CAMILO RAMIREZ
LOUISE BOURGEOIS, HANGING (TO LIFE) ON A THREAD 2002.
“(…) o sujeito só pode de fato centrar seu desejo se opondoao que chamaremos de uma virilidade absoluta (…)”JACQUES LACAN, O Seminário, livro V: as formações do inconsciente.
As encarnações da virilidade, desde o começo do século XX até os dias de hoje, conheceram variações surpreendentes e particularmente instrutivas para a psicanálise, sobre as diversas maneiras de representar os semblantes da exibição masculina. Desde o imponente Rudolph Valentino em O filho do sheik até o magricela Adrien Brody como herói improvável em Viagem a Darjeeling, de Wes Anderson, estende-se uma robusta galeria adotando, tal como um camaleão, as cores com as quais cada época erige a figura que supostamente um homem deve ser. Embora ambos sejam generosamente providos de espessas sobrancelhas que vêm recobrir um olhar melancólico, o que cada um consegue arrancar como suspiros femininos no início dos últimos dois séculos revela as transformações em relação às representações da virilidade, desde a entrada na modernidade industrial até o panorama atual, de um mundo que tenta, tanto quanto possível, não negar mais sua feminização triunfante, buscando, ao mesmo tempo, fazer o luto da suposta consistência dos ‘verdadeiros homens’.
Não existem mais homens… desde sempre!
Tanto para o sociólogo quanto para o historiador, a virilidade se conjuga no plural, pois ela corresponde a várias “construções sociais dos atributos masculinos”, como afirma Jean-Jacques Courtine em História da virilidade (2011), formidável percurso em três volumes que ele dirigiu com Alain Corbin e Georges Vigarello. Essa obra é atravessada por um fio condutor: os semblantes da virilidade são sempre erigidos num contexto de angústia de impotência e de recusa da feminilidade[1].
Um primeiro fato de estrutura surpreendente emerge de nossa leitura: trata-se da constatação segundo a qual o sintagma contemporâneo, conhecido pelo nome de ‘declínio da virilidade’, já teve o privilégio de ser o diagnóstico de civilização mais atual por vários períodos da História. Uma inquietação que data do início dos tempos parece impelir os falasseres a lançar um grito de alarme, de modo recorrente, para denunciar que os homens não se moldam mais pelos significantes-mestres que comandam sua época. Assim, numerosas são as épocas em que sopram ares de pânico ao ver os homens se distanciarem das insígnias imputadas à virilidade, oscilando entre um ‘demasiado’ e um ‘não o suficiente’ assim que são avaliados à luz daquilo que os ideais ditam sobre como um homem digno desse nome deve se comportar na existência.
Tão numerosas quanto apaixonantes, as escalas do percurso detalhadas por J.-J. Courtine (2011) são instrutivas em vários sentidos, e poderemos abordar, aqui, apenas algumas delas. O declínio do Império Romano viu seus cidadãos serem invadidos pela nostalgia da austeridade dos homens da Primeira República. A passagem do século XVI ao século XVII não se produziu sem despertar alguns pavores no momento em que o refinamento do duelo do homem da corte e suas maneiras artificiais substituíram a armadura do impetuoso cavaleiro. O operário robusto de ombros largos, do couro endurecido pelo sol da segunda metade do século XIX, foi substituído nas tarefas mais árduas por pesadas máquinas. Esse progresso não deixa de provocar uma deflagração a partir da qual ele teme, tal como o vapor invadindo os céus da revolução industrial, que seu estofo vigoroso desapareça como fumaça. Enfim, foi no século XX que a “prova de fogo” deixou de ser o alto forno no qual se forja a virilidade (COURTINE, 2001, p. 9). No lugar da velha equação entre virilidade e heroísmo guerreiro oriundo do ‘todos iguais’ diante do pavor da Primeira Grande Guerra, virá responder o fascismo com sua versão delirante do viril, aquela dos corpos exaltados da raça dos mestres, avançando como um só homem (CHAPOUTOT, 2001).
Para J.-J. Courtine, se existiram sempre discursos sobre o viril, o peculiar do século XX, é que ele conhece “movimentos conscientes e combinados para desconstruir o mito da virilidade” (2001).
Dessa longa cadeia de substituições, em que os floretes delicados substituíram as pesadas lanças dos torneios, J.-J Courtine (2001) extrai uma tese que nos interessa: “Cada grande transformação histórica produz esse sentimento de desperdício viril”. Aqui, escoa um temor que profetiza ciclicamente a iminente extinção da espécie. Difícil não apreender aqui o indicador de um real – aquele da presença do menos phi (-φ) constituinte de toda virilidade – se desnudando no momento em que os semblantes que recobrem a falta constitutiva vacilam com a chegada de significantes novos. Aqui está, portanto, um ponto impressionante que ilustra de maneira surpreendente uma outra tese, de Jacques-Alain Miller (2011): “A virilidade repousa sobre essa obturação da castração fundamental de todo ser falante marcado menos phi (-φ) por um pequeno a[2].
Retratos de homens na tela do cinema
Desse caleidoscópio proposto pela História da virilidade, vou desenvolver um só tópico, o das metamorfoses de figuras de homens mostradas nas telas da história do cinema. Essas representam um rica fonte de ensinamentos, principalmente sobre as diversas amarrações que dão à virilidade sua armadura segundo as épocas. A captura exercida pela sétima arte faz ressaltar a tensão própria da estrutura da virilidade: o que se edifica como poder de sedução do imaginário vela e desvela, ao mesmo tempo, uma série de variações surpreendentes; esse ponto real preliminar a toda vestimenta fálica que é a castração, fazendo surgir, do lado simbólico, nomeações, sempre ilusórias ou mesmo efêmeras, do ser masculino. Se a primeira metade do último século é a da virilidade que se confunde com o uniforme, seja ele legionário, aventureiro ou forzuto[3] (DE BAECQUE, 2011, p. 225) bigodudo, instalando-se invariavelmente sob o signo do irrepreensível e de uma coragem que não recua diante de nada, a segunda metade é bem mais interessante, pois ela consente em deixar emergir, pouco a pouco, uma outra representação da virilidade, daí para frente marcada pela incompletude e não temendo mais mostrar seus laços mais íntimos com a falta e com a verdade mentirosa. Os trabalhos do historiador Antoine de Baecque (2008) sobre a virilidade no cinema, principalmente a respeito da Nouvelle Vague, desenvolvem um trajeto apaixonante sobre a questão e constituem nosso ponto de apoio para delimitar, de um modo singular, uma temática cara à psicanálise.
A partir da Segunda Guerra Mundial, os heróis masculinos do cinema se mostram cada vez mais marcados por algo que rompe com uma harmonia, mantendo relações pouco nítidas com a lei: eles são meio heróis, meio bandidos. Erguendo-se diante da vida sobre muletas que mancam, são solitários melancólicos, rabugentos mal-barbeados e mal-lambidos que exercem um poder de fascinação intimamente ligado a esse modo de deixar aparecer o peso que arrastam pela existência. Se Anthony Quinn não encarna totalmente uma figura da sedução em A estrada da vida, de Federico Fellini, nos lembraremos principalmente do homem, por trás do bruto estúpido, que chora sua angústia diante do mar Mediterrâneo.
Esse movimento já havia acontecido com Humphrey Bogart em Casablanca. Seu fraseado é seco; sua voz, rouca e, embora esta última não trema na pista no momento em que ele deixa partir sua amada, a emoção causada por essa cena mítica reside inteiramente no surgimento do objeto que se desprende, esse pequeno a levemente velado que desponta na luz sombreada do olhar, “here’s looking at you, kid”, objeto de uma insondável extração que se lê na firmeza do ato. É um consentimento com a perda que leva em conta um real a ser alcançado e que dá ao ato seu aspecto límpido. Assim, o cinema ultrapassa um limiar em que virilidade e assunção de um ponto de castração não são mais incompatíveis.
Depois da guerra, a vacilação da figura do grande Outro e dos ideais que o sustentavam como alicerces se reflete na representação do viril, diminuindo-o, por sua vez. A figura do belo homem dá lugar a uma mistura de despreocupação e de rebelião, em que os heróis não aparecem mais em um dia triunfante, tampouco seu destino é particularmente feliz. Marlon Brando e James Jean, com um palito ou cigarro na ponta dos lábios, casaco de couro nas highways e camisetas justas sobre corpos musculosos (DE BEACQUE, 2001) – todos esses atrativos que despertam os olhares e que os constroem como fetiches nas telas do cinema não conseguem ocultar, sob a fúria, a dor de viver. Assim, a captura exercida pela animalidade decidida de M. Brando como Stanley Kowalski em Um bonde chamado desejo é solidária porque nos faz testemunhas de seu destino impiedoso. E o fenômeno que faz de James Dean um mito, quando ele dá vida a Jim Stark, em Rebelde sem causa, deve muito a essa encarnação de uma virilidade que deixa aparecer uma fragilidade, ou mesmo um desespero, através do qual toda uma geração de homens pode, enfim, se reconhecer.
Marlon Brando, filmado por Elia Kazan em Sindicato de ladrões, permanecerá como a própria presentificação de uma nova versão da masculinidade, em que o herói, sem arestas, é substituído pelo homem atormentado, torturado internamente. A réplica francesa do duo americano mítico ficará a cargo da Nouvelle Vague, nas mãos de Jean-Paul Belmondo e Jean-Louis Trintignant, entre outros que, representando uma ‘hipermasculinidade’, permitem o reconhecimento de uma “virilidade do desespero” (DE BAECQUE, 2001, p. 460).
Virilidades da luz, virilidades da sombra
Apaixonado desde a infância pelos westerns de qualidade, a leitura de A. De Baecque (2001, p. 453) sobre as declinações viris do cowboy, essa “virilidade monolítica e solitária”, me impactou a ponto de querer desempoeirar esses encontros cinéfilos que me marcaram. Para ir diretamente ao ponto, digamos que há também, nesse registro, uma virada em que esse ícone tão caricatural do viril, mesmo conservando suas insígnias, começa a se despojar dessa resistente retidão masculina, que fazia com que esse homem empurrasse, sem medo, as portas vai-e-vem dos piores saloons do velho Oeste. Fazemos, assim, subir ao palco homens crepusculares cuja bravura não oculta mais o estreito fio que os une à vida. De Baecque mostra essa transformação por meio de uma bela fórmula, dizendo que são estes “os primeiros heróis desses desdobramentos do positivo em negativo, do puro em impuro, de uma virilidade da luz em uma virilidade da sombra (2001, p. 455)”.
Nessa antecâmara da pós modernidade, o estatuto do Outro conhece suas primeiras fissuras; a segurança de John Wayne, Gregory Peck e Burt Lancaster desaparece progressivamente por trás da silhueta frágil e emocionante de James Stewart, um pequeno charmoso nesse mundo de brutos, enquanto Gary Cooper, em Matar ou morrer, atravessa a cidade constatando que sua autoridade e sua imponente imagem falham em inspirar coragem aos outros homens. Nas cidades dos covardes, Cooper é essa exceção que perambula pelas ruas vazias, segurando seus Colts, engolindo a saliva, medindo a amplitude de sua solidão, enquanto os ponteiros do relógio avançam em direção a um inevitável encontro.
A vulnerabilidade viril ganhará corpo principalmente com os grandes mestres que são John Ford e Anthony Mann. Nem o olhar penetrante de Yul Brynner, nem a indolência rude de Steve MacQueen, não mais do que a resposta de James Coburn – “Não, ninguém me manda ir aonde eu não quero” –, serão suficientes para deter esse movimento de civilização, nos quais em Sete homens e um destino serão cada vez mais atraídos pela perspectiva de não mais se esforçarem para ocultar suas falhas para se reconciliarem, por menos que seja, com seu destino de magníficos perdedores.
No final do século XX, contra todas as expectativas, no momento em que se dá a passagem da pós modernidade para a hipermodernidade, Clint Eastwood (DE BAECQUE, 2001, p. 457) dá uma volta a mais nesse processo, através de dois relatos que acabam por fazer desconsistir os semblantes dessa rude virilidade à moda antiga, que ele mesmo já havia trazido para as telas de modo paroxístico, na vertente dirty, desde O bom, o mau e o feio. Diferentemente dos cavaleiros sem piedade de Sam Peckinpah, os de Clint Eastwood, apesar de se manterem no limbo, não perderam a humanidade.
Os heróis de O cavaleiro solitário (1985) e Os imperdoáveis (1992) estão envelhecidos e cansados. Eretos em seus cavalos, com seus casacos desbotados, eles atravessam planícies glaciais, um pouco como El Cid em seu cavalo, mais mortos do que vivos, já que, em um nowhere land, um último combate os espera. Moldados por lutos, eles têm sempre a coragem como fiel companheira, mas não em todos os campos; eles desistiram, há muito tempo, de se meter com o terror do desejo feminino. Eles têm a palavra direta daqueles que conhecem um pouco sobre o real que está no centro de toda vida, mas, contrariamente ao analisante, que reconhece essa zona sem garantia e sem lei, nenhum entusiasmo conduz seus passos. E, no entanto, esses riders mumificados nos fascinam; essa virilidade seca feita de silêncios e de mistérios, para sempre indecifráveis, exerce um poder de sedução evidente. Muito cedo, ao amanhecer, sem nenhum Outro como testemunha, eles enfrentam, sozinhos, um real recalcitrante de rosto cruel, antes de desaparecerem bem devagar no nevoeiro. Essas últimas tomadas de horizontes desabitados, antes dos créditos finais, evocam a que ponto os destinos da deflagração fálica, no rider e no analisante, bifurcam. Penso na vontade decidida de Lacan de encontrar uma saída para o impasse freudiano do rochedo da castração, concebendo um final de análise no qual a elevação fantasmática do falo (Cf. MILLER, 2011) cessa de tamponar o furo da castração, tanto para os homens quanto para as mulheres. A experiência psicanalítica propõe uma outra saída, diferente da melancolia do cowboy pós-moderno, pois a assunção do ‘é assim’ diante da falta no Outro, longe de mumificar o corpo do falasser, o irriga com um desejo firme, que vem realçar o gosto de viver.
Esse movimento do western sombrio ganha também a literatura contemporânea até atingir um ápice de escuridão e de refinamento na “Trilogia da fronteira”, de Cormac MacCarthy. No cinema, a virilidade do westerner crepuscular se manifesta ainda hoje, oferecendo, às vezes, encarnações de exceção, a exemplo de Jeff Bridges, no remake de Bravura indômita, pelos irmãos Coen, herói que se inscreve na longa série dos cowboys mutilados, aqueles que devem continuar a viver com um pedaço do corpo literalmente arrancado. Velho, alcoólatra e cego de um olho, esse xerife se ergue no meio de moribundos para dar prova de coragem pela última vez, e seu ato é ainda mais tocante porque o homem quase não consegue se manter de pé e seu fuzil mira o lado em vez do alvo. Na grandiosa sequência final, podemos vê-lo atravessar o deserto, a galope, em uma noite estrelada, para salvar a jovem heroína de uma agonia certa, até fazer explodir o coração de seu cavalo e continuar a corrida, a pé, perdendo o fôlego, encontrando forças, não se sabe onde, para colocar um pé diante do outro. A câmera se distancia progressivamente do cavalo, antes fogoso, agora morto no chão. E é então que sabemos que a verdadeira coragem no masculino não acontece sem perda: ele é aquele que, para avançar, se apoia mais na falta, de onde seu desejo se origina, do que em seus atributos.
Destinos de uma aspiração obstinada
O futuro da virilidade no cinema e seus destinos em um trajeto analítico não deveriam se confundir, e, no entanto, um ponto de intersecção pode ser fixado. J.-A. Miller abordou esse ponto em sua aula “O Ser e o Um”, insistindo na invenção do passe, por Lacan, como uma saída para superar esse obstáculo que é a aspiração viril nos dois sexos, tal como Freud o formalizou em “Análise finita e análise infinita”. Christiane Alberti retomou essa problemática recentemente, apresentando, a respeito do destino da função fálica depois do final da análise, que esse falo
enquanto significante que falta ao Outro, é intransponível. Ele não designa nenhuma singularidade triunfante. A esse respeito, o psicanalista fica à parte, não a partir de uma identificação, nem de um traço de exceção, mas da destituição de sua virilidade (ALBERTI, 2016, s/p.).
Estamos interessados, aqui, em alguns retratos de homens no cinema que revelam o quanto a virilidade depende de uma construção fantasmática, deixando advir versões modernas nas quais o que prevalece não é a elevação fálica, mas uma certa separação do objeto que vem tamponar a castração. Desde então, não nos surpreende que as figuras de homens que se destacam, aquelas que nos tocam e permanecem, sejam aquelas nas quais percebemos um modo de compor com o menos phi (-φ).
Nas telas do século XXI, a grande noite do cinema continua com uma nova galeria de homens advertidos sobre a falta: Vincent Gallo, em Tetro, não encontrará a firmeza de sua escrita sem antes ter enfrentado perdas sem nome; Joaquim Phoenix, em Amantes, vacilando, decide viver deixando cair uma aliança nas areias de Coney Island enquanto, em algumas tomadas sublimes, a virilidade retraída de Gaspar Ulliel basta para eclipsar a virilidade caricata do personagem interpretado por Vincent Cassel em É apenas o fim do mundo. Diante dessa infinidade de maneiras de reconhecer sua própria vulnerabilidade, ficamos, como nunca, perturbados.