JOSÉ HONÓRIO DE REZENDE / GIULIANA ALVES FERREIRA DE REZENDE
IMAGENS: ÁREA DE SERVIÇO
CURA – CIRCUITO URBANO DE ARTE
BELO HORIZONTE
O termo ‘campo de distorção da realidade’ foi usado em 1981 por Bud Tribble, da velha guarda da Apple, para se referir ao poder pessoal de Steve Jobs de encantar as pessoas pelos seus projetos (ISAACSON, 2011, p. 135 e ss.). A ideia que passa é a de criação de uma nova realidade a partir de elementos de razão cuidadosamente apresentados. Identifica uma lógica que se impõe naturalmente. Define comportamentos, gostos, sentimentos e desejos. Significa a criação de uma nova realidade, em determinado contexto de tempo e espaço. Mas é uma realidade planejada, controlada. Daí a ideia de distorção.
A teoria pode ser aplicada a todos os campos em que a argumentação se apresenta como ferramenta necessária. Todos os campos que exigem convencimento para determinar atitudes constituem espaço para a sua aplicação. Pode-se dizer que mistura lógica com sentimentos. Por isso o enorme potencial de alcance que projeta. É o convencimento pela sedução.
A sua aplicação ganha terreno farto nas ciências argumentativas. E o Direito é campo natural para sua aplicação. De natureza dialética e marcado por grau de indeterminação que possibilita a apreciação de qualquer argumento, o direito pode se dizer livre para construção (BUSTAMANTE, 2013, p. 275-276).
Cada tempo, cada povo estabelece as suas regras segundo o que melhor lhe convém. Essa é a Humanidade indispensável ao estudo do Direito (GROSSI, 2006, p. 7). Por isso não se pode estudá-lo sem que se lance mão do recurso da história, da filosofia, da sociologia, da antropologia, da psicologia social e da psicanálise.
Cada uma dessas ciências, na verdade, investiga o ser humano, o seu fazer, individual ou coletivo, criando, contudo, campos de realidade. Como não são ciências de fenômenos naturais, repetidos sempre do mesmo modo, a princípio, o poder de criação é total. Estará sempre em contínuo movimento, fazendo-se e desfazendo-se o tempo todo.
A interpretação das ciências mencionadas vai sempre exigir contextualidade, a fim de se aproximar com mais precisão de seu objeto, e isso também se projeta para arranjos futuros, isto é, em projeções de como poderiam se organizar. Esse esforço criativo, contrastado com a realidade, garante a sua perpétua modificação. O limite passa a ser a própria mente humana. Pode-se dizer, então, que não há limites.
Interessa-nos aqui tecer algumas considerações no campo do Direito. Num rápido movimento histórico, encontramos, aos nossos olhos de hoje, as mais absurdas barbaridades perpetradas sob o beneplácito da ordem jurídica. Matanças, escravidões e violências sexuais já foram compreendidas como comportamento natural e legitimadas pelo Direito. Tudo faz parte de um tempo que acreditamos não voltar, mas não há remédio que garanta isso. O Direito será sempre uma ordem criada pelo próprio povo.
A propósito de projeções de construções do Direito, o episódio da série Black Mirror “Urso Branco” nos faz pensar muito. Nesse episódio, o castigo psicológico não é apenas admitido. É, na verdade, um entretenimento público para toda a família, ao estilo showbiz.
Melhor compreensão do episódio não percebi do que a de ‘campo de distorção da realidade’. Para se chegar ao estágio de naturalidade com que se castiga o outro, um longo caminho de convencimento se faz necessário. Somos, por natureza, dialéticos. Pelas diferenças que exibimos, vivemos e projetamos o tempo todo. A formação de consensos sempre é um caminho árduo (ALMEIDA, 2013, p. 166). Fixado o consenso – a reprogramação de comportamento –, a adesão é impressionante. Lembro, a propósito, do filme A onda. A realidade é um campo que pode ser distorcido, e podemos não perceber essa assimetria, a depender de como tudo vem apresentado e formalizado.
No episódio “Urso Branco”, a protagonista acorda em suplício, que é renovado o tempo todo, sem descanso. A plateia também se renova. Ávidos pelo gozo, pelo prazer de assistir o sofrimento real, sem distorção.
A protagonista é acusada de coautoria de um homicídio. Ela e o namorado matam uma criança. Ela filma a cena. É presa. O namorado se suicida. Ela é punida. No sistema de punição, também passa a ser filmada num local chamado “Parque da Justiça”.
A punição adota a técnica de desconstituição do sujeito. Propositalmente, e com a ciência ao lado, retiram-lhe a memória: não sabe quem é. Não sabe onde está. Não sabe o que se passa nem por que se passa. Resta-lhe um único instinto: o da sobrevivência.
Quando a protagonista acorda, já se desespera por não saber nada de si, nada do que acontece. Movimenta-se para buscar algo e é confrontada pelo comportamento estranho de seus pares. Ninguém a toca, ninguém com ela conversa ou interage, todos somente a filmam. Os que se aproximam para interação vestem-se em caricatos trajes e a perseguem com intento de morte. Começa a fugir. Recebe uma ajuda, que indica solidariedade. Agarra a essa ajuda. Mas é uma fuga alucinada. Não sabe de nada. Não sabe o que deve fazer. Não sabe para onde vai. Segue qualquer sinal que lhe indique possível salvação. E os horrores se multiplicam. No final, a surpresa: para todos que participavam do ritual, era um espetáculo de entretenimento. Menos para a protagonista. E menos para quem assistia ao episódio.
Quando tudo é revelado, fica o choque. Começa-se então a juntar as partes do episódio, de modo a criar um ambiente de segurança lógica que permita o conforto de entender tudo. A montagem de todas essas partes vai revelando um aspecto cada vez mais sombrio do que o episódio revelava. O desconforto gerado no momento em que o episódio vai se desenvolvendo é substituído por nova tensão: descobre-se o que de fato acontecia. E aí surge então todo um espaço de reflexão. O episódio desafia a essa reflexão.
Temos então uma forma de intervenção em quem comete um crime livre. Pareceu-me que o sistema de punição daquela sociedade depende de consensos. Vamos punir, mas de que modo? Pode-se punir de qualquer forma. No caso do episódio, foi a exibição pública do sofrimento mental da condenada. Temos um parque da justiça criado para isso. E as pessoas que ali comparecem tomam parte do ritual de punição. E tudo indica que estamos diante de uma situação natural, construída por consensos.
Há no episódio um momento em que a protagonista é ajudada. Cria-se um campo de humanização, mas logo é desfeito. Há uma espécie de recondução à condição humanitária da protagonista quando é ajudada. Mas essa ajuda só revela a perversão do modelo punitivo. Humaniza-se para que se possa sentir a força da punição, e todo o sistema reverbera esse propósito.
Pouco parece importar que a protagonista tenha história além do crime cometido, tanto que, ao final, lhe dizem “vamos te levar de volta para onde você veio”: o quarto onde o show recomeça. Menos ainda que ela possa vir a ter um futuro posteriormente, já que é privada de qualquer hipótese de presente real, em que esse futuro poderia se construir. Destituída de três direcionadores da vida humana, torna-se objeto, preservado, exclusivamente, para o gozo alheio.
Pouco importa também que ela signifique aquele momento como punição por seus atos e que possa, com base nisso, reabilitar-se, uma vez que passa grande parte do episódio sem compreender por que aqueles males lhe acometem. Sua súplica pela morte, ao final, não surte efeito, e nem poderia. O sistema já não é somente sobre ela e sua punição, é também sobre o prazer coletivo em vê-la sofrer. Fosse presa, sofreria pouco. Fosse morta, sofreria até o momento final e não mais. Elaborou-se então um modelo no qual se mantém o corpo pela potencialidade quase infinita de sofrimento, não pelo indivíduo que nele existe.
A grande distorção de realidade no episódio, por fim, é engenhada pelo showbiz que se desenvolveu ao redor do “Parque do Urso Branco”. De suas pequenas telas de celular, ou no ambiente controlado do parque, quem assiste não racionaliza o que vê. A indústria manipula e anestesia os sentidos, e a única reação possível é aplaudir.
Ao final, a pergunta de dois gumes: como tudo aquilo pode acontecer?
Historicamente, essa é a pergunta que nunca cessou em todas as sociedades que um dia tentaram entender seus criminosos. Em geral, entende-se que o criminoso é o “Outro”, aquele diferente de si, que tem e age por motivos escusos e que, por isso, não merece o status de cidadão (JAKOBS, 2007, p. 35-36). Ao final do episódio, a dupla tensão: a criminosa era a protagonista, embora, para quem assista, acompanhar suas agruras torne difícil tê-la como inimiga; os cidadãos eram os demais personagens, ainda que, pela maior parte do episódio, eles tenham sido o inimigo, perseguindo e aterrorizando sem motivo compreensível. Como a protagonista pôde? Como os demais puderam? Dissolve-se, por um instante, a distinção entre vítima e criminoso, entre o cidadão e o Outro, e essa ausência de certeza causa enorme desconforto.
Algumas lições podemos apresentar a respeito do episódio:
A construção de consensos numa sociedade não pode perder a premissa de que há direitos os quais não se pode subtrair dos sujeitos, sob pena de desconstituí-los. O direito à vida digna, entendida como aquela que tem valor em si mesmo, e que tem prerrogativa de determinação de si e de suas potencialidades (DWORKIN, 2003, p.99 e ss.), é um deles. Essa é a certeza para resolver o desconforto apresentado. Era preciso dar uma resposta à conduta da protagonista, mas a resposta subtraiu-lhe a humanidade, a potencialidade e a capacidade de autodeterminação. Essa resposta, então, não pode servir em uma sociedade que se pretenda civilizada.
As bases do direito foram erguidas quando fomos capazes de perceber que, independentemente da conduta, não se cria o sujeito sem direitos. Esse processo foi uma longa evolução na história humana, e estamos em um tempo em que o sujeito de direitos se universalizou. É o espírito do nosso tempo. Quando permitimos a criação de sujeitos sem direitos, por qualquer motivo que seja, retrocedemos no tempo. Perdemos a dimensão do direito como natural e de todos. Isso significa que precisamos de limites que se formam pela condição humana.
Tudo isso já estava muito claro para os gregos. Na tragédia de Sófocles, em que Antígona enfrenta as leis da cidade e seus juízes para enterrar o irmão traidor da pátria, temos a manifestação de que os erros não podem criar o “não sujeito de direito”, o homo sacer. O direito então se apresenta como de todos e se manifesta em todas as situações. É a busca pela sua universalização uma necessidade permanente para a nossa humanidade.
A necessidade de dar uma resposta diante de condutas que se entendam como crimes é uma exigência da própria condição humana. As sociedades, de qualquer tempo, sempre vão exigir algum tipo de resposta. O limite dessa resposta, contudo, é que definirá o nível de civilidade de cada tempo. A pura retribuição do mal pelo mal, a anulação do sujeito e sua objetificação para fins sociais, sejam quais forem eles, não civiliza, mas aproxima ainda mais da barbárie, nem satisfaz, pois o castigo não encontrará limites.
Não se pode esquecer de que as leis são para todos. O sentido das leis será sempre de fortalecer a nossa humanidade. Quando caminha em sentido contrário, estará errada.
É preciso ter todo o cuidado para não se deixar seduzir pelos campos de distorção da realidade. As leis guardam potencial natural para ser esse lugar. Não nos deixemos ser levados pelo gozo pela dor do outro.
Post scriptum
Ao leitor especial: qual é o nome da protagonista? De propósito, não mencionamos o nome de Victoria em momento algum do texto. Esse, senhoras e senhores, é um campo de distorção da realidade, no qual não importa o sujeito, somente o objeto de análise. Vitória foi, novamente, o não sujeito de direitos. Indignado?