Marina del Papa
Psicanalista, mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG e aluna do IPSM-MG
marina.delpapa09@gmail.com
Resumo: Este trabalho visa a transmitir o relato de uma experiência clínica orientada pela psicanálise dentro de um hospital. Parte-se da premissa de que, quando um sujeito busca uma instituição hospitalar, ele o faz, a princípio, pela urgência biológica e traumática de seu corpo; porém, de maneira concomitante, pode-se verificar uma atualização psíquica e singular de sua relação com a castração e o real. A prática psicanalítica passa fundamentalmente por algo desta ordem: um testemunho de perda, seja em sua construção teórico-clínica, seja na travessia do fantasma no final de uma análise. Trabalhar em um hospital traz a possibilidade de não só revisitar conceitos importantes à escuta clínica, como também fazer ressoar a potência da presença do analista com seu corpo, enquanto via transferencial de testemunho para o sujeito.
Palavras-chave: Psicanálise; testemunho de perda; hospital.
THE PSYCHOANALYTICAL EXPERIENCE OF TESTIMONIALS OF LOSS IN THE HOSPITAL
Abstract: This work aims to convey the report of a clinical experience guided by psychoanalysis within a hospital. It is assumed that, when a subject goes to a hospital, he does so, at first, because of the biological and traumatic urgency of his body; however, at the same time, it is possible to verify a psychic and singular update of his relationship with castration and the real. The psychoanalytic practice fundamentally passes through something of this order: a testimony of loss, whether in its theoretical-clinical construction, or in the crossing of the phantasm at the end of an analysis. Working in a hospital brings the possibility of not only revisiting important concepts for clinical listening, but also echoing the power of the psychoanalyst’s presence with his body, as a transferential path of testimony to the subject.
Keywords: Psychoanalysis; testimony of loss; hospital.
Em vista das discussões levantadas durante o segundo período de formação do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, as quais se baseavam na prática do analista em instituições, e da temática proposta para o Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, “Analista: Presente!”, vi-me interessada em escrever sobre minha experiência de trabalho dentro de um hospital de Belo Horizonte (MG). O fragmento de caso que compartilho a seguir tornou oportuna a retomada de conceitos importantes da psicanálise, como a localização subjetiva e a transferência, e, igualmente, abriu margem para uma reflexão sobre a presença do analista como via de testemunho, posição esta que torna possível um giro a partir do qual o sujeito pode avançar sobre seu dito e sua implicação com a perda.
O caso Rubens
Rubens era um senhor de 76 anos para o qual foi requisitada assistência psicológica devido à angústia da equipe médica que o tratava, que não conseguia realizar o diagnóstico de sua doença. O que se sabia desse paciente é que ele sofria de algo relacionado ao pâncreas, embora isso não ficasse claro nos exames tumorais.
Esse sujeito não recebia visitas. Era educado com a equipe, mas bastante solitário. Acompanhei-o por cinco meses, até o momento de sua morte. Boa parte desse período — quatro meses exatamente — se destinou à definição de seu diagnóstico. Sempre o encontrava deitado; nisso, sentava-me a seu lado e buscava investigar sua história. Ele falava muito pouco sobre si e, por isso, pude colher apenas poucos dados: “fui diagnosticado com bipolaridade muitos anos atrás”, “perdi uma filha quando ela era criança por um câncer”, “tenho filhos, mas não são próximos” e “um casamento perdido”.
O paciente sempre interpunha à continuação de sua história queixas de dor. Revirando-se na cama, ele dizia das dores que tinha no corpo. A propósito, fazia uma descrição detalhada delas. Permaneci acompanhando-o, sentando-me ao lado de sua cama, na presença constante de suas queixas. Seu corpo não mais respondia a uma série de funções. Houve dias em que apenas o acompanhei em seu silêncio. Aliás, por alguns meses, essa foi a forma de acompanhamento que pude ofertar: uma presença e uma disponibilidade de escuta, indo a seu leito quase diariamente.
Depois de alguns meses, durante uma sessão, teve início o giro do caso. Nesse dia, Rubens afirmou sentir muita dor. Ele mal conseguia se movimentar no leito, contorcendo-se agoniado e com febre, o que o fazia ter calafrios. Ele, então, sorriu para mim e disse: “Que profissãozinha ruim a sua, hein?! Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Eu o respondi dizendo: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. O paciente tremia de frio. Em vista disso, levantei-me e o cobri com o cobertor. Nesse momento, ele demonstrou espanto com meu gesto, agradecendo-me em seguida.
Após essa sessão, ocorreram algumas mudanças com Rubens: ele passou a se sentar na cama para os atendimentos, dando amostras de que um sujeito começou a se presentificar ali. Outro modo de dizer se instaurou. O paciente pôde construir uma elaboração sobre um momento traumático de sua vida, que foi a perda de sua filha: “Briguei com tudo e todos”. Ele considerava justa sua solidão: “Fiz mal a meus filhos e minha esposa; é natural que não venham. Eu causei tudo isso, fiz coisas muito erradas. É justo que eu morra sozinho, mas não gostaria de morrer com dor. […] Está perdido, não tem mais o que ser feito”. Cortes, interpretações, desconstruções e conclusões foram sendo produzidos pelo paciente. Outra elaboração foi sobre como ter uma morte mais digna dentro das coisas que ele fez na vida e de outras que ele perdeu, sem possibilidade de restauração. Em uma das sessões, já com um sujeito instaurado, pude dizer a ele: “Hoje você trabalhou”. Nisso, ele me respondeu: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”.
Rubens veio a falecer pouco tempo depois. Como ficou acordado pela equipe médica após o diagnóstico de câncer no pâncreas, ele não seria submetido a tratamentos com poucas chances de êxito, tendo sido realizado apenas um paliativo. Juntamente à equipe, foi possível colocar em jogo a posição desse paciente: ele não poderia evitar a morte, mas poderia morrer sem grandes dores. Essa foi a ética possível para esse sujeito, que pôde realizar algum trabalho sobre suas perdas.
Considerações iniciais
Quando oferecemos um espaço de escuta, como no caso de Rubens, algumas vezes nos deparamos com sujeitos em uma posição apagada, posição essa mais voltada à descrição corporal dos sintomas e a uma verificação queixosa da manifestação destes. Digo algumas vezes porque entendo que a maioria dos casos não é assim. Nesse sentido, o primeiro ponto que considero importante destacar para compreender a experiência de um testemunho de perda é a presença do analista.
Presença como testemunha
Clotilde Leguil (2022) escreveu, no boletim extra A presença do psicanalista como testemunha de perda, que a presença do analista é articulada por Lacan não tanto a uma ausência, mas a uma perda. O fato de o analista estar ali com seu corpo, com sua voz, com sua respiração no mesmo lugar em que está o analisante — este também com seu corpo e com sua angústia — tem uma função decisiva. O corpo do analista em sua modalidade de presença exerce uma função de testemunha daquilo que se perde. O surgimento do inconsciente se produz no próprio modo daquilo que aparece e depois desaparece, no modo do que se dá a conhecer e depois se deixa esquecer, no modo do que estava lá, mas que já não está mais. A autora acrescenta que o inconsciente se manifesta como o que se perde, como aquilo que apenas é encontrado, que já está perdido, ganhando consistência se, e somente se, houver uma testemunha de seu surgimento.
Depreendo, do fragmento supracitado, a importância da dimensão da presença, isto é, a importância de manter constantes as idas, de convocar esse sujeito a falar e, mais do que falar, de acompanhar, em meio a seu dito, as dores, as angústias e os odores do corpo: em outras palavras, estar ao lado daquele corpo. A sessão que ocorre como divisor de águas, como ponto de mutação de um sujeito que descrevia suas dores para outro sujeito, que inicia um trabalho analítico, é aquela que tem como marca a constatação de Rubens: “Vir sempre aqui para me ouvir queixar de dor”. Essa é uma indicação passível de ser compreendida como testemunho? O texto de Clotilde Leguil nos leva a recordar da terminologia lacaniana testemunha para abarcar a presença do analista. Lacan (1964) ressalta que, desde o início da psicanálise, quando Freud trabalha a estrutura do inconsciente e instaura uma prática, esse é um campo que, por natureza, se perde. É aí que a presença do analista é irredutível, como testemunha dessa perda.
Compreendo, a partir disso e tendo acompanhado Rubens por quatro meses, que existe uma sustentação em suportar o corpo real enquanto presença. Enquanto orientação clínica, aposta-se que exista um sujeito que se instaura pela perda. É por essa orientação, não desassociada do ato de suportar o corpo e sua angústia, que se pode dizer: “Sou otimista, espero sempre que diga algo mais interessante”. Dessa forma, outro elemento indispensável para essa reflexão é a transferência.
O segundo momento do fragmento, em que o paciente inicia seu trabalho e uma abertura subjetiva se instaura, ele nomeia “de amor”: “Você sempre vem aqui… É um modo de eu retribuir seu trabalho, seu amor, e [de] você lembrar que está no lugar certo”. Isso demonstra que a transferência se instaura em uma constatação de localidade subjetiva com o Outro, a qual não seria viável sem a presença da localidade enquanto presença. Assim, como encontramos na orientação lacaniana, a transferência vinculada a uma presença é necessária (LACAN, 1964).
Por fim, tendo sido instaurados esses elementos para Rubens, verifica-se uma ultrapassagem do dito para um sujeito com um inconsciente, pois, quando avançada essa constatação de presença, o paciente se coloca a trabalhar, relacionando a perda traumática de sua filha, que morreu de câncer quando era criança, a um câncer descoberto em estágio avançado, dizendo do trauma que o marcava por ter presenciado a hemorragia no corpo da menina. Rubens constata em sessão que, após a morte da filha, ele se colocou em uma posição desenfreada na vida, enquanto sujeito disposto a perder todo o resto: o casamento, os filhos, o dinheiro, o emprego, nada mais lhe importava. Próximo de morrer, ele pôde julgar a ausência de alguém.
Sendo assim, levanto o último elemento da reflexão: para que haja o testemunho do analista, é necessária a localização subjetiva do sujeito com seu inconsciente; é nesse momento que o que está em jogo não é mais apenas um espaço de escuta, mas, sim, uma experiência analítica. Só existe um testemunho. Se existe um sujeito aberto a essa experiência, é necessária a presença de um analista que queira colocá-lo a trabalho.
A localização subjetiva
O analista, como testemunha de perda, testemunha, na presença de um sujeito, quando este aparece ou é convocado aparecer. O sujeito surge, como diz Lacan (1966), para além de seus ditos, sendo implicado pela demanda que ele apresenta. Isso equivale a um sujeito com um sintoma que ultrapassa o diagnóstico médico. Como mencionado por Lacan, trata-se de um sintoma como enigma para o sujeito que tem uma fantasia — essa seria uma condição mínima definida como instrumento.
Miller (1997), em Lacan elucidado, nos orienta exatamente sobre essa diferenciação quando toca o método lacaniano para que possa se apresentar como uma análise: o mecanismo dos ditos é falso, pois este não vale mais que o mecanismo da psicologia do eu. A localização subjetiva consiste em distinguir entre o dito e a posição frente a ele, que é o próprio sujeito. É necessário sempre inscrever algo, com um índice subjetivo do dito, o que verificamos no mal-entendido, naquilo que o paciente apresenta como uma verdade absoluta ou no que é predominantemente falso, no que ele deseja mas teme, ultrapassando o sentido de um dito.
Considerações finais
A partir dessa experiência, reflito sobre a importância da presença de uma orientação psicanalítica nas instituições. A presença e a conduta dessa orientação implicam uma aposta no inconsciente e em sua abertura. Para isso, é necessário fazer presença, às vezes, com as palavras, outras, com o corpo, mas sempre apostando em uma possibilidade singular para cada sujeito e que este possa se ouvir e se implicar para além do que é dito. Isso ultrapassa qualquer protocolo hospitalar, incluindo tempo de sessão, quantidade de atendimentos por dia, o que o plano de saúde sugere etc. Não se trata de nada disso. É uma aposta em oferecer uma experiência de testemunho, elevando o sujeito à maior dignidade possível: a de ser sujeito de sua própria história.