ADRIANA RENNA DE VITA
As descobertas sobre a origem da formação dos sintomas neuróticos levaram Freud a propor seu método de tratamento. Sua intenção era a de que, ao se depararem com a insensatez do seu sintoma, os pacientes se colocassem a falar à procura de sua verdade. O paciente supunha que tal verdade estivesse do lado do analista: momento fundante da descoberta da transferência e da possibilidade de decifração dos sintomas. O amor de transferência e a suposição de saber possibilitariam, então, o deciframento do sintoma.
Em nossa atualidade, a psicanálise se depara com algo novo: não se fazem mais sintomas como antigamente. O tempo atual é aquele do declínio da função paterna, da inexistência do Outro e de todas as consequências advindas disso, constatáveis em nossa clínica. E de que clínica se trata na contemporaneidade? Não mais aquela da época de Freud, em que a sintomatologia clássica — fobias, conversões, delírios e alucinações — fornecia ao analista a matéria-prima a partir da qual sua prática era orientada. Podemos constatar que, no mundo contemporâneo, não há mais, como na época da clínica clássica freudiana, crença na existência do Outro da civilização, orientando o laço social como um grande ideal simbólico.
Podemos observar uma precariedade simbólica, em que os sujeitos encontram na impulsão pelo ato, incluindo aí o uso da droga, uma saída para aliviar a angústia. Na era do Outro que não existe e do direito ao gozo, deparamo-nos com o surgimento de novos sintomas e um tratamento para o gozo que passa pelo real. Se a clínica contemporânea é essa da inexistência do Outro, na qual o “transbordamento”, o “desgoverno” se fazem cada vez mais presentes, qual tratamento possível para os casos em que a droga e o ato aparecem como únicos recursos para tratar o mal-estar?
Não recuemos, portanto, diante do contemporâneo e dos novos sintomas. Assim como Lacan nos ensina a não recuar diante das psicoses. Mas como abordar o sintoma em nossa atualidade? Como abordar o sintoma sem o estabelecimento da transferência, sem a suposição de saber? Como pensar o sintoma na clínica da violência, dos acontecimentos de corpo, na clínica da toxicomania? Como entender a função tóxica na clínica das psicoses e em nossa atualidade? Encontramos, cada vez mais, em nossa clínica cotidiana, sujeitos que fazem uso excessivo de substâncias, cujos sintomas, longe de se oferecerem à decifração, colocam o corpo na vertente da degradação e da devastação.
Este trabalho tem a intenção de levantar algumas questões referentes a essa clínica com sujeitos psicóticos que fazem, cada vez mais, uso de alguma substância tóxica. Além disso, pretende abordar a complexa relação sujeito-tóxico-instituição, na tentativa de esclarecer de que modo podemos operar, a partir da psicanálise, em uma instituição de saúde mental.
Se O Toxicômano Não Existe, Estamos Diante De Quê?
A clínica atual tem-nos confrontado, cada vez mais, com um grande número de sujeitos psicóticos que faz uso de substâncias, uso que nos leva a supor que a parceria entre o psicótico e a droga pode se constituir em um dos modos de entrelaçamento que a psicose mantém com a atualidade (GRECO, 2011). Apesar desse entrelaçamento, o uso da droga não pode ser pensado da mesma forma na psicose e na neurose. Como ele se daria no caso da psicose, então?
Com muita frequência, nos tempos atuais, encontramos sujeitos psicóticos que fazem uso de substâncias psicoativas como um recurso para tratar algo que não sabem muito bem nomear. No Ateliê de Pesquisa do Freud Cidadão, já citado em nota no título deste artigo, uma pergunta norteava nossa investigação: partimos da ideia de que o uso de uma substância tem, para cada sujeito, uma função específica, podendo se situar ao lado do remédio e/ou da ruína. Interessava-nos investigar como uma instituição, orientada pela psicanálise e pelas invenções ancoradas na singularidade, poderia operar e oferecer seus dispositivos no tratamento de um mal-estar insuportável que lança os sujeitos em usos excessivos.
A etimologia grega do termo Pharmakon nos fornece uma dupla significação. Ele designa tanto aquilo que cura, que pode situar-se do lado do remédio, quanto aquilo que pode aniquilar, matar: o veneno. O que estaria em jogo, portanto, seria o modo de utilização desse Pharmakon, a dose necessária para curar, aliviar, ou a dose que levaria à morte. Partindo da consideração de que o sujeito toxicômano não existe, a questão que se coloca é: que uso se situaria do lado do remédio e/ou da ruína? A partir dessas questões, é importante investigarmos de que modo poderíamos pensar a direção do tratamento das toxicomanias e alcoolismo nas psicoses, de forma a nos permitir avançar um pouco mais sobre o modo específico como o psicótico se enlaça à droga.
Sabemos que a tese da ruptura com o falo não serve para pensarmos as psicoses, pois, nesse caso, essa ruptura é anterior e estrutural (LAURENT, 1994). Em 1975, Lacan nos diz que a droga seria um modo de o sujeito romper o casamento do corpo com o gozo fálico, tese que parece ter-se constituído como norteadora no tratamento analítico das toxicomanias. Miller (1992) nos lembra, no entanto, que essa afirmação de Lacan não poderia servir para classificarmos e definirmos a toxicomania, sendo somente uma tentativa de definir a droga em seu uso. Pensar a toxicomania como ruptura com o gozo fálico não é pensar necessariamente em forclusão do Nome-do-Pai.
Os avanços trazidos a essa clínica se fizeram notar a partir do momento em que a psicanálise passou a trabalhar com a noção de psicose ordinária. Tal noção nos abre caminhos para pensarmos as psicoses não como uma ruptura, mas como modos distintos de enlaces e desenlaces com o outro. Essa maneira de pensar nos ajuda a entender as toxicomanias: enlaces e desenlaces com o outro, mesmo que, em alguns casos, a partir mesmo da droga. Naparstek (2013) nos lembra de que, em alguns sujeitos, a própria droga pode servir para enlaçar-se ao Outro.
Em sua tese de doutorado, defendida em Paris, Naparstek buscou elucidar ainda mais essa questão. Ele nos esclarece, por exemplo, que há uma diferença importante no uso da droga, dentro do quadro da psicose. Ele se referiu às diferenças entre a paranoia e a esquizofrenia. Entendemos, a partir de Lacan, que o paranoico localiza o gozo no Outro, que o gozo vem do Outro, enquanto, na esquizofrenia, o gozo localiza-se ou retorna no corpo. Isso permite diferenciar duas maneiras diferentes de responder ao gozo que vem do outro. Se o retorno do gozo vem do Outro, encontramos, em alguns pacientes paranoicos, uma resposta atrelada ao significante, a droga atrelada ao significante. Do lado da esquizofrenia, encontramos, muitas vezes, o uso da droga como uma maneira de pacificar o corpo, uma utilização da droga para acalmar o corpo, como um remédio corporal.
Naparstek ainda acrescenta que, durante muito tempo, havia uma ideia amplamente difundida de que devíamos trabalhar no sentido de produzir uma “desidentificacão” ao significante toxicômano, como direção do tratamento clínico. O autor pede prudência quanto a isso e sugere pensarmos o caso a caso. Em muitos casos, uma identificação ao “ser toxicômano” pode ser isso mesmo, uma resposta subjetiva que um sujeito encontra para responder a uma invasão de gozo que vem do campo do Outro. Em outros casos, um esquizofrênico pode consumir a droga, por exemplo, para diminuir os pensamentos, pacificar o corpo, dentre outras estratégias de alívio. Essas elaborações nos remetem à dinâmica institucional com seus ideais e sua “missão”.
A Instituição No Caso A Caso: A Invenção Pela Exceção
Fernanda Otoni de Barros-Brisset, em um interessante texto intitulado “O jogo da casa vazia. Não há sujeito sem instituição” (2011), nos lembra de que, quando um sujeito procura uma instituição, “[…] não é qualquer uma. Algo de sua causa mais íntima o dirigiu até lá, guiado pelo que supõe poder encontrar por ali. A instituição é um Outro: o Outro daquele sujeito. A instituição não é a mesma para todos: cada um tem a sua” (BARROS-BRISSET, 2011, p.2). Isso permite que nos desloquemos da prática dos protocolos institucionais, do universal para todos; trata-se da escuta do sujeito que para ali se endereça, com o que há aí de mais singular.
No trabalho institucional com sujeitos que fazem uso de substâncias, é prudente estarmos atentos a uma discussão que a psicanálise tem empreendido com a psiquiatria acerca do tratamento das toxicomanias. Comumente, ouvimos que a toxicomania “esconde” a estrutura psíquica. Como tratamento, então, propõe-se, em muitas clínicas, “limpar” a toxicomania, através da abstinência, para encontrarmos a estrutura subjetiva. Naparstek nos aponta uma outra direção e sugere que, quando fazemos um diagnóstico, é preciso ir em busca do diagnóstico da função que a droga tem para cada sujeito, pois essa função também permite localizar o diagnóstico estrutural. Cessar o uso da droga a qualquer custo pode então ser extremamente perigoso para alguns sujeitos, pois, muitas vezes, podemos nos deparar com o desencadeamento de uma psicose ou um desarranjo na solução que o sujeito encontrou.
Podemos nos apoiar, então, na ideia de que, quando um sujeito vai em busca da droga, ele vai em busca de uma solução. Se pretendemos cessar um uso, é preciso prudência para encontrarmos o diagnóstico da função que a droga tem para aquele sujeito e prudência também para encontrarmos uma nova solução que possa tomar o lugar da droga.
A esse respeito, Naparstek nos fala, no Ateliê de Pesquisa do Freud Cidadão, sobre um caso, acompanhado por ele, de um homem que se travestia diante do espelho e que, ao fazer isso, usava a cocaína. Em um ritual solitário inventado por ele e não revelado a ninguém por sugestão mesmo de seu analista, esse sujeito parece fazer um arranjo, uma pequena “localização do gozo”.[2] Naparstek pontua com precisão a função muito importante da droga para esse sujeito, função que teria a ver com aquilo que ele chama de “localização de gozo”
Acerca da clínica da psicose, parece-nos importante poder pensar em como localizar o valor de alguns índices no delírio de um sujeito, pois localizá-los poderia permitir, por um lado, entender a função da droga, e, por outro lado, operar não somente através da regulação do consumo, mas também moderando um certo modo de o sujeito lidar com aquilo que é da ordem do delírio. Se o sujeito puder fazer uma pequena localização de gozo na intimidade, é preciso preservar isso. Podemos tomar a definição da intimidade como um gozo localizado: “quando não existe mais a intimidade, o gozo começa a aparecer por todos os lados, e isso provoca um desenlace com o Outro. Se o gozo aparece por todos os lados, é impossível falar com o Outro. Se o outro sabe tudo, é preciso se desligar dele” (Naparstek, 2013).
Se, para cada sujeito, a droga exerce sua função, não seria então na via da supressão e da abstinência que apostaríamos. Desde Freud, sabemos dos riscos e dos efeitos nefastos de tentar eliminar aquilo que o sujeito tem de mais precioso, a saber, seu sintoma. No entanto, se a droga aparece como elemento que permite uma amarração, ainda que frágil, por se tratar da psicose, ela revela sua face mortífera quando o que aparece são corpos devastados e lançados ao abandono. Em nossa clínica cotidiana, nosso desafio tem sido, cada vez mais, nos encontrarmos com sujeitos que pouco respondem às intervenções, com corpos que parecem ocupar-se deles mesmos, em um gozo monótono, sem sentido. Fernanda Otoni de Barros-Brisset, em seu seminário, no Ateliê,[3] nos chama a atenção, entretanto, para o fato de que as rotinas e ideais institucionais não servem mais como referência, e que, diante disso, o analista deve dizer sim ao gozo localizado e inconfessável, “pois escutar esses corpos é escutar o que se cala no sintoma” (BARROS-BRISSET, 2013)
Lacan nos recomenda não recuar. Entendemos, no entanto, que é preciso pensarmos nas possibilidades de trabalho de uma instituição sem tomarmos essa recomendação como um imperativo, pois, em muitos casos, o recuo calculado pode produzir mais efeitos que o oferecimento excessivo de recursos ou dispositivos.
Como operar então no trabalho institucional? Talvez possamos acolher as atuações como demandas, ficarmos atentos ao que se repete e tentarmos entender o que aparece através do ato. Quem sabe assim possamos permitir que se inaugure o enigma “O que ele quer de mim?”. Abre-se, dessa forma, uma via possível para fazê-los responsáveis pelo que dizem. A equipe clínica deve, para isso, estar preparada para a surpresa. Para ir em direção ao sujeito, é preciso então acolher o que se apresenta, a princípio, como únicos recursos: a droga e o ato. Para o que não tem governo, tampouco cura, há tratamento, pois ainda nos restam a palavra e a nossa aposta no inconsciente.[4]
(1) Durante o primeiro semestre de 2013, realizamos, no Freud Cidadão, nosso IV Ateliê de Pesquisa Psicanalítica. As atividades desse Ateliê estavam concentradas em investigar as peculiaridades da clínica com sujeitos psicóticos que fazem uso de alguma substância tóxica. Tema da pequisa: “Função tóxica na clínica das psicoses: remédio ou ruína”. Responsáveis: Adriana de Vitta, Camila Nuic, Letícia Soares, Marisa de Vitta, Sérgio de Mattos (coordenador). O presente texto buscou aprofundar algumas das questões trabalhadas durante os seminários.
(2) Remetemos o leitor ao seminário proferido pelo autor no Ateliê de Pesquisa do Freud Cidadão.
(3) Fernanda Otoni de Barros-Brisset, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e Associação Mundial de Psicanálise, esteve presente no encerramento do Ateliê, comentando um texto coletivo produzido pela equipe responsável pela pesquisa e intitulado “Toxicomania na clínica das psicoses: a invenção pela exceção”.
(4) Essas elaborações finais fazem parte de uma reflexão feita em conjunto com Camila Nuic, psicóloga do Freud Cidadão e uma das responsáveis pelo Ateliê, a partir de suas anotações pessoais do seminário de Musso Greco.