MARIA RITA GUIMARÃES
Psicanalista, membro da EBP/AMP
mariarita.guimaraes@gmail.com
Resumo: A partir da clínica psicanalítica, sobretudo a clínica com crianças e a clínica com autistas nela incluída, o que nos interessa acerca de protocolos e classificações? Debater a atualidade: há uma perda da bússola de orientação clínica porque se passou das decisões clínicas ao organismo das neurociências, ignorando ou tornando muda a palavra do sujeito. O texto tenta examinar as condições político-ideológicas desse percurso.
Palavras-chave: diagnóstico; neurociências; autismo; redução clínica.
A political-ideological path to the hegemony of classifications and their protocols towards neurosciences
Abstract: In psychoanalytic clinic, especially the clinic with children and the clinic with autistic people included in that, what interests us in protocols and classifications? Debating the current situation: there is a loss of clinical orientation because it has gone from clinical decisions to the organism of neuroscience, ignoring or muting the subject’s word. This text tries to examine the political-ideological conditions of this path.
Keywords: diagnosis; neurosciences; autism; clinical reduction.
Um argumento possível para uma reflexão sobre a atualidade do estatuto das neurociências leva-nos ao fato de que os protocolos contêm categorias e prescrições de medidas que não estão dissociadas do caráter biopolítico, ou seja, o que podemos chamar de campo político-ideológico das condições nas quais são cimentados os protocolos, começa via classificações.
A partir da clínica psicanalítica, sobretudo a clínica com crianças e a clínica com autistas nela incluída, o que nos interessa acerca de protocolos e classificações? Debater a atualidade: há uma perda da bússola de orientação clínica porque se passou das decisões clínicas ao organismo das neurociências, ignorando ou tornando muda a palavra do sujeito. E isso é muito preocupante.
Poderia partir dos trabalhos do epistemólogo e professor canadense Ian Hacking, dos quais já nos ocupamos há uns 15 anos. Porém, tomo desse autor poucos elementos de um texto publicado em 2013, chamado “Sobre a taxonomia dos transtornos mentais”.
Vamos lembrar que, embora o DSM seja um manual norte-americano, ele é prevalentemente utilizado no mundo inteiro, no Brasil inclusive, mesmo que a Classificação Internacional de Doenças (ICD – Genebra), CID, como conhecemos, seja normalmente considerada o manual oficial.
Dois pontos para a finalidade que nos ocupa: a pergunta do autor “Quem precisa das 947 páginas do DSM-5?”. Do que a maioria dos consumidores necessita é o aplicativo para celular DSM-5 Diagnostic Criteria, para diagnóstico do DSM-5. E desse app, quem precisa? Resposta: as burocracias.
“Todas as pessoas nos EUA e no Canadá, esperando que seu seguro de saúde cubra ou pelo menos custeie parte do valor do tratamento de suas doenças mentais, precisam, primeiramente, receber um diagnóstico que se enquadre no esquema e tenha um código numérico” (HACKING, 2013, p. 302).
Outro aspecto das burocracias diz respeito à estatística — o estabelecimento de predominância de doenças.
“O diagnóstico exerce efeitos sutis na maneira como o paciente entende a si mesmo, e, hoje em dia, os pacientes tendem a buscar informações on-line. As principais revistas de psiquiatria da língua inglesa exigem que os artigos científicos que tratam da saúde mental as caracterizem usando o DSM” (HACKING, 2013, p. 302).
O importante é que Hacking (2013), ao final, vai considerar que o DSM-5 serve para outras coisas — as citadas acima, porém, trata-se de um “livro” — assim o chama — equivocado. Para pontuar essa afirmação tão forte, faço-o de modo reducionista, desprezando aqui sua esclarecedora argumentação referindo-se ao modelo botânico, no qual o DSM se inspirou, com classificações em gênero, espécie e subespécie; um modo de organização — leis da reprodução, que permitem a descrição da árvore. Cito Hacking: “Talvez, ao fim e ao cabo, o DSM seja visto um dia como uma reductio ad absurdum do projeto botânico no campo da insanidade” (2013, p. 313).
Não assinalarei, do texto, os fatos que se desenvolveram uma semana antes do lançamento do DSM-5, que mereceram ser qualificados como “índices da crise epistemológica das classificações”, porque, antes mesmo desse artigo a que me reporto e do lançamento do DSM-5, em “Fim de uma época” (2012a), Éric Laurent já trabalhava esses fatos e seguiu trabalhando em várias conferências. Foi imprescindível revisitar seus textos e encontrar as referências ao texto de Hacking.
Vale lembrar que, no ápice da crise da “zona DSM”, Thomas Insel, chefe do Instituto Nacional da Saúde Mental — EUA, principal financiador de pesquisa na área —, anunciou que o órgão abandonaria o DSM porque a publicação tratava apenas de sintomas. Ele queria ciência, queria pesquisa genética e neurológica e acreditava que, como em qualquer outro campo da medicina, tais recursos deveriam ser usados para definir a identidade de uma doença.
Trata-se do mesmo senhor citado em um texto extraordinário de Éric Laurent, “Autismo: epidemia ou estado ordinário do sujeito?” (2012b, tradução livre do título), no qual analisa o contexto do aumento impressionante dos diagnósticos de autismo. Vemos, na atualidade, a correlação entre vacina como um dos fatores daquele “aumento” diagnóstico, dentro do chamado “fator ambiental”, e o que se passou com a questão da vacina contra a covid-19 para as crianças no Brasil. Laurent faz importante desenvolvimento das interpretações surgidas, de origens ideológicas distintas, como tentativas explicativas das causas da chamada “pandemia” do autismo. Deixo o último parágrafo do texto:
“O debate estatístico não revela um status quase ordinário de autismo? Se definirmos o ser falante como um ser de comunicação, descobrimos uma falha radical nisso. O início do século 20 viu a descoberta da extensão da neurose e do conflito psíquico. O final do século passado foi marcado pelo estatuto ordinário da psicose e depressão. O século 21 não será o século da evidência de um status comum de autismo?” (LAURENT, 2012b, n.p., tradução nossa).
Laurent dedicou longo tempo a esse debate. Recordo a conferência dada em Buenos Aires, na qual examina “os efeitos de massificação segregativos” produzidos pela ideologia classificatória, lembrando, justamente, a porcentagem do número de autistas (em torno de uma criança em 1980 seria autista ou considerando a diferença de sexos, meninos, algo assim como um em cada grupo de 60) e que tal fato se tornou um problema de saúde pública.
“Aparece o perigo do silenciamento da voz dos autistas, especialmente de alto nível. Cabe ao psicanalista dar-lhes a voz e, inclusive, levar em conta a angústia dos órgãos controladores que enfrentam a sua impotência: ajudá-los a recusar o fetichismo das cifras para considerar o despertar do desejo. À medida que Lacan chamou os impasses da civilização, especialmente no controle da infância, as armas que a psicanálise oferece como pensamento crítico permitem restaurar as margens da singularidade não conformada à época” (LAURENT, 2012c, n.p., tradução nossa).
Lembro a frase de Miller (2021): “Diante da intolerância, nos cabe fazer a diferença”.
Os filhotes do DSM-5
No período que assinalamos anteriormente — das discussões entre os grupos de construção do DSM-5 —, em torno de 2013, surgiu o tal “transtorno do neurodesenvolvimento (TND), hoje dominante na psiquiatria norte-americana, o que nos chega como psiquiatria biológica. De qualquer forma, o tema é bastante sensível e há muitas filigranas biopolíticas, que foram trabalhadas por Maleval no texto “Transtornos do neurodesenvolvimento: um forçamento epistêmico-político” (2021), que recomendamos à falta de condições de trazê-las aqui. Para mostrar o tom de desconforto emanado por essa falsa ciência, cito Maleval:
“[…] os TND seriam uma coleção que tem em comum ‘crianças anormais’. Como os identificamos? Essencialmente por cifras – números – que mostram um desvio de um desenvolvimento ‘normal’ definido por meios estatísticos. Trata-se essencialmente de testes que avaliam o cognitivo e a linguagem que proporcionam um marco para as TND” (MALEVAL, 2021, n/p., tradução nossa).
Movimento “Basta”!
Faço aqui brevíssima referência ao recente engajamento da Escola da Causa Freudiana (ECF) na luta de apoio aos psicólogos da França. Esse importante movimento junto aos psicólogos franceses levou à realização de um fórum em 27/5/21. A luta, certamente, estava no momento mesmo da preparação do fórum. Deixo a referência de um texto de Miller na LQ n. 930, em que associa esse movimento ao de 2003, ocasião em que se pretendeu regulamentar as psicoterapias. Em favor da luta da ECF, vários nomes da inteligência francesa se manifestaram igualmente. A emenda foi retirada.
Da apresentação desse fórum realizado pela Escola da Causa Freudiana, escrita por Laurent Dupont e Éric Ziliani, tomo o essencial para configurar a dimensão do que se tratava político-ideologicamente, a partir de um decreto de 10/3/21, advindo da Alta Autoridade da Saúde, da França.
- O decreto não visa apenas a regulamentar a profissão dos psicólogos em subordinação ao campo médico, mas também a reduzir a diversidade das suas práticas ao único referente comportamental, práticas que visam a silenciar o sujeito, reduzindo-o ao seu cérebro.
- Há tentativas de deputados republicanos que apresentaram um projeto de lei visando à criação de uma “autoridade ordinal” para a profissão. Desconfia tanto da formação quanto da prática do psicólogo e também sustenta a ideia de que essa ordem de psicólogos será filiada às profissões da saúde.
- A Escola da Causa Freudiana organizou esse fórum para combater essa ameaça às práticas da fala. Porque, não se engane, essa ofensiva não é outra senão a de uma redução neurocientífica do ser humano, que teria como consequência silenciar toda a prática da fala e, ao mesmo tempo, apagar toda a contribuição da psicanálise.
Situação do autismo, atualmente, no Brasil: há como esvaziar as boas intenções?
Existe uma Fundação no Brasil, precisamente em São Paulo, a Fundação José Luiz Egydio Setúbal, que, por seu nome, nos indica o peso financeiro que a sustenta: trata-se de um dos donos do Banco Itaú — o único, entre os sete filhos de Olavo Setúbal, que não seguiu os destinos da família, mas a medicina. A Fundação reúne três vieses de trabalho, todos no campo infantil. Autismo e Realidade é um deles. Formada como associação de pais e profissionais de saúde, passou a fazer parte da estrutura do Instituto Pensi (outro braço da Fundação), responsável por desenvolver programas de ensino e pesquisa em saúde infantil. O terceiro campo de interesse da Fundação se centra na área hospitalar infantil.
Autismo e Realidade tem um site próprio, bonito e funcional, com o objetivo de difusão do conhecimento sobre autismo por meio de conteúdos voltados para pais e o público geral. Podemos, nesse site, baixar as cartilhas (uma delas com parceria de Ziraldo). Além delas, conjuntamente com o Pensi, são realizadas pesquisas científicas e cursos EaD de capacitação para profissionais, cuidadores e familiares. De outra cartilha, à p. 112, no capítulo “Terapias”, destaco, como primeira opção, as Terapias Cognitivo-comportamentais (TCCs) e o método ABA (Análise Aplicada do Comportamento), que ressaltam, dessa terapia, os princípios que a constituem, entre outros, reforço positivo e punição; aplicação de estímulo indesejável para inibir problemas comportamentais etc. Tudo muito coerente, como estas palavras: “Para garantir uma padronização no processo do diagnóstico, foram criados protocolos médicos, que são testes e entrevistas […]” (Guia para leigos sobre o TEA, 2021, p. 71–2).
No caso de crianças, por exemplo, a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que o primeiro protocolo a ser usado seja a escala Michat. Em seguida, vem o nível de risco ADI_R (Entrevista de Diagnóstico Revisada), que é um teste, na verdade, com 93 questões. Tem também o ADOS (Programação Diagnóstica para Autismo). Não irei seguir nisso, mas, lendo a cartilha, terão ideia do poder e infiltração da neurociência.
Cito, para encerrar, uma frase escolhida aleatoriamente: “Na neurologia, os médicos aprendem a avaliar o funcionamento típico do cérebro, movimentos anormais e sinais de epilepsia, e aplicar testes da capacidade motora, reflexos e força muscular” (Guia para leigos sobre o TEA, 2021, p. 80).
Uma frase de Josef Schovanec, autor do livro Yo pienso diferente: el extraordinario testimonio de um genio autista, versão e-book, encontrável em Amazon e Google Livros:
“Suponha que você seja um psicólogo. Você traz em seu escritório uma criança autista que começa a falar com as palavras ‘Alnitak, Alnilam, Mintaka’. Você deduz que ele tem uma forma de psicose infantil? Um autismo que limita toda a comunicação humana? Ou você vai reconhecer os nomes de três estrelas no cinto de Orion e iniciar uma conversa apaixonada sobre astronomia?” (SCHOVANEC, 2015, p. 25. Tradução nossa).
Referências
Guia para leigos sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA). PDF. Instituto Pensi – Pesquisa e ensino em Saúde Mental. Autismo e Realidade. Fundação José Luiz Egydio Setúbal. Disponível em: https://autismoerealidade.org.br/convivendo-com-o-tea/cartilhas. Acesso em: 5 maio 2022.
HACKING, I. “Sobre a taxonomia dos transtornos mentais”. Discurso. ago. 2013. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/discurso/issue/view/6478. Acesso em: 5 maio 2022.
LAURENT, É. “Fim de uma época”. Diretoria EBP na Rede. 2012a. Disponível em: https://www.ebp.org.br/dr/ebp_deb/ebP_deb001/laurent.html>. Acesso em: 5 maio 2022.
LAURENT É. “Autisme: Épidémie ou état ordianaire du sujet?”. Lacan Quotidien. n. 194., abr. 2012b. Disponível em: http://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2012/04/LQ-1941.pdf. Acesso em: 1 maio 2022.
LAURENT, É. “El psicoanálisis y la crisis del control de la infancia”. Intersecciones Psi. Revista Eletrónica de la Facultad de Psicología. n. 43. 2012c. Disponível em: <http://intersecciones.psi.uba.ar/index.php?option=com_content&view=article&id=157:el-psicoanalisis-y-la-crisis-del-control-de-la-infancia&catid=15:actualidad&Itemid=1. Acesso em: 5 maio 2022.
LAURENT, Éric. “La época del Sinthome”. Transmitido ao vivo em nov. 2019 pelo canal UBApsicologia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wuDkFM9ZrWo. Acesso em: 5 maio 2022.
MALEVAL, J.-C. “Transtorno del neuro-desarrollo: un forzamiento epistémico-politico”. Lacan Quotidien. n. 932. jun. 2021, p. 15-24. Disponível em https://www.wapol.org/es/global/Lacan-Quotidien/LQ-932-BAT.pdf Acesso em: 5 maio 2022.
MILLER, J.-A. “La escuela de la tolerancia”. Lacan Quotidien. n. 930, jun. 2021. Disponível em: http://www.eol.org.ar/biblioteca/lacancotidiano/LC-cero-930.pdf. Acesso em: 5 maio 2022.
SCHOVANEC, J. Yo pienso diferente: el extraordinario testimonio de um genio autista. Madri: Ediciones Palabra, 2015.
[1] Texto apresentado no Núcleo de Investigação e Pesquisa em Psicanálise com Crianças da Seção Clínica – IPSM-MG, no dia 11 de maio de 2022.