PATRICK MONRIBOT
Ela se lembra de um detalhe que considera “divertido”. Ela designa sistematicamente seu analista pelo apelido de “Senhor X”, um hábito que faz rir seus amigos. De que se trata, de uma descrição indispensável, ou de um mistério intrigante? O status desse anonimato é revisto quando seu analista lhe pergunta “Mas enfim, quem é esse X?” (Qui est sous ce X). Inesperadamente, suas lágrimas correm. Mas ela entendeu “Qui est-ce sous X” (“Quem não foi registrado e dado anonimamente à adoção?”)[i]. Atônito, ouço, depois de vários anos de análise, o que foi até então um segredo absoluto, ela pariu um bebê sem registrá-lo (“sous X”) e entregou-lhe para adoção. Ela disfarçou sua gravidez engordando, ninguém viu nem percebeu nada, nem mesmo o homem com quem então dividia sua vida. Ela se justificou com vários argumentos, como o da sua pouca idade, o conhecimento tardio da gravidez, a provável agressividade do parceiro violento, a certeza de que seria desaprovada por sua família argelina, que não aceita gravidez antes do casamento… Em suma, foram muitas explicações relevantes que não esclareciam o enigma de sua escolha, ainda mais porque, posteriormente, solteira, ela teve duas crianças de parceiros diferentes, sem ter se preocupado demais. Duas crianças que, por sinal, não se traduziam na presença de um laço: “É difícil ser mãe”, dizia ela, “sou uma sem-família.”
Vie perdue
O segredo revelado, a confrontação da palavra precipita sua divisão. “Não é um abandono”, disse ela. “Aliás, como poderia abandonar uma criança que não reconheci?” A observação é justa – o procedimento do abandono não é esse do “sous X” – mas ela não se ilude com seu enunciado, pois foi ela quem introduziu o significante “abandono” em sua análise. A palavra desvela o pensamento e, o que ela falou, fica falado. Uma certa versão significante do caso a captura em seu caminho. Posteriormente, é ela quem aparece – no plano da fantasia – como a criança abandonada! No entanto, há mais do que a ficção para se coser. Ela desenha os contornos de uma outra dimensão, a do objeto. Com as sessões, essa criança se constitui menos um objeto abandonado do que um objeto perdido. Perdido no sentido freudiano do termo, pois essa menina – da qual se conhecia apenas o sexo – lhe foi “roubada”, “extraída de seu corpo”, dentro do procedimento clássico, anestesiada, antes mesmo de tê-la tido como sua, antes mesmo de tê-la visto, conhecido e reconhecido. Na fórmula apresentada originalmente, “elle est perdue de vie” [ii], perdida à vida, cuja tradução “ela não está na minha vida, eu não estou na sua.” A temporalidade é um elemento notável dessa análise, visto que a criança se torna uma perda dezoito anos depois e não na ocasião do nascimento. Sessão por sessão, ela passa de um fato inicialmente chamado pudicamente de “a coisa” – se referindo à gravidez e ao parto escondidos –, um objeto perdido, mas perdido après-coup. É o início de um luto estranho que se resume em uma frase: “Posso perder o que nunca tive?”.
tchau [au revoir]
Essa perbolação necessita de análise. A construção de seu romance familiar supõe uma versão do pai. Ela não fala quase nada de sua mãe – que hoje vive na França separada do marido –, apenas em termos de devastação, assim como dos seus irmãos, apresentados como metonímia do ódio materno. Desde seu nascimento, a mãe decepcionada briga com ela por conta da cor de sua pele, que julga muito escura, pois mais para negra, ela manchava a família. O pai aposentado voltou para a Argélia, onde refez sua vida. Ela se lembra de algo essencial, quando criança e ainda estava no Magrebe: ela acreditou que seu pai tinha lhe abandonado, um traço selado, digamos, no fantasma. Numa certa manhã, ele já não estava mais no vilarejo. Sua mãe era um túmulo, nunca lhe deu qualquer explicação, vivia essa forma opaca de gozo. Na verdade, o pai decidiu emigrar para sustentar sua família, não para a destruir, o que ela só soube depois, quando foi à França para se juntar a ele. Assim era a pintura historicizada. Ela me anunciou uma descoberta, que o traumatismo é menos da partida do pai que do seu silêncio. “Ele foi sem me dizer tchau”. Interrupção imediata da seção, curta, nesse dia, para pontuar o dito silêncio paterno, mas com um ato preciso, eu lhe disse “tchau” insistentemente. A sessão seguinte será ainda mais curta, pois antes mesmo de entrar na sala, ela se confunde e me diz “tchau” no lugar de bom dia. O lapso me obriga, eu a tomo ao pé da letra, a conduzo à saída, ela ri, ela chora e consente em pagar. A primeira sessão é uma pontuação sobre o significante “tchau” – ela lhe dá consistência –, a segunda é um corte no significante – ela o desconstrói –, indicando a continuação. Como continua?
Perdu de vue
O significante “tchau” [au revoir] se difrata e toca o real. Primeiramente, ela decide contactar o pai depois de muitos anos, “perdu de vue”. Eu aprovo. Ela vai revê-lo [revoir] num canto perdido da Argélia, pouco antes da morte do velho, e lhe apresenta suas duas crianças. Quando ela volta, comenta: “É a primeira vez que minhas crianças vêm um pai.” Não será a última, pois ela tece um laço inédito entre elas e seus pais respectivos, que eram até então simples genitores afastados pelas brigas. Mais ainda, ela passa a guarda do caçula ao pai, que já a tinha pedido. “Esse arranjo não é um abandono”, diz ela, “não sou menos mãe por isso, pelo contrário!” Ela tem razão: não fala mais de sua impotência “de ser mãe” e constitui pela primeira vez uma família, mesmo que decomposta. Uma família ao avesso, de certa maneira…
Outro efeito das duas sessões curtas: a questão do pai “perdue de vue” se encadeia a essa da menina “perdue de vie”. Ela a encontrará também? Aliás, ela realmente quer?
Interrogar assim seu desejo – ela realmente quer? a divide e faz surgir o objeto pulsional no princípio de sua divisão. Um dia na televisão, ela acredita “reconhecer” [sic!] essa menina nunca vista, por conta do olhar particular de uma jovem figurante mestiça sobre o palco. É o mesmo olhar inesquecível que esse de seu próprio pai. Nenhuma certeza, mas… e se for ela? Desde então, o objeto escópico invade a cena analítica e dará à transferência seu gosto especial. É o momento escolhido para que ela deite no divã.
O objeto a – o olhar – surge de trás da criança desconhecida e não é o objeto perdido freudiano. Através do pai morto que ela não verá novamente, através da menina nunca vista, pelo analista agora subtraído do seu campo de visão, um olhar aparece, com todo seu peso, colorindo a transferência: “Não vejo se você me vê”, diz ela deitada no divã, exacerbada.
Bricolage [iii]
Refazendo os laços com a série dos pais, ela abre mão do gozo de ser uma sem-família. Certamente a partir de onde ela estabelece um laço mínimo com sua mãe, que aceita, enfim, receber seus netos… Viável por uma devastação temperada. Sim, uma família torna-se possível para ela, mas sob fundo da perda do pai, do caçula que se vai e da criança sous X, que não voltará jamais. A possibilidade de fazer família existe então a partir de um objeto perdido – a criança – e a partir de um objeto de gozo reencontrado o olhar. “Essa família”, diz ela, “é feita com o que se encontra pela frente, é puro bricolage!” Assim seja. Mas haveria, para quem quer que seja, uma família que não seja bricolada? De fato, a composição não é realmente edipiana, apesar do reencontro do amor pelo pai morto. Não que essa jovem esteja em uma foraclusão psicótica do Édipo, mas a família que ela está recompondo não obedece a uma lógica edípica clássica. O declínio da função paterna próprio à nossa época se destaca nessa família desenraizada e devastada. O único arranjo lhe permitindo tecer um possível laço se obtém a partir do gozo. Saber lidar com os modos de gozo de cada um foi o grande progresso de sua análise, percebido no seu “reatamento” familiar tão pouco tradicional. Daí a dúvida dessa formação composta que se chama família. Uma família claudicante que constrói atualmente a fundação de sua queixa: está sempre ruim! Em outras palavras, ela construiu um sintoma.
Qual é a alquimia desse enlaçamento? O primeiro ingrediente é a criança impossível. “Sous X” lhe aparece como nome do real. “Não conheço seu nome nem seu sobrenome”, disse, “não imagino como ela é. Um dia eu disse ‘minha filha’, mas soou falso. Não tenho as palavras pra falar dela. É isso mesmo, o ‘sous X’!” Sobra apenas um olhar efêmero e suposto, efetivamente um verdadeiro resto, em um oceano de perdas. Esse é o outro ingrediente do caso, a pulsão escópica emergindo no contexto da análise.
O que nos ensinam as medidas dessa análise ainda em curso? Uma sequência lógica está se desenhando. Partimos de um puro gozo silencioso, ligado a esse da mãe. A confissão “da coisa” leva a forjar um objeto perdido sobre um fundo do qual aparece um mais-de-gozar, o olhar. Ela pode então se proclamar mãe e constituir uma família hoje sintomatizada. Para se produzir cada etapa, precisou de uma intervenção, um ato do analista – isso não acontece por si só. Observamos, enfim, o seguinte deslocamento: a opacidade do gozo materno deu lugar a um gozo pulsional, escópico, no caso. Apenas os desfiles transferenciais da demanda permitem pacientemente aferir tal objeto. Como resultado, a devastação e a errância do “sem-família” se atenua em proveito de uma vida sintomática “em família”.
Esperança
Então, esperança no epílogo? Questão recente e dolorosa: ela colocará uma carta na pasta DDASS[iv] dessa menina, quando, segundo suas palavras, a lei lhe permitiria acesso à menina até que ela completasse seus 18 anos? Depois disso, ela supõe, sua escolha será irreversível, e o prazo termina em cinco semanas. Suspense… Me informei e ela se enganou, a criança pode consultar seu arquivo depois de seus 18 anos, mas não há prazo para que a mãe possa deixar um traço que lhe identifique. Esse engano grosseiro – e que engano! – indica bem um impossível, verdadeiro ponto de exclusão de onde se inicia um novo círculo não muito redondo de uma família recauchutada. Essa criança nascida sous X não pode ser reavida. Oh! Ela não renuncia ao arquivo de sua filha, é verdade, mas atarda a possibilidade de dar um sinal, apesar da pressão dos amigos, agora informados da existência de sua filha.
“Devo ou não fazer?” Não é assim que ela se coloca a questão. Ela não cede às pressões do supereu e aposta na análise para esclarecer seu desejo, ainda opaco, para tomar a decisão na hora certa. Por enquanto, ela mantém o X. O caso continua…
[i] A expressão francesa sous X designa o parto onde o recém-nascido não é registrado pelos seus pais e entregue a uma instituição para adoção. Os pais têm o direito de permanecer anônimos. A criança não guarda laços de filiação com seus genitores e não recebe o sobrenome deles. Ver mais a respeito no serviço de informação do governo francês: https://www.service-public.fr/particuliers/vosdroits/F3136 (acesso em 13/12/2016)
[ii] Perdue de vue, com um “u” est a fórmula francesa corrente que literalmente se traduz por “perdido de vista”, ou sem contato visual, de tão longínquo. A expressão “Perdue de vie” é construída pela paciente e se traduz literalmente por “perdida de vida”.
[iii] Termo francês que designa trabalhos realizados sem um projeto previamente estabelecido, com ferramentas limitadas, e que não são fabricadas especialmente para as funções específicas de um projeto. Foi introduzido como conceito na história das ciências humanas por Claude Lévi-Strauss, (La pensée sauvage, Plon, 1962, Paris). Essas condições fazem Lévi-Strauss opor o bricoleur ao engenheiro.
[iv] Direction départementale des affaires sanitaires et sociales é a extinta instituição à qual se atribuía a função social do cuidado com as crianças.