HEBE TIZIO
O presente trabalho toma como ponto de partida a desregulação dos corpos na escola e em outros espaços educativos como decorrência da mudança das coordenadas que organizavam esse espaço e a consequente perda da função educativa. Nesse sentido, tomam-se esses problemas como sintomas sociais na medida em que assinalam uma disfunção no mencionado aparato educativo.
Isso não implica esquecer a determinação individual que se encarna em cada sujeito, e, nesse sentido, deve-se estabelecer uma diferença entre sintoma social e sintoma subjetivo. O sintoma social dá a aparência de homogeneidade e é aí nesse ponto que devemos isolar o singular de cada caso para desagregá-lo do conjunto.
Para desenvolver o tema proposto, buscou-se lançar sobre o assunto um olhar retrospectivo, a fim de verificar o que se conhecia sobre ele no passado e constatar o que se concebe a seu respeito no presente, com vistas a apresentar algumas propostas para sua abordagem.
Retrospectiva
Tradicionalmente, a escola necessitou de corpos regulados para poder levar adiante seus objetivos curriculares. Porém não só se tratava de que a criança tivesse alguns hábitos adquiridos que lhe permitissem ficar tranquilamente sentada em sua carteira. A escola sabia que, para manter essa regulação, era preciso desenvolver um trabalho permanente, e isso se atingia, por um lado, por meio das mesmas aprendizagens e, por outro, por intermédio do controle disciplinar.
Tome-se como exemplo a leitura. Nela, a pontuação determina que, se há uma vírgula, deve-se fazer uma pausa, ou, se se depara com um ponto e parágrafo, isso implica que se deve dar uma parada mais demorada e lançar um olhar para o mundo. Com base nessas determinações se observa que a respiração, a voz e o olhar são afetados pela leitura em um esforço civilizatório sobre o pulsional. A partir dessa perspectiva, pode-se entender a leitura como uma regulação desses objetos pulsionais, a fim de poder entender o texto. Se isso não se realiza, não se entende o que se lê, e muito menos os ouvintes compreendem o que se deseja comunicar.
Na escola do passado, a disciplina se encarregava de reduzir o que resistia e se sustentava em uma autoridade reconhecida como tal porque se assentava no valor do saber que prometia um futuro. A regulação se dava, então, pelas vias do interesse e do castigo.
Progressivamente, esse exercício foi abandonado em função das mudanças sociais que se produziram. A regulação do corpo pelos métodos tradicionais passou a não mais funcionar. A disciplina, no sentido kantiano, como regulação do capricho, não se exerce em um mundo que promove o consumo e, portanto, o apetite desmesurado. E também porque a oferta educativa não se utiliza mais para esse fim, e o ideal do esforço foi substituído pela busca da felicidade.
Insistindo nessa perspectiva clássica, cabe lembrar, ainda, a função do exercício físico como forma de cansar o corpo a fim de deixá-lo dócil para a aprendizagem. Sabia-se que as crianças deviam cansar-se para depois poderem aprender e então descansar, dormindo as horas necessárias. A escola era considerada o lugar de trabalho da criança, e o jogo, um dos entretenimentos no tempo livre. Sobre esse ponto, Hannah Arendt escrevia, referindo-se à crise da educação nos Estados Unidos, que a distinção entre jogo e trabalho foi apagada a favor do primeiro como uma forma insidiosa de promover a infantilização, já que isso não prepararia para o mundo adulto.
É verdade que um mundo que não pode oferecer muitas oportunidades laborais se volta cada vez mais para o entretenimento como forma de controle social. O notável, nesse ponto, é que se conta com o consentimento dos controlados, pois o entretenimento engata bem com o ideal de felicidade. Observa-se, assim, uma promoção do apetite em oposição ao trabalho, e a pergunta é como se produz a abertura ao desejo, pois, na perspectiva freudiana, a proibição era estruturante, nesse ponto.
Se aqui se faz referência a essa escola é porque, hoje, as formas de regulação que a sustentavam e as que lhe davam autoridade se modificaram. Não se remete, com isso, à escola da brutalidade, do castigo, mas à dos últimos 30 anos, que quis retomar suas raízes de renovação pedagógica e introduziu o consenso como forma de trabalhar a disciplina. Não se trata de nostalgia, mas de verificar como uma instituição criada sob determinadas coordenadas de funcionamento, hoje, tem dificuldades de cumprir seu encargo frente às mudanças operadas. Essa escola renovada necessitava de um corpo que respondesse ao que se entendia por solidariedade, um corpo que se tentava regular com os “bons modos” e a palavra, a realização de atividades conjuntas e o interesse.
Aquilo que a escola não pôde regular foi expulso para as redes de exclusão social, e foi aí que a educação social encontrou seu campo e onde se colocam interessantes questões para a psicanálise aplicada.
Miscelâneas
a) Hoje, aparecem, na escola, os corpos chamados hiperativos, o corpo ameaçado ou maltratado no que se conhece como bullying, os corpos anoréxicos, as bulimias, os sobrepesos, as drogas… Sintomas que produzem sujeitos pouco dispostos à aprendizagem porque a dificultam. Além disso, o encargo social que se atribui à escola aumenta dia a dia, e, agora, ela deve-se haver também com outras tarefas, como educar para a saúde, a sexualidade, as drogas… Em outras palavras, ela deve regular os corpos — porém, como, se não há, hoje, espaços para o saber que é sua única possibilidade de operar? A escola vai-se inclinando perigosamente para o controle social direto dos corpos e para um futuro de administradora de fármacos, como já acontece nos Estados Unidos.
Se se passeia pelas cantinas escolares, pode-se verificar as dificuldades existentes em relação à alimentação. O que as crianças de hoje querem comer? Batatas, pizzas, macarrão… e a famosa dieta mediterrânea se transforma em medicação… Fala-se muito sobre educação para a saúde, mas, em geral, nas cantinas, vigora a economia, que se esconde, às vezes, por trás do capricho da criança, pautando-se por ele as propostas de cardápios.
A alimentação carrega as marcas da época, mais precisamente, as formas de comer. A geração dos pais dessas crianças da atualidade devia comer de tudo que se punha no prato, porque nada se podia descartar, sobretudo se se pensasse nos que não tinham nada para comer, as crianças famintas do mundo, as crianças das guerras. E se forçava a comer, não importava o tempo que demorasse a criança em amassar o bolo que fazia com a comida em sua boca, acabaria engolindo. Hoje, basta observar os pratos para perceber que a desconstrução da comida é uma nova vertente que se apresenta, e, à diferença dos cozinheiros famosos, os sujeitos de hoje produzem restos. A decomposição da comida nos elementos que a compõem deixa uma coroa de restos, ao redor do prato, e um vazio central.
Não se trata de apressar-se em tapar esse vazio com o significante anorexia, mas de interrogar-se sobre sua função. Por que não pensar em formas de recusa difusas frente a um “demasiado cheio de porcaria”, como dizia uma menina. Pois isso é, muitas vezes, a comida das cantinas escolares.
Poder-se-ia fazer um novo estudo sobre as particularidades do gosto em um momento em que tudo “sabe” igual, e isso as crianças o sabem, pois saber e sabor se homogeneízam cada vez mais e por isso se recusam. A atrofia do paladar gera recusas ou ingestão indiscriminadas porque se perdeu a bússola do prazer que leva ao objeto oral. É curioso que hoje seja o mercado o que trata de “educar” o gosto, ou deveria dizer: colonizá-lo para o consumo? Observa-se que, cada vez mais, são abertos cursos de “degustadores” de vinho, azeite, chocolate, águas!
Na prática, o não comer se modaliza de diferentes formas. Pode-se tratar de um “comer nada” que funciona em relação ao Outro. Esse objeto “nada” é produzido como anulação simbólica do objeto real. Nada como resposta ao excesso. E esse nada é muito ativo, hiperativo, às vezes, e tem, especialmente quando se trata de comportamentos transitórios, a função de uma recusa facilmente situável.
Pode-se ler também como uma luta para não desaparecer como desejante. O esmagamento na satisfação mata o desejo, e, por isso, há discordâncias. Os imperativos sociais atuais têm a força de uma demanda insaciável: consuma! E o excesso de objetos extermina o desejo, produzindo um tipo de “anorexia generalizada”. Não é casual que a metade do mundo morra de fome e a outra metade de excesso, e que isso se sintomatize nos transtornos da moda. Sem dúvida, existem diferentes formas de relacionar-se com a comida, porém todas encarnam modos de tratamento do objeto e do vazio.
b) A escola se apoiava na família, que lhe dava crianças disciplinadas, com hábitos adquiridos e necessidades atendidas, e, além disso, dava suporte nas tarefas para casa, sustentando e fixando as aprendizagens… Hoje, essa relação se inverteu, e à escola se solicita, em muitos casos, que seja o suporte da família. A família mudou, e isso repercute na forma de alimentar-se, nos hábitos e costumes, nas horas de sono, produzindo efeitos sobre os corpos.
Isso mostra que, na realidade, muitos desses sintomas em adolescentes — que costumam aparecer de maneira muito espetacular — constituem apelos à regulação, no momento em que se dá o encontro com o gozo sexual.
Os “meninos do garrafão”ii ocupam a rua para mostrar a conformação de um particular objeto oral que coloniza um espaço que não é seu e no qual deixam, por essa via, suas marcas. Não se trata de judicializá-los nem de dar tanto espaço a tertulianos que pregam o pior sobre eles. Deve-se oferecer a eles lugares habitáveis que sejam capazes de regular ao seu modo. Os jovens de hoje se queixam de que não podem aceder a certos lugares por falta de recursos. Por acaso, o incipiente movimento pela moradia não diz algo sobre isso? Esses jovens sabem que correm o risco de transformar-se em resto social e contra isso lutam, ainda que, às vezes, de maneiras confusas. Não querem ser o resto no prato dos políticos neoliberais.
c) Hoje, pode-se ver que, por detrás da promoção da imagem do corpo, há uma profunda recusa do mesmo. O individualismo crescente e a solidão que dele deriva não expõem as palavras que são o caminho necessário para o encontro com o outro. O celular, que é o parceiro da moda, cada vez menos é usado para falar. Mais além da economia nas contas telefônicas, “fazer uma perdida” é quase um modelo de comunicação: a comunicação com chamadas perdidas. Deve-se assinalar que o amor se nutre de palavras e que sempre operou como véu sobre o gozo para assegurar o encontro com o parceiro. A dimensão do amor aparece, hoje, modificada, o que torna, às vezes, mais difícil o contato corpo a corpo.
Miller retoma o termo de Lacan “rechaço do corpo”, porém o modaliza em diferentes aspectos. O rechaço do corpo do outro como parceiro sexual e o rechaço do próprio corpo com todos os matizes que isso apresenta, inclusive, o filho… Creio que se pode falar também sobre o rechaço pelas crianças e adolescentes e por tudo o que encarna modalidades de gozo que questionam a ordem estabelecida.
A educação fazia, pela via da cultura, esse caminho de palavras que não só agita os corpos no abraço, mas também os pacifica. Hoje, fala-se, até a saciedade, sobre a violência na escola, sem se perceber que esse problema é efeito do desanodamento da educação e da subjetividade. Quando se perde o efeito regulador da educação sobre o corpo — não pela via disciplinar, mas pelo interesse, pela curiosidade, que promove o patrimônio cultural — só resta acionar o mero controle social. A disciplina sobre o corpo não golpeia mais com palmatória. Por trás da máscara do body building e da realidade dos corpos empilhados e desnutridos nos campos de refugiados e nos cayucosiii, atinge com as distintas estratégias da biopolítica, com as quais a educação frequentemente colabora sem sabê-lo. O cool é, hoje, farmacopeia, a Supernanny propõe castigos públicos, e, há pouco, foi denunciada uma residência para menores em Girona subvencionada pelo governo suíço. Os rebeldes, encerrados em jaulas como castigo, eram tratados fora das próprias fronteiras. O modelo guantânamo se estende e pede “time out”.
Propostas
É verdade que parece haver certa tendência catastrofista quando se reflete sobre as mudanças. Tudo o que não se entende seria um anúncio potencial de “fim do mundo” e, na realidade, o é… Trata-se de um “mundo” que acaba para dar passagem a um novo, que, embora não seja conhecido, se anuncia de muitas maneiras.
A autoridade modificou-se, já se disse, porém isso não pode ser visto como uma catástrofe; trata-se, apenas, de se verificar que modelo de autoridade convém para esse novo tempo. Sabe-se que vários modelos já caducaram, mas não há dúvidas de que limites são sempre necessários. A ideia de limite tem a ver com a possibilidade de se dizer não a isto, mas sim à outra coisa. Deve-se saber que tanto o autoritarismo, como o “deixar fazer sem limite” são as duas faces do pior, ou seja, de um funcionamento superegoico. Trata-se de conceber, então, a autoridade como um instrumento que só poderá ser reconhecido se ajuda o sujeito a construir algo a que possa agarrar-se e que lhe permita, dessa maneira, encontrar o caminho do desejo.
É verdade que o saber foi depreciado, entretanto, é bastante compreensível que isso tenha acontecido porque os atuais suportes de armazenamento o mantêm a nosso alcance, sem necessidade de fixá-lo. É o que faz uma adolescente que começa a escrever em seu celular durante uma das primeiras entrevistas. Quando lhe pergunto o que ela está fazendo, diz-me que guarda algumas das coisas que foram ditas durante a sessão em um arquivo, assim, poderá consultá-lo quando quiser, sem necessidade de usar a sua própria memória. Diante disso, que tipo de saber deve-se pôr em jogo? Pode-se pensar em um saber minimalista que permita construir redes, não somente conectar-se, mas ler de link em link, gerar produtos e saber alocá-los.
Fala-se muito sobre a função do educador que “causa” o interesse do sujeito para provocar seu consentimento à oferta educativa. Hoje, isso se obtém quando se consegue descompletar, quer dizer, produzir um vazio no campo do saber, nunca se colocando em situação de demanda, perguntando à criança o que ela quer. A anorexia de saber produzida pelo excesso só pode ser tratada com um “menu degustação”, pequenos pratos variados que o sujeito pode reconstruir com seus tempos tão diferentes da pressa do sistema. É interessante apreciar a resistência pela via do ritmo lento que muitos adolescentes e crianças apresentam, não querendo ser forçados pela voracidade do tempo que a eles se impõe.
Para a construção da subjetividade, é preciso haver um desejo que não seja anônimo, e se pode dizer que essa é uma questão crucial também para a educação. Isso tem como resultado a necessidade de contar com educadores que vivifiquem a transmissão e com sujeitos que possam saborear os saberes. Assim, abre-se para cada um a particularidade de seu regime de satisfações, e isso é o que se aproxima da felicidade. Afinal, como não perceber que a tão atual busca pela felicidade aponta para o fato de que, hoje, se vive com um menos de satisfação? Os corpos sofrem, assim, pela emergência de um gozo não regulado. Por isso, as políticas repressivas são caracterizadas pelo ódio ao gozo, e a psicanálise sabe que, se o gozo é atacado diretamente, produz-se a transferência negativa, em termos atuais, instaura-se a violência. O gozo deve envolver-se com palavras, interpelar-se com semblantes, distender-se com jogos e esportes, ressoar na música, e, ali, o sujeito elegerá, a partir da temática fantasmática, a que porto se atar, com que meios, sintomaticamente, se sustentar.