FABIAN FAJNWAKS
Famílias recompostas, monoparentais ou homoparentais. As diversas figuras da família que nossa época nos apresenta encontram-se determinadas pelos progressos da ciência – pelo discurso jurídico que acompanha esse progresso –, em que o impacto da psicanálise na cultura também tem seu lugar.
Há algumas semanas um autor escrevia, com certo cinismo, nas colunas de um jornal de grande circulação na França, que, da mesma maneira que os anos 70-80 condenaram o casamento à morte – o que se pode discutir –, os anos 90-2000 estabeleceram, definitivamente, como obsoleta a noção de casal. “O conceito de fidelidade – diziam – tornou-se tão ridículo, obsoleto, bárbaro como era em outra época o conceito de castidade”. Se atualmente todos os sexos são semelhantes, todas as sexualidades se diferem umas das outras. O fim do modelo de casamento/celibato, seguido do modelo de casal/solidão, anda hoje de mãos dadas com a superação da distinção arbitrária masculino/feminino, do hiato absurdo hetero/homossexual. A nova individualidade não é mais étnica, nem geográfica, nem social ou cultural: é sexual. Uma nova individualidade que permite viver a liberdade sexual que reivindicamos transcendendo as divisões, depreciando as distintas comunidades. Ela permite fabricar um sexo.
Com a psicanálise, não saberíamos desmentir essas palavras, mas voltemos ao ponto em que esse autor fala de “inventar um sexo” e de “uma nova individualidade”. Saber que a “individualidade” do nosso tempo implica que cada um pode gozar como quiser, desde que isso não incomode muito nem aos outros nem à sociedade, sendo exclusivamente esse “cada um pode gozar como quiser” o que faz em nossa época o laço social, a questão ética que acompanha esse tipo de gozo de “fazer um sexo” se impõe necessariamente. Isso significa que a diferença entre o que é uma posição de “vontade de gozo”, o que empurra ao que – como Lacan disse em Televisão e antecipando essas questões – “no desatino de nosso gozo, não há mais o Outro para situá-lo, e agora esse gozo se localiza a partir do mais-de-gozar”2 e o que se deduz de uma posição subjetiva em relação ao desejo é, poderíamos dizer, cada vez mais frágil, e somente a psicanálise pode escutar essa diferença.
Para dizer de outro modo: vivemos em uma época em que o fato de que a cada um está permitido reivindicar um modo de gozar – o que toca a sexualidade e a estrutura da família – impõe uma reformulação jurídica que enquadre esse mais-de-gozar permitido, e uma reflexão ética a que todos os indivíduos que compõem a sociedade estão desde agora convidados, e é o que se verifica na presença da palavra “ética” em todos os discursos sociais, como sintoma dessa questão.
“Inventar um sexo” é acompanhado também de poder “inventar uma família”, que acompanha a maneira de viver essa sexualidade, e não surpreende, então, por exemplo, a reivindicação dos homossexuais de adotar ou de procriar, como é possível para as homossexuais já há alguns anos. Um sociodemógrafo indicava há uns dias no Liberation3 que “o amor, ou melhor, o casal, se constrói atualmente a partir da sexualidade enquanto que há um tempo, era o casamento que desempenhava esse papel” 4.
A família homoparental constitui uma revolução que a ciência permite há uns anos e que o jurídico está em vias de adaptar-se com a legislação correspondente. Existe há três anos, na França, o PACS (Pacto Civil de Solidariedade), que reconhece as uniões homossexuais. Até poucos anos atrás, ser gay significava a renúncia do sujeito à procriação, e que a partir de agora é possível driblar, “verônica** – para usar um termo de Oscar Masotta – a castração”, ou, nesse caso, se quiserem, um “duplo drible”.
Não se trata aqui, como observado por Lacan em Os Complexos Familiares, de “afligir com um pretenso afrouxamento dos laços de família”5, o que levaria inevitavelmente a uma posição moralista, desconectada da psicanálise, ou dizer “os homossexuais já não são mais o que eram antes”… Trata-se de notar, em primeiro lugar, que a família homoparental não faz mais que colocar em evidência o que conhecemos há um século com Freud e Lacan: que, por um lado, há uma diferença entre a família – estrutura que garante a transmissão em relação à procriação – e o Complexo, enquanto o dispositivo que permite que um sujeito advenha como desejante; e que, dentro desse complexo, as funções fundamentais de Desejo da Mãe e de Nome do Pai se articulam mais além dos lugares biológicos, mesmo se estão encarnados.
Recordemos o que nos assinala Lacan em Duas notas sobre a criança:
A função de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão – que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades – mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo6.
“A relação com um desejo que não seja anônimo”: aqui, temos articulada a metáfora mínima necessária para a constituição do sujeito, que implica que tenha transmissão de outra ordem que não a da necessidade. Frente ao fato de que a família tenha sido reduzida a seu agrupamento biológico – ou sexual, poderíamos acrescentar, a partir da perspectiva do que estamos abordando – à medida que integrava os maiores progressos culturais, perguntemo-nos como o fez Lacan – nessa passagem de Os complexos familiares – pelos “efeitos psicológicos” ou subjetivos dessas alterações que tocam o que ele chama de “declínio social da imago paterna”. Mas não nos alarmemos tanto como podem fazer os psicólogos ou outros humanistas ou profissionais do social: a psicanálise, desde Freud – Lacan o recorda nesse texto em que evoca o “melting pot” das formas familiares mais diversas que constituía a Viena do princípio do século e que deu lugar a essa reflexão –, diferencia a estrutura familiar do “Complexo” de Édipo, e o que as mudanças contemporâneas da família nos fornecem talvez seja menos inovador. Esse “declínio social da imagem paterna” produzirá novas fobias, por exemplo, nesses novos grupos familiares nos quais a imagem do pai se vê alterada ou reforçada nas parcerias em que justamente ele está ausente? Assinalemos o fato de que muitas vezes o filho do qual se trata é o filho feito ao pai ou à mãe do sujeito. Em todo caso, podemos encontrar, nessa reivindicação, a confirmação da “função de resíduo”, de resto da família que Lacan sublinha, ou seja, no desejo dos casais homossexuais de “fazer família”, segundo o modelo da parceria heterossexual.
Uma série de reformas jurídicas realizadas recentemente na França parece sustentar a “decadência social da imago paterna”7. Desde o mês de fevereiro (de 2002) e, rompendo com uma tradição que data de oito séculos, uma mãe pode transmitir a seus filhos seu sobrenome, ou seja, o de seu pai, no lugar do sobrenome do pai de seus filhos, e isso por simples pedido e acordo dos cônjuges. No momento em que o parlamento francês aprovou essa reforma, que constitui uma pequena revolução, os jornais evocavam o lugar simbólico do Pai como transmissor do nome, citando a referência lacaniana do Nome-do-Pai. Já existia na França a possibilidade de que a mãe reconhecesse seu filho e lhe transmitisse seu sobrenome, ou que o filho carregasse os sobrenomes de ambos os pais, ainda que sempre fosse o de seu pai o que se transmitia. Contudo, no contexto atual, que a lei promulgue a possibilidade desse tipo de transmissão coloca, entre outras, a questão sobre se ela não condescende com a possibilidade de alimentar um fantasma de possessão materna, em que é o próprio pai da mãe que aparece como transmissor do Nome. Para dizer de outro modo, se o que funciona como constatação lacaniana no social é a decadência da imago paterna. Lacan apresenta, no texto citado, todas as interrogações concernentes à falha de transmissão dos ideais por esse motivo, sendo os ideais do pai os que alimentam, segundo Freud, o ideal do eu do filho, perguntando-se também pelo lugar que toma o supereu como reforço, uma vez constatada essa decadência da imago paterna. Cabe perguntar também acerca da forma que toma o empuxo à mulher no social que acompanha essa decadência, e que se verifica em toda psicose. Mônica Torres falou, há um tempo, desse empuxo à mulher no social e que haveria de desenvolver esse conceito. Aqui vemos uma estranha convergência entre os efeitos do progresso da ciência e o discurso jurídico, em que um acompanha o outro, produzindo um tipo de fantasma do todo feminino, no qual já não há mais pais, ou seu lugar aparece apagado, mas também não há mais homens, a partir do momento em que a ciência pode fazer a mulher procriar prescindindo do ato sexual, que é o que introduz a diferença dos sexos, reduzindo o homem ao banco de esperma. A clonagem, forma que definitivamente pode prescindir da reprodução sexual, alimenta esse fantasma em que já não se trata de um todo feminino, mas de um empuxo a ele, sem nenhuma alteridade, e em que as reflexões de Freud em Além do princípio do prazer, acerca do progresso que a reprodução sexuada supõe sobre a reprodução assexuada, são atuais, nos promete para amanhã o retorno à reprodução assexuada – se a clonagem for possível.
Outra modificação é a aplicação, na França, da lei chamada “reforma da autoridade parental”, aprovada em meados de fevereiro de 2002: a lei reconhece uma competência igual aos pais e às mães no caso do divórcio, seguindo, assim, um movimento que os jornais chamaram de uma ideologia da “copaternidade”, que já provocou a tensão das organizações feministas francesas. Uma jurista comentava essa tensão, ressaltando “o apego visceral das feministas à divisão jurídica dos sexos: não somente obtiveram o direito ao aborto, como também o de perseguir (juridicamente) o homem que é o genitor de seus filhos, em uma espécie de reivindicação de domínio primário em detrimento do pai”9.
Talvez possamos evocar, para terminar, o que muitos sociólogos apontaram no momento dessas mudanças da estrutura e da inscrição jurídica da família: que no momento social atual em que, para retomar as palavras do escritor que citávamos no princípio, cada sexo tem exatamente os mesmos direitos de reivindicar um modo singular de viver sua sexualidade, de “inventar” sua sexualidade, a guerra dos sexos parece, então, deslocar-se do campo da família…