a personalidade, nada menos discreto também – tome-se o termo “discreto” com o equívoco que temos assinalado.
Mas, então, será que a categoria de “psicoses ordinárias”, que nos parecia tão efetiva no seu uso, se evapora agora precisamente pela extensão e efetividade deste uso? Não estará ocorrendo o mesmo que assinalava Lacan nos anos cinquenta, quando estudava o uso da interpretação no meio analítico a partir das observações de Edward Glover? Recordo-lhes sua indicação a respeito em seu escrito sobre “The direction of the treatment and the principles of its power”: Edward Glover, na falta da noção de significante para operar na experiência analítica – escreve Lacan – “finds interpretation everywhere, being unable to stop it anywhere, even in the banality of a medical prescription[2]”(LACAN, 1998, p. 585.).
Sem dúvida, tal estravio seria, seguramente, a nossa confusão de línguas, confusão que se acrescentaria à Babel atual da clínica, uma clínica que parece desaparecer ela mesma no mundo das nosografias cada vez mais desordenadas e hoje alimentadas pela crise do sistema DSM. É sabido que a crise desse sistema, em suas novas versões, estendeu de tal modo as descrições do patológico na vida cotidiana que não há um só canto que não seja diagnosticado como uma possível “desordem”. Até o ponto de que, se alguém não se encontra descrito em alguma das páginas do manual, é porque realmente deve ter uma séria “disorder“.
Trata-se, em realidade, de um erro de perspectiva homólogo ao que descrevíamos com o modelo do Google Earth. Com a introdução das categorias das “psicoses ordinárias” na clínica, nos encontramos – como assinalva Jacques-Alain Miller no momento mesmo de introduzir o termo – “divididos entre dois pontos de vista contrastantes, mas que não são excludentes um do outro” (MILLER, 2012, p. 242.). Desde a primeira perspectiva, aqui podemos ordenar, a partir do primeiro ensino de Lacan, que há descontinuidade entre neurose e psicose; há fronteiras mais ou menos precisas; há elementos discretos e diferenciais, tributários da lógica em que funcionam os nomes do Pai e a lógica do significante que opera de modo discricional, pelas diferenças relativas entre os elementos. Quando há uma fronteira no mapa, há diferenças discricionais entre os territórios, há também possível reciprocidade entre eles para definir o que um é e não é em relação ao outro. Desde a segunda perspectiva, a que podemos ordenar a partir do último ensino de Lacan, coloca-se mais a ênfase na continuidade entre territórios, aquela que os torna contíguos, como dois modos de responder a um mesmo real, como dois modos de gozo diante de uma mesma dificuldade de ser. Não se trata mais, nessa segunda perspectiva de estabelecer fronteiras, senão de constatar amarrações e desamarrações entre fios que estão em continuidade.
Assim, podemos dizer que não há propriamente uma descrição clínica das psicoses ordinárias segundo o modelo clássico que ordena suas categorias a partir de uma série de traços presentes no interior de um conjunto mais ou menos delimitado. Resultaria impossível então incluir uma categoria assim na lógica do DSM ou dos manuais de diagnósticos habituais, em que se enumeram os traços que devem estar presentes para cada categoria clínica. Desde o ponto de vista descritivo poderiam definir-se melhor por uma traço que falta, nunca o mesmo, por aquele que sentimos faltar em relação às psicoses clássicas, mas também pelo que percebemos faltar em relação as neuroses clássicas. Nos vemos então obrigados a defini-las, mais do que nunca, caso a caso, e sempre segundo com o contexto em que encontramos esta falta.
Se me permitem assim dizer, a categoria “psicoses ordinárias” inclui então as categorias que não se incluem a si mesmas: parece uma histeria mas não é uma histeria, não inclui os traços que conhecemos da histeria; parece uma obsessão mas não inclui os traços da obsessão; parece a paranóia mas não inclui os traços da paranóia… O que converte as psicoses ordinárias em um tipo de paradoxo de Russell, o paradoxo bem conhecido daquele conjunto que inclui os conjuntos que não se incluem a si mesmos. Há várias maneiras de ilustrar o paradoxo de Russell, e uma é o catálogo que inclui todos os catálogos que não se incluem a si mesmos, sem poder concluir finalmente sobre a pergunta se o primeiro catálogo se inclui ou não a si mesmo.
Desse modo, a categoria das psicoses ordinárias faz explodir o sistema diagnóstico da clínica estrutural. Ocorre com elas algo parecido ao que ocorria na primeira clínica freudiana, com a introdução das chamadas “neuroses atuais”, as neuroses que Freud distinguia das psiconeuroses clássicas e que se definiam por sua falta de história infantil e pela falta de sobredeterminação simbólica dos sintomas. Toda neurose era uma neurose atual até que não se encontrasse esses dois elementos estruturais que não cessavam de não se escrever… até o encontro contingente que decantava sua significação.
Digamos que o único modo de verificar esse fato, o único modo de pôr a prova esse real que não cessa de não se escrever em cada caso, é a própria estrutura da experiência analítica, a estrutura que se põe à luz do dia no fenômeno da transferência.
Dito de outro modo, e para concluir, as psicoses ordinárias só se ordenam clinicamente quando seus fenômenos se precipitam, se ordenam, na lógica da transferência. Só ali se revelam as psicoses ordinárias como ordenadas sob transferência.
Tradução: Letícia Soares
Revisão: Maria das Graças Sena