SUZANA FALEIRO BARROSO
Psicanalista, membro da EBP/AMP
suzanafaleirobarroso@gmail.com
Resumo: Através de aspectos teóricos e clínicos, o artigo discute as duas abordagens da família hoje, isto é, a via do disfuncionamento familiar protagonizado pelo discurso da ciência em contraponto com a via do equívoco orientada pelo discurso psicanalítico.
Palavras-chave: Linguagem da ciência; família-holófrase; equívoco; discurso psicanalítico.
“Everything is backward”: the child, their parents and the route of misconception
Abstract: Through theoretical and clinical aspects, the article discusses the two approaches to the family today, that is, the pathway of family dysfunction carried out by the science discourse in contrast to the pathway of misunderstanding guided by the psychoanalytic discourse.
Keywords: Language of science; family-holophase; misunderstanding; psychoanalytic discourse.
O que está acontecendo?
O mundo está ao contrário e ninguém reparou
O que está acontecendo?
Eu estava em paz quando você chegou
(“Relicário”, Nando Reis, 2000)
Introdução
Inicio minha exposição dando um testemunho da dimensão política que está em jogo com a presença da psicanálise na sociedade hoje, mais precisamente na universidade. No dia 8 de abril deste ano, Paula Pimenta e eu fizemos a terceira de uma série de lives sobre autismo em um canal da PUC-Minas, aberto em 2020, que tem acolhido nossa participação. O tema proposto para esse evento foi “Como o autista aprende na perspectiva da psicanálise”.
Na véspera dessa live, fomos surpreendidos por uma mensagem que circulou no grupo de associação de pais de autistas. Transcrevo: “olha que maravilha a PUC com pseudociência para abordar o autismo. Convido a todos a entrarem e explicarem para esse povo que autismo não se trata com psicanálise”.
Compartilho esse acontecido com o NPPcri, pois demonstra a batalha da psicanálise neste tempo em que a soberania do saber do discurso da ciência segue se infiltrando nas instituições sociais, particularmente junto à família, às crianças e a seus sintomas.
A meu ver, cabe à psicanálise com crianças um papel decisivo na transmissão de nossa prática, uma transmissão que renove a política do inconsciente no campo ético aberto por Freud.
A linguagem da ciência, o catálogo das disfunções da criança e uma hipótese a ser desenvolvida sobre a noção de “família-holófrase”
Com frequência, a inconsistência da família pós-moderna quanto ao simbólico e sua incidência junto à criança assume o formato da disfuncionalidade a ser rastreada e consertada pela intervenção da neurociência, da medicalização e das técnicas cognitivas-comportamentais (TCCs) e/ou pelo coaching parental.
Verificamos como os significantes da transmissão familiar vêm sendo totalmente rebaixados em prol das certezas provenientes das medidas neuropsicológicas. Apostilas cheias de gráficos, números, medidas resultantes de testes neuropsicológicos são carregadas pelos pais quase como um álibi, visto que seu dizer se apaga sob o poder ilusório da certeza científica. Trata-se do saber unívoco que constrange o discurso familiar e obtura a via do inconsciente.
Contudo, essa parafernália não engana o real que retorna no corpo e no gozo da criança terrível, descrita por Daniel Roy no artigo “Pais exasperados – Crianças terríveis”. Essa criança, que se torna real demais para seus pais, encarna o objeto estranho e angustiante, com relação ao qual eles não sabem mais o que fazer.
Os diagnósticos catalogados congelam os sujeitos em suas supostas disfunções e os afastam dos significantes particulares da sua inserção no discurso familiar. Mais ainda, ao funcionar, sobretudo, com pequenas letras, com cifras mais do que com significantes, a linguagem da ciência consegue “neutralizar todas as outras funções do discurso e, em particular, o S1 e o S2, como produtores de sentido” (AFLALO, 2013, p. 44). Disso pode resultar o congelamento da lógica binária do significante e o incentivo ao império do Um. Esse congelamento evoca a noção de “família-holófrase”, presente no texto de Roy.
Promovida pela supressão do intervalo entre os significantes, a holófrase é a solidificação do par de significantes com a consequente suspensão da representabilidade do sujeito, das leis da linguagem, comprometendo as operações de constituição do sujeito, a alienação e a separação.
O sujeito se constitui a partir da relação entre S1, significante-mestre que o representa para outro significante, S2, significante do saber do Outro. Essa operação, chamada alienação, requer a perda do objeto, concomitante à formulação da demanda do sujeito ao campo do Outro. O objeto perdido causa o intervalo entre os dois significantes e dá lugar à metáfora. Quando ocorre a holófrase do primeiro par de significantes, não há perda, não há intervalo.
A holófrase é uma figura retórica por princípio oposta à metáfora e que se presta bem para indicar o efeito de petrificação, de solidificação, de congelamento do sujeito devido a uma alienação sem separação.
“A holófrase é o nome que Lacan dá à ausência da dimensão da metáfora. Na verdade, que dois significantes sejam assim solidificados, holofraseados, que não haja intervalo entre eles, é equivalente a dizer que um não pode vir no lugar do outro, não podem se substituir — substituição e condensação estando no princípio da metáfora — uma vez que eles já ocupam o mesmo lugar” (STEVENS, 1987, p. 66).
O sujeito não é mais representado pelo significante a outro significante, rejeitando todo o intercâmbio simbólico, cristalizando-se em uma identificação monolítica, que exclui qualquer divisão. Essa situação, segundo Lacan no Seminário 11, serve de modelo para uma série de casos.
Ao que parece, falar de “família-holófrase” privilegia a dimensão do gozo mais do que a dimensão significante em jogo nessa estrutura. “O conceito de holófrase é um modo de assinalar que não se trata de significantes que pertencem às leis do simbólico somente, mas ‘que é um significante que porta gozo’” (BAYON, 2020, p. 182).
Sobre a abordagem do sofrimento da criança e da família hoje, a partir da noção de disfuncionamento, cito Roy:
“O disfuncionamento não é o que se acredita, ele não se relaciona com um mau arranjo dos papéis parentais ou das relações pais-crianças, nem com o mau funcionamento de uma função psíquica ou cognitiva. O disfuncionamento consiste em não querer saber que a família já é um modo de tratamento do gozo dos corpos falantes” (ROY, D. 2021, n/p. tradução nossa).
O que o autor propõe é descompactar a família holófrase, o que entendo como dar-lhe voz, liberar suas articulações significantes, dar lugar ao equívoco, condição para colocar o inconsciente a trabalho e para desalojar a criança do lugar de objeto condensador de gozo.
As ditas “disfunções cognitivas” e os efeitos da rejeição do inconsciente
De artigos de J. C. Maleval e Véronique Mariage, publicados no livrinho L’anti livre noir de la psychanalyse (2006), recolhi algumas vinhetas clínicas sobre as consequências da abordagem das disfunções cognitivas das crianças e das famílias, sem que se leve em conta a via do equívoco.
Comentando uma crítica feita às TCCs, que promoveriam apenas uma substituição de sintomas, Maleval relata um caso de uma criança para a qual esse método teria promovido o retorno no real suscitado pela rejeição do simbólico. Trata-se de uma criança com fobia de um coelho branco que acaba tocando o objeto de seu medo após uma dessensibilização sistemática. Logo em seguida, essa criança, já sem o medo, foi hospitalizada com escarlatina, voltando somente dois meses depois.
Véronique Mariage, por sua vez, comenta como tem sido frequente que as crianças cheguem ao analista falando TCC, se “terapiando” TCC. Relata o caso Florette, de seis anos. Criança que habitava no campo, onde os animais ocupavam lugar importante em sua vida. A menina tinha medo de que seu cachorro a mordesse ou a fizesse cair, que seu gato a arranhasse ou que as galinhas a bicassem quando lhes desse comida. Submetida a um programa TCC, seu sintoma desapareceu após aproximações sucessivas dos animais. Junto à analista, Florette disse outra coisa, a saber, que seu pior medo, que, segundo Mariage, porta a marca de seu desejo, era de sua pequena irmã dar comida ao cachorro. Ela disse: “minha irmã poderia pisar no rabo dele e ser comida pelo cachorro”.
Nos dias atuais, diante das respostas da ciência aos medos infantis, é oportuno lembrar um dos conselhos freudianos que discute a importância de não se desprezar o sujeito e seus métodos particulares de proteção contra a angústia até que ele venha a elaborar, por meio da palavra, os motivos de sua incompreensível covardia.
“A experiência demonstrou que é impossível efetuar-se a cura de uma fobia (e até mesmo, em certas circunstâncias, perigoso tentar fazê-lo) por meios violentos, isto é, primeiro privando-se o paciente de suas defesas, e depois o colocando numa situação da qual ele não possa escapar da liberação da sua angustia” (FREUD, 1909/1976: 124).
O discurso psicanalítico e a via do equívoco
Segundo J.-A. Miller, a orientação do real não nos permite mais exaltar o simbólico, nem refugiar no imaginário, tampouco alienar no real da ciência. Somente nos resta, portanto, a via do equívoco.
No artigo “O engano do sujeito suposto saber”, Lacan (1967) nos adverte que o inconsciente é pouquíssimo tranquilizador, visto que o equívoco em questão diz respeito ao que não pode ser encontrado no saber articulado. Trata-se do inconsciente captado em uma equivocação, “aquilo que se pode designar o tema de cada um, aquilo que anima cada um” (MILLER, 2011, n/p.), advindo do encontro do corpo e do significante como acontecimento de gozo. É a forma como o sujeito foi impregnado por lalíngua, marca de uma singularidade absoluta que imprime um modo de gozo próprio.
Encontrar a via do equívoco implica o percurso lacaniano que vai da noção de Outro à noção do Um, do inconsciente como saber ao inconsciente real. Onde estava o Outro como lugar dos significantes, aparece como ponto de partida o Um sozinho, que destaca a ressonância corporal da palavra, eco do dizer no corpo.
O que dizem as crianças sobre suas famílias
Nas vinhetas que se seguem, poderemos verificar o que o psicanalista Daniel Roy chamou de abordagem do disfuncionamento familiar em contraponto com a abordagem da via do equívoco, esta sim, pertencente ao discurso psicanalítico.
Antônio e o avesso da família
É da fala de Antônio que extraímos o título da temática de hoje no NPPcri, “tá tudo ao contrário”. Ele estava com 4 anos quando veio à consulta, trazido por seus pais, que se queixavam de sua agitação: “ele põe a casa abaixo”, “até quadros da parede ele joga ao chão”. Não tem horário para dormir, desarvora seus familiares, impede o trabalho dos pais em casa, impede-os de dormir. Diziam que não conseguiam ter autoridade sobre o filho. Já tentaram de tudo, vários métodos, sem resultado. Tomados pela discórdia, os pais do menino discutem o tempo todo. Desorientados, brigam. Segundo a escola que frequenta, Antônio tem “resistência às autoridades”, agride as autoridades. O pai descreve que, ao falar com o filho qualquer coisa, ajoelha-se para ficar da altura dele, explicando, em vão, o que não pode fazer. O “para ficar da altura dele” ilustra bem o lugar de onde o pai se dirige ao filho, isto é, de igual para igual.
Na primeira entrevista, Antônio relatou as brigas de seus pais. Insistia em dizer que já falou para eles pararem de brigar, mas não adiantou. Quando lhe digo, em tom de surpresa e exclamação, “então é você quem cuida disso na família!”, ele responde: “tá tudo ao contrário!”.
A hipótese da inexistência do Outro implica a época da permissividade, do ocaso do significante mestre típico do império capitalista, destinado, segundo Lacan, a promover o sujeito barrado ao lugar do agente.
Na família de Antônio ficou evidente a destruição sistemática dos significantes mestres e do lugar da autoridade, o que acabou por inviabilizar a análise dessa criança. Logo depois de iniciadas as sessões do menino, sua mãe recebeu de um neuropsicólogo o diagnóstico que lhe pareceu tudo explicar, isto é, TOD (transtorno opositor do desenvolvimento). Acatando o protocolo receitado, a mãe de Antônio propõe um caminho paralelo à análise, isto é, a medicação do TOD e a TCC. Diante dessa atuação, assumo a posição de não ceder do discurso analítico, não avalizando a multiplicidade de intervenções propostas, bem ao estilo da época do mais, embora isso tenha acarretado a interrupção das sessões de Antônio.
Fernando e seu pharmakon: as poções contra-loucura
Diferentemente de Antônio, Fernando teve a chance de uma análise. Ele fazia uma terapia cognitiva-comportamental para resolver sua agressividade incontida em casa e na escola. Seus pais decidiram interromper essa terapia quando a psicóloga disse que não poderia fazer mais nada pelo menino. Sugerindo aos pais a existência de uma patologia grave da criança, os encaminhou ao psiquiatra.
Com quatro anos de idade, Fernando desafiava os pais, desacatava-os. Filho de um homem bastante agressivo, sua mãe se esmerava em protegê-lo desse pai. Alguns episódios exasperavam a mãe de Fernando, motivando sua demanda de falar ao telefone com a analista e pedir orientação. Fazendo jus à noção lacaniana de criança generalizada, filho e mãe choravam juntos em momentos de separação na porta do colégio, por exemplo.
No primeiro encontro com Fernando, ele me disse: “meu pai fez uma poção de loucura e eu tomei. Lá no colégio todos ficaram loucos, subiram na mesa, bateram, gritaram…”. Digo a ele que poderíamos fazer uma poção contra-loucura. Ele prontamente aceitou e me perguntou que ingredientes eu tinha para fazê-la.
Fernando passa a desenhar, fazer recortes, rasgar papel para fazer misturas com água e várias cores de tinta. Da poção de loucura passou à poção de bravura, fazendo semblante de bravo e, como ele dizia, “fortaço”, expressando-o de modo caricaturesco com seus gestos e tom de voz.
Cito Lacan: “os pais modelam o sujeito nessa função que intitulei de simbolismo. O que quer dizer, estritamente, […] que a forma pela qual lhe foi instilado um modo de falar só pode levar a marca do modo como os pais o aceitaram” (LACAN, 1975/1998, p. 9).
Atualmente, mais apaziguado, Fernando vem trazendo outros relatos sobre o que faz na escola, já não tão afetado pelas poções de gozo. Por exemplo, relata um lanche coletivo no qual ele e todos seus colegas foram para a cozinha preparar as guloseimas. Fizeram muitos sucos diferentes, de laranja, de uva, de morango, e biscoitos. Ele disse: “Não tinha só pão de queijo. Não gosto de pão de queijo. Meu pai quer que eu coma só pão de queijo”. Na última sessão, uma vez mais, me disse, ao chegar: “Você não acredita o que meu pai fez, uma poção doidaça!”. Em seguida, me pediu material para fazer poção-contra. Acredito que Fernando esteja se tratando por meio de poções de “ajuda contra”, o que o situa noutro lugar, diferente do da criança terrível.
Considerações finais
Para concluir, cito Lacan no artigo “Os complexos familiares”: “não estamos entre os que se afligem com um pretenso afrouxamento dos laços de família” (1938/2003, p. 66). Parece-me surpreendente que Lacan já tenha dito isso em 1938!
Se, por um lado, não nos afligimos com a desfamiliarização contemporânea, pois estamos advertidos quanto à noção de “família-resíduo” (LACAN, 1969/2003), por outro lado, inventar uma família é preciso. Como bem o diz Lacan: “mesmo que as repressões familiares não fossem verdadeiras, seria preciso inventá-las, e não se deixa de fazê-lo. O mito é isso, a tentativa de dar forma épica ao que se opera pela estrutura” (LACAN, 1973/2003, p. 531). A psicanálise com crianças o demonstra. Para um sujeito em constituição, a família pode ser um modo de enlaçar o Um ao lugar do Outro. São as ficções infantis, e não os supostos concertos dos disfuncionamentos, tampouco os programas TCCs, que viabilizam esse enlaçamento.
“A neurose e não é tanto um fenômeno do Um, mas o resultado do mergulho do Um na esfera do Outro. Por isso, ela se articula de modo privilegiado ao contexto das relações familiares, cuja estrutura recobre o Um de gozo. Ao contrário, ‘o automatismo mental, a psicose, é um mergulho do Outro no Um” (MILLER, 2010, p. 166).
Os casos de Antônio e Fernando demonstram os acontecimentos de gozo que irrompem na estrutura das relações familiares. A operação do discurso psicanalítico pode viabilizar a articulação do acontecimento ao lugar do Outro.