FRANK ROLLIER
Psicanalista. Membro da ECF/AMP
frollier@wanadoo.fr
Resumo: Neste texto, Frank Rollier traz a discussão sobre a importância da presença dos corpos (analista-analisante) e seus efeitos relativos ao trabalho na transferência e de abertura ao inconsciente. As terapias a distância produzem uma exacerbação dos semblantes, uma profusão de sentidos, conectadas ao projeto político do discurso cientificista sob o qual a relação sexual possa se escrever. A “presença real” do analista é a aposta ética da psicanálise de poder tocar pedaços do real pulsional e do resto, o objeto a.
Palavras-chave: terapias a distância; psicanálise; transferência; “presença real”; objeto a.
Abstract: In this article, Frank Rollier raises an important discussion about the presence of the bodys (analyst-analysand) and its effects on the work in transference and on the opening to the unconscious. Remote therapies produce and exacerbation of the countenance and a profusion of meaning that are conected to the political project of the cientific discourse under which the sexual relation can be written. The “real presence” of the analyst is the ethical bet of psychoanalysis on being able to approach something of the remainder, of object a.
Keywords: remote therapy; psychoanalysis; transference; “real presence”; object a
A internet oferece uma profusão de terapias a distância, através de vários dispositivos produzidos pelo discurso cientificista: chat on-line, webcam, fone 3D de realidade virtual, psi-robô… que esvaziam a presença real do corpo para reduzi-lo a uma voz, frequentemente associada a uma imagem. Elas se assentam sobre a sugestão e vão, portanto, na direção contrária da abordagem analítica que pressupõe, por um lado, que o analisante desloque seu corpo até o consultório do analista e, por outro lado, que o saber esteja do lado do analisante, como o ilustra a decifração da mensagem da tossezinha pela paciente de Ella Sharpe no Seminário de Lacan sobre o desejo (LACAN, 2016, p. 151–169).
Na China, foi dado um passo adiante com a oferta de sessões ditas psicanalíticas por Skype (GUYONNET, 2017, p. 26), que fazem cada vez mais sucesso.
Se as psicoterapias, mesmo em suas formas mais grotescas, permanecem presas ao sentido e podem se contentar com uma escuta que coloca à distância a presença dos corpos, não se excluem, contudo, possíveis efeitos de transferência. E isso com relação à psicanálise, que, por sua vez, visa a abertura do inconsciente?
A selvageria da ideologia “cientificista”
Desde 1949, Heidegger identificou a invasão da ciência pela técnica. Denunciou o apresamento da natureza e a opôs à technè, que, em grego, designa “um desvelamento que produz a verdade”.
A ciência não foi estabelecida por Lacan como um dos quatro discursos, em que cada um representa uma modalidade diferente de laço social. Entretanto, estando hoje intimamente ligada ao discurso do mestre capitalista e ao discurso universitário, a ciência se converte em um cientificismo que passou a ser uma modalidade de laço social com a finalidade manter o sujeito em continuidade com o objeto mais-de-gozar. Ao mesmo tempo, o cientificismo contemporâneo enuncia que se pode saber sempre mais e que nada é impossível. Judith Miller (2013, p. 311) falava da “selvageria desta ideologia” cientificista que, pretendendo ao universal, ao Um, tem como efeito a abolição dos sujeitos.
A biopolítica, descrita por Michel Foucault desde os anos setenta, hoje faz parte de nosso cenário. Fora da presença de qualquer terapeuta, o discurso capitalista visa ajustar os comportamentos às ofertas do mercado para que o consumidor esteja sempre zen ou positivo. Nessa mesma veia, o self care (LACAZE-PAULE, 2014) garante seu médico particular ao alcance do smartphone, e os robôs eróticos possibilitam um encontro sexual sem passar pela presença do corpo do outro. A exacerbação narcísica que acompanha esse impulso para a adicção se reforça frequentemente em um eu não quero saber nada disso que reduz o inconsciente e a transferência à classificação de conceitos obsoletos. A crença no Outro é abalada, a palavra é desvalorizada e considerada supérflua se ela não se refere a uma técnica suposta imediatamente eficaz e ao menor custo. Ora, a manipulação dos corpos a partir da linguagem permite oferecer uma grande variedade de técnicas supostamente terapêuticas que prometem harmonia evitando, cuidadosamente, tudo o que poderia confrontar o sujeito com a castração. Assim, o site “Psicoterapia On-Line” destaca que “quem consulta não perde tempo no transporte (…). Quando há uma necessidade urgente de comunicar alguma coisa, ele pode fazê-lo a partir do lugar onde se estiver (…) A liberdade e a flexibilidade assim produzidas (…) lhe permitem descontrair sem se sentir observado”.
A “presença real” do analista
Freud, em 1912, falando das “emoções amorosas secretas e esquecidas” (FREUD, 1980), às quais a transferência confere um caráter de atualidade, conclui que “é impossível liquidar alguém in absentia ou in effigie” (Ibid.).
Essa questão da presença é abordada por Lacan desde seu primeiro seminário. Para ilustrar o fato de que a transferência se produz “justamente porque ela satisfaz a resistência” (1986, p. 51-52), Lacan testemunha que, em alguns casos, “no momento em que ele parece pronto para formular alguma coisa de mais autêntica (…) do que jamais pôde atingir até então, o sujeito (…) se interrompe (para dizer) — eu realizo de repente o fato da sua presença” (Ibid., p. 52 ). A transferência se manifesta aqui pela “atualização da pessoa do analista” (Ibid., p. 54), a percepção de sua presença, que Lacan nota como um sentimento que comporta uma parte de mistério e que nós “tendemos incessantemente a apagá-lo da vida” (Ibid.).
No seminário sobre a transferência, ele indica que, paradoxalmente, é o “próprio lugar em que somos supostos saber que somos convocados a ser, e a ser, nada mais, nada menos, que a presença real, justamente na medida em que ela é inconsciente” (LACAN, 1992, p. 333). Lacan insiste sobre essa “presença real” silenciosa do analista que, in fine, só está aqui como “isso — isso, justamente, que se cala, e que cala no sentido em que falta a ser” (Ibid.). Se a transferência repousa sobre o saber suposto atribuído ao analista, não é, no entanto, com seu ser que ele opera, mas a partir de sua falta-a-ser; trata-se, para ele, de sustentar um “lugar vazio” (Ibid.) de tal forma que “o sujeito possa recuperar o significante faltoso” (Ibid., p. 337). Através de sua presença, o analista é seu “próprio sujeito no ponto onde ele se desvanece, em que é barrado” (Ibid., p. 334).
Essa noção da “presença real” será retomada no Seminário XI, em que a invenção de Lacan do conceito do objeto pequeno a dará a ele uma nova coloração. Ele dedica uma sessão à “A presença do analista” (LACAN, 1988, p. 119–120) e começa evocando o lançamento de um livro epônimo de Sacha Nacht (1963), cacique da SPP, que sustenta que o médico deve manifestar uma “presença gratificante” (Ibid., p. 201), consistindo em “uma disponibilidade constante, um acolhimento incondicional, uma paciência ilimitada” (Ibid., p. 3) e ainda “uma atitude profunda de dom autêntico” (Ibid., p. 85 ) e uma “bondade incondicional” (Ibid., p. 188). A essa avalanche de boas intenções, Lacan retruca qualificando esse livro como “pregação lacrimejante” e de “intumescência cerosa” (LACAN, 1988, p. 121).
A internet não era então imaginável; portanto, não é a ausência do encontro de corpos que Lacan repudia, mas os analistas que se representam na transferência mais como um afeto do que como um amor autêntico — eine echte Liebe (Ibid., p. 119) —, que invoca o inconsciente como instinto ou mesmo reduz a transferência a trocas de inconsciente a inconsciente.
Para Lacan, uma recusa do inconsciente, essa “tendência” que se manifesta ocasionalmente deve logicamente “ser integrada no conceito de inconsciente”, pois ela somente traduz “um movimento do sujeito que só se abre para tornar a se fechar, numa certa pulsação temporal” (Ibid., p. 121.). E — este é o ponto crucial — a presença do analista “é ela própria uma manifestação do inconsciente” (Ibid.), inseparável de seu próprio conceito. Lacan acrescenta que “a presença do analista é irredutível, como testemunha” (Ibid., p. 122) de uma perda total. É, de fato, através dessa presença real de corpos que a função de um objeto perdido pode se revelar: esse objeto é o objeto pequeno a que “causa radicalmente o fechamento que comporta a transferência” (Ibid., p. 128). O objeto pequeno a está, portanto, no cerne dessa questão da presença, que, para Lacan, não está ligada ao ser nem a uma virtude particular do analista, mas à irrupção do objeto de gozo na transferência, essa irrupção sendo o “meio (…) pelo qual o inconsciente torna a se fechar” (Ibid., p. 125).
Lacan fala também da “presentificação dessa esquize do sujeito, realizada aqui, efetivamente, na presença” (Ibid., p. 126. ), o que ele opõe à “parte sã do eu do sujeito” sobre a qual a psicanálise americana está focada apelando “ao bom-senso” do paciente para fazê-lo “notar o caráter ilusório de tais condutas no interior da relação com o analista” (Ibid. p. 125–126). Ora, é exatamente essa parte sã “que fecha a porta (…) ou as janelas” enquanto “a bela com quem queremos falar está lá detrás, que só pede para reabri-los” (Ibid. p. 126).
Ele considera, em seguida, o paradoxo freudiano segundo o qual o analista deve esperar a transferência, ou seja, o fechamento do inconsciente para começar a interpretar. Ignorando as críticas da ortodoxia que o reprovam por querer “intervir na transferência” (Ibid., p. 123.), Lacan adianta que é precisamente “neste momento que a interpretação se torna decisiva” (Ibid., p. 126.) e que, assim, o analista “apela a reabertura do postigo” (Ibid.) tratando a transferência como um “nó górdio” (Ibid., p. 129).
Nas lições seguintes, Lacan precisa como o objeto a faz o “papel de obturador” (Ibid., p. 138) no fechamento do inconsciente. Jacques-Alain Miller comentará sobre esse enfoque no fechamento mais que sobre a abertura, notando que esse momento testemunha “da interferência da sexualidade no inconsciente sob a espécie do objeto a” e que é justamente nesse fechamento que “o mais real do inconsciente surge” (MILLER, 2012). O que Lacan indica nesse mesmo Seminário XI, aí avançando, é que “a transferência (é) a atualização da realidade do inconsciente” (LACAN, 1988, p. 142), realidade que é sexual (Ibid., p. 144), pulsional. É a essa dimensão sexual do ser vivo que a presença do analista dá corpo e é ela que a ausência dos corpos permite ignorar.
Podemos, então, reler o seminário A transferência a partir do Seminário XI e medir o caminho percorrido por Lacan: ele anunciou ali que “somos convocados a (…) ser nada mais (…) que a presença real (…) na medida em que esta é inconsciente” (LACAN, 1992, p. 333). Podemos ouvir essa presença real agora como aquela do objeto pequeno a, que o analista visa encarnar para seu analisante.
“Fazer surgir a não relação sexual”
No Seminário O sinthoma, doze anos após o Seminário XI, Lacan diferencia com precisão o inconsciente do real, que é desprovido de sentido. A função do real se distingue daquele pelo fato de que “o inconsciente não deixa de se referir ao corpo” (LACAN, 2006, p. 131), esse corpo que o falasser “adora” e que assinala basicamente a dimensão imaginária que é sua “única consistência” (Ibid., p. 64).
Isso nos permite lembrar o óbvio e dar um passo a mais: a presença real do analista não é certamente aquela de sua imagem, mas aquela que, segundo a expressão de J-A. Miller, relendo o último Lacan, permite à “palavra considerada como pulsão” (MILLER, 2014) se desdobrar. O dispositivo do divã está ali exatamente para eliminar, tanto quanto possível, essa presença imaginária dos corpos. A pulsão está localizada fora do corpo imaginário. O analista, entretanto, poderá ocasionalmente utilizar seu corpo para interpretar a partir de sua posição de objeto a. Éric Laurent propõe que, jogando “com o acontecimento de corpo, com semblante de trauma” (2016, p. 16), ele poderá, assim, tocar o gozo.
J-A Miller nos especifica que “levar seu corpo à sessão”, “deitar-se no divã, é se tornar puro falante, experimentando a si mesmo como corpo parasitado pela palavra” (FAVEREAU, 1999), mas que “ver-se e falar-se, isso não faz uma sessão analítica (…) É necessária a co-presença em carne e osso apenas para fazer surgir a não-relação sexual” (Ibid.), esse real ao qual o falasser não cessa de se confrontar e de responder através da formação de sintomas.
A propósito do “bom uso do sinthoma” na prática da psicanálise, ele assinala que, do ponto de vista da singularidade de cada um, “a sessão analítica tende a se reduzir ao instante” (MILLER, 2009), a um evento que deve ser encarnado, especificando que, com alguns pacientes psicóticos, o encontro com o terapeuta “pode, no limite, precisar somente de um aperto de mão e de um ‘Tudo bem?’ — ‘Tudo bem’ (…). Necessita simplesmente de um coração batendo, da encarnação da presença” (Ibid.).
J-A. Miller acrescenta que “todos os modos de presença virtual, mesmo os mais sofisticados, tropeçarão nisso” (Ibid.) quer dizer sobre o “fora-de-sentido da relação sexual” (LACAN, 1953), esse furo no simbólico que causa o fracasso ao qual o falasser está fadado. E ele conclui que “quanto mais a presença virtual se torna comum, mais preciosa será a presença real” (FAVEREAU, 1999).
Nas terapias a distância e, consequentemente, com a Skype-análise, a ausência de corpos faz sintoma do nada querer saber disso que falha e disso que se perde, da dimensão pulsional como fundamento da relação com o Outro (MILLER, 2000). Essas terapias que colocam em cena uma presença virtual são, elas próprias, um sintoma (GUYONNET, 2017) da recusa do impossível.
Lacan assinalou a importância das entrevistas preliminares, da “confrontação de corpos” (LACAN, 2012). A ausência de corpos, de seus deslocamentos na sessão, abre mais para o mundo dos semblantes do que para o encontro do real pulsional e do resto, o objeto a. Mas é precisamente o projeto político do discurso cientificista que não haja resto e que a relação sexual possa se escrever. Então, como se situa hoje a psicanálise nesse contexto de arrebatamento pelas tecnociências? Isso que Lacan denunciou em 1964 como um obscurantismo, “muito característico da condição do homem de nosso tempo de pretensa informação” (LACAN, 1985. P. 122–123), não perdeu nada de sua atualidade.
A psicanálise “permite se desintoxicar da overdose de saberes e da conexão”, escreve Éric Laurent (2020). Ela também é o lugar onde o sujeito tropeçará sobre o impossível e, assim, encontrará os pedaços de real com os quais ele não cessa de se “confundir” (MILLER, 2000).
Vinheta clínica
Após anos de tratamento, um paciente vem por causa de uma impotência sexual antiga que, diante do horror da castração feminina, o faz fugir de suas parceiras. Contudo, ele se apega mais firmemente à negação dessa castração, o que evita que se confronte com a sua.
Um dia, a sessão se torna o lugar de um pequeno drama na transferência. Ele anuncia que não suporta mais que o analista se cale, que não responda às suas súplicas para salvá-lo de seu mal-estar. “Isso não é humano!”, diz ele. Ele faz a experiência dolorosa da solidão radical do sujeito e, ao longo dessa sessão, põe-se a gritar, a bater na parede ao lado do divã, depois se levanta e sai do consultório com uma grande cólera. Com esse acting out, ele repete na transferência aquilo que acontece com ele a cada tentativa de penetrar uma mulher, o que me permite, em seguida, interpretá-lo: diante do furo, ou seja, da ausência de significante para representar o Outro sexo, surge a angústia e ele se esquiva.
A consciência repentina do silêncio do analista levou ao surgimento do objeto, seguido do fechamento do inconsciente quando ele deixa a sessão. O analista encarna, desse modo, esse resto que o sujeito não controla, esse “resíduo não imaginado do corpo” (LACAN, 2005), como diz Lacan, este a/- φ cujo encontro tem um efeito de divisão sobre ele.
Na sessão seguinte, ele pode dizer do desejo de que a parceira tenha algo para lhe dar. O que ele espera é castrá-la desse ter imaginário e privá-la de seu gozo para que ele não perca nada na relação sexual.
É somente na transferência, corpos presentes, que ele pode tocar esse real que é um ponto impossível.
A presença real do analista, que é sustentada pela colocação em ato de seu desejo, permanece, mais do que nunca, uma aposta ética e política.